“Pode-se, assim, definir Arquitetura como construção concebida com uma determinada intenção plástica, em função de uma determinada época, de um determinado meio, de um determinado material, de uma determinada técnica e de um determinado programa”.
Lúcio Costa
Tantos arquitetos ilustres, por séculos e até hoje, insistiram em definir Arquitetura como “arte de construir”. Há quem discorde. Mas observo essa construção, pousada suavemente no campus da Universidade de Brasília, que parece estar ali com a missão de firmar e enfatizar a síntese anotada em epígrafe, retirada das “Considerações sobre o Ensino de Arquitetura”, de Lucio Costa em 1945.
Assim como o Doutor Lucio não buscou na figura de um avião a inspiração para resolver a organização espacial da capital do País, certamente o Lelé também não foi buscar num “disco voador” ou numa “mistura de maloca dos xavantes com a dos kamayurás” a solução para o abrigo da Fundação Darcy Ribeiro – embora o comentário bem humorado presente no primeiro parágrafo da carta ao amigo, a guisa de apresentação do anteprojeto, e a similaridade estrutural que permite remeter àquelas habitações indígenas.
Observa-se na arquitetura de Lelé, particularmente na Fundação Darcy Ribeiro, a presença da lógica – reiterada na implantação do edifício, na escolha das técnicas construtivas, na solução estudada para o mais singular detalhe da obra. Maneja as alternativas oferecidas pela tecnologia contemporânea e as utiliza conscientemente em favor da preservação dos recursos oferecidos pela natureza, cuidadosamente adequadas à circunstância social em que se situa. Exerce o seu ofício: faz e ensina Arquitetura.
Temos hoje, no Campus da UnB, duas pontas da história de um Mestre Arquiteto: dos primeiros e férteis anos da década dos 1960: a Colina, os edifícios de Serviços Gerais e o Instituto Central de Ciências (com Oscar Niemeyer, ainda inconcluso); e, deste futurístico e esperançoso ano de 2010, a Fundação Darcy Ribeiro.
Cinqüenta anos depois, a coerente evolução da construção planejada: desde as estruturas e vedações de concreto armado pré-fabricadas em canteiro daqueles primeiros tempos do CEPLAN/UnB, até os sofisticados elementos industrializados de aço e argamassa armada de agora, realizados pelo Instituto Brasileiro de Tecnologia do Habitat.
O Instituto Habitat, organização social de interesse público, floresceu de experiências anteriores fortemente realizadoras lideradas por Lelé – tais como o próprio CEPLAN/UnB, a Ação no Município de Abadiânia (GO), a Empresa de Renovação Urbana de Salvador (Renurb, BA), a Fábrica de Escolas (RJ), a Fábrica de Equipamentos Comunitários (FAEC, BA) e o Centro de Tecnologia da Rede SaraH (CTRS, BA). O Instituto, como seus antecessores, objetiva a realização da Arquitetura no sentido amplo, como definido acima, e a transmissão do conhecimento através da pesquisa e execução de projetos e obras.
Essas diversas experiências de industrialização de edifícios e outros equipamentos urbanos comprovaram a evidência: o projeto não é a meta e não se extingue antes da conclusão da obra. É o instrumento, sempre passível de aperfeiçoamento: o veículo para atingir o objeto construído e útil, através do qual cada parte é planejada criteriosamente e o conjunto de partes interage de modo harmônico, obedecendo à partitura idealizada e considerando os condicionantes da edificação em seu contexto geral.
A sede da Fundação foi idealizada pelo próprio Darcy Ribeiro em 1996, quando solicitou ao Arquiteto que inventasse uma “casa digna” para guardar seus livros e lembranças. No Campus que leva seu nome, na Universidade que criou, encontrouse finalmente o local apropriado para sua memória.
Em julho de 2010, superadas as etapas preliminares de preparo do terreno, a equipe do Instituto Habitat, liderada pela Arquiteta Adriana Rabello Filgueiras Lima, iniciou a construção. Ao final de novembro, é entregue a obra.
No pavimento térreo, elegante e esbelta marquise define o acesso principal. Depois, recepção, área para exposição, cafeteria, três salas de aulas para 35 lugares (duas delas com possibilidade de integração), salas de administração e apoio. Duas linhas de pilares dispostos em circunferência suportam vigas radiais e laje de teto com 34 metros de diâmetro e vazio central de 13 metros para jardim “com árvores e beijaflores”, como planejado no anteprojeto. Beiral e brise-soleil metálico externo preservam as salas da insolação excessiva.
