Para além de sua intenção formal de produzir com seus relatórios uma obra de referência, pode ser que tenha havido uma idéia matriz por trás dos trabalhos desenvolvidos por Jacques Tenon: a intenção de disciplinar o espaço através da organização das atividades.
Numa outra obra, Michel Foucault discute o conceito de disciplina e o seu papel na afirmação das relações sociais ao longo do século XVIII: "as disciplinas tornaram-se ao longo dos séculos XVII e XVIII, formulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois elas não se fundam numa relação de apropriação dos corpos; (...). Diferentes também da domesticação, que é uma relação de dominação constante, global e maciça, não analitica, ilimitada e estabelecida sob as vontades singulares do senhor, seus "caprichos". Diferentes da vassalidade que esta relacionada à submissão altamente codificada, mas distante, e que atua menos sobre as operações do corpo que sobre os frutos do trabalho e das marcas rituais da autorização. Diferentes ainda do ascetismo e das "disciplinas" de tipo monastico, que têm por função garantir as renuncias que amplitude utilitaria (...)" (2).
Ele continua, dizendo que "o momento histórico das disciplinas, é o momento onde nasce uma arte do corpo humano, que não visa somente a ampliação de suas habilidades, nem o aumento da sujeição, mas a formação de uma relação, que inserido no mesmo mecanismo, o torna tão obediente quanto útil e inversamente. Se forma, então, uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. (...) Uma "anatomia política", que é também uma "mecânica do poder", esta nascendo; ela define como podemos apreender o corpo dos outros, não simplesmente para que eles façam o que se deseja, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica, assim, corpos submissos (...). Em uma frase: ela dissocia o poder do corpo; ela o transforma, por um lado, numa "aptidão", uma "capacidade", que ela procura aumentar e ela inverte, por outro lado, a energia, a potência que poderá resultar e ela o faz numa relação de sujeição estrita" (3).
Mas, em que medida e em que níveis a técnica disciplinar fará sentir seus efeitos? "A escala, inicialmente, do controle: não se trata de cuidar do corpo por massa, grosseiramente, como se ele fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhar no detalhe; de exercer sobre ele una coerção continuada, garantindo a apreensão ao nível, mesmo, da mecânica – movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não mais simplesmente os elementos significantes de conduta ou da linguagem dos corpos, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a atuação diz respeito mais sobre as forças que sobre os signos; a única economia que importa verdadeiramente é aquela do exercício. A modalidade, enfim: ela implica numa coerção ininterrupta, constante, mais vigilante sobre os processos da atividade, que sobre os resultados e ela se exerce segundo uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos" (4).
A tese que Foucault defende na obra mencionada é que teria começado (5) – a partir do século XVIII – a atuação de um modo mais intenso, mas sempre dissimulado, sobre a sociedade, uma ação consciente sobre os corpos através do controle dos gestos; essa ação teria por objetivo uma regulação ou uma regularização, meio de obter um maior rendimento no processo de trabalho.
Se admitirmos como válida a tese defendida por Foucault, então poderemos perguntar: de qual maneira extrairíamos o maior rendimento? Ou ainda, quais os dispositivos que deveriam ser implantados?
Primeiramente, é necessário que os indivíduos sejam distribuídos no espaço, isto é, é necessário que haja uma delimitação espacial, uma circunscrição, de modo que seja estabelecida uma ordem. Colégio, caserna, fábrica, hospital, por exemplo. A circunscrição não implica num enclausuramento, num isolamento, embora ela seja definida como superfície limitada e fechada, pois cada indivíduo ocupa um lugar definido e cada lugar é ocupado por um indivíduo em particular; é organizado, então, um espaço analítico.
É uma coletividade que não é composta por uma massa indistinta, mas por "células" identificáveis por sua posição e por sua ocupação, "células" em série. É também o lugar útil, funcional, tendo uma finalidade e uma especialização determinada. Numa fábrica, por exemplo, cada um dos indivíduos cumpre sua função, em série, em cadeia, articulados em todas as suas etapas, estágios ou operações. Além disso, "na disciplina, os elementos são intercambiáveis pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros. A unidade não é, então, nem o território (unidade de dominação), nem o lugar (unidade de residência), mas a fila: o lugar que se ocupa numa classificação, o ponto onde se cruzam linha e coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer um após o outro. A disciplina, arte da fila e tecnologia para a transformação das "arrumações". Ela individualiza os corpos através de uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações" (6).
"As disciplinas, ao organizar as "células", os "lugares" e as "filas" fabricam espaços complexos: simultaneamente arquitetônicos, funcionais e hierárquicos. São espaços que asseguram a fixação e permitem a circulação; elas recortam os segmentos individuais e estabelecem as ligações operacionais; elas marcam os lugares e indicam os valores; elas garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois regem a disposição dos edifícios, das salas, do mobiliário, mas ideais, pois se projetam sobre esta organização das caracterizações, das estimações, das hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é, então, a constituição de "quadros vivos" que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em massas organizadas. A constituição de tais "quadros" foi um dos grandes problemas da tecnologia cientifica, política e econômica do século XVIII: organizar os jardins de plantas e de animais e construir, ao mesmo tempo, as classificações racionais dos seres vivos;; observar, controlar, regularizar a circulação das mercadorias e da moeda (...); inspecionar os homens, constatar sua presença ou ausência e constituir um registro geral e permanente das forças armadas; separar os doentes, separando-os uns dos outros, dividir cuidadosamente o espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças (...)" (7).
O conjunto desses postulados demonstra claramente uma nova noção de homem e de sociedade: é o homem transformado em sujeito-objeto de sue próprio conhecimento, é a sociedade dos diversos países europeus que começam a sofrer as primeiras influências da revolução industrial nascente. É o tempo da transformação das escolas, da implantação de vários e grandes hospitais, da profissionalização dos exércitos, da "polícia sanitária", é a grande impulsão ao desenvolvimento das ciências do homem. É também o tempo da transformação do homem em objeto: dominação e controle sutis, ideológicos. No plano da arquitetura e do urbanismo, é o tempo do início da ascensão das idéias de utilidade, de função e de circulação: os bem conhecidos traçados