Ao fundo, com acesso independente para público, o “Beijódromo” com 200 lugares: local de encontro dos estudantes para atividades lúdicas, acadêmicas e políticas.
No pavimento superior distribuem-se, em vão livre com 37 metros de diâmetro, recepção, acervo, biblioteca, ambiente de estar e leitura, gabinetes de pesquisa, áreas de apoio e ampla área para exposição. O jardim central integra os dois pavimentos com pé-direito total de 13 metros!
As vigas da cobertura do pavimento superior nascem nas extremidades dos balanços externos das vigas radiais e se desenvolvem com seção variável e desenho suave, unindo-se no anel de compressão interno.
A vedação da estrutura de cobertura é composta por telhas metálicas calandradas, alvas para reflexão do calor. Internamente, o teto forrado em chapa plissada evita a reverberação do som. O jardim é iluminado através do trecho central coberto com policarbonato translúcido. Aletas metálicas verticais disciplinam a iluminação. A clarabóia é arrematada internamente pela grelha do capitel, onde um exaustor embutido extrai o ar, que penetra pelas aberturas das esquadrias externas do térreo e dos fechamentos vazados no piso circundante do pavimento superior, já refrescado e umidificado pela lâmina d’água que circunda o edifício.
Conectando os pavimentos, um primoroso e transparente elevador hidráulico – também projetado e realizado pelo Instituto Habitat, assim como boa parte do mobiliário.
Projeto e obra terminam juntos. No percurso entre a idéia e a realização, mudança de estratégia para a execução, quando a estrutura de concreto armado prevista originalmente para o teto do pavimento térreo foi substituída pela estrutura metálica, objetivando agilizar a obra e evitar serviços a descoberto no período chuvoso de Brasília. O Programa também evoluiu, com a inclusão da cobertura e dos fechamentos laterais do “Beijódromo”, mais mudanças na ocupação do pavimento térreo e conseqüente remanejamento na circulação vertical.
As alterações ocorridas ao longo da realização da obra apenas demonstraram a flexibilidade hoje exigida de qualquer edificação, para adequação a novos e variados programas. Os novos elementos são como acessórios, que se agregam e enriquecem a construção. Sempre de modo ordenado e planejado.
Em números, registramos: cinco meses para detalhamento, fabricação e montagem do edifício; 2.544m² de área coberta, mais 1.030m² do lago circundante; 5,5 milhões de reais gastos com a construção e todo o mobiliário do edifício.
Doutor Lucio, autor do Plano Urbanístico da UnB, e Doutor Lelé, responsável em 1960 pelo desenvolvimento daquele Plano e autor do mais novo edifício do Campus em 2010, se reencontram muitas vezes: no rigor ao pensar e realizar Arquitetura, na inquietação pela aplicação do mais apurado e contemporâneo conhecimento humano na solução dos desafios propostos para a profissão.
O primeiro, já na década dos 1940, em suas “Considerações sobre Arte Contemporânea”, concluía afirmando que seria apenas a “Industrialização capaz de transferir o imemorial anseio de justiça social do plano utópico para o plano das realidades inelutáveis.” O segundo, comprova que a utopia é possível – e a exemplifica em tantas realizações, como agora, nesse memorial dedicado ao mais utópico dos brasileiros.
Concluído este modesto comentário – no qual, para iniciar, socorri-me na sabedoria de Lucio Costa –, relembro e compreendo melhor a resposta que ele próprio me deu (e mantenho, com enorme carinho e respeito, em fita gravada), quando lhe perguntei a opinião sobre a intenção da Universidade de Brasília conceder ao Professor Lelé o título de Doutor Honoris Sapiens, ainda na década dos 1990: “O Lelé é o arquiteto que eu gostaria de ter sido...
sobre o autor
Haroldo Pinheiro é arquiteto (FAU/UnB, 1980), Presidente do CAU Brasil, Vice-Presidente do Conselho Internacional dos Arquitetos de Língua Portuguesa (2007/11). Membro Vitalício do Conselho Superior do IAB e Titular do Conselho das Cidades / Ministério das Cidades (2005/08, 2008/11), Conselheiro da União Internacional dos Arquitetos (2002/05). Presidente Nacional do IAB (2000/02, 2002/04). Sócio Fundador e Diretor Técnico do Instituto Habitat (desde 2006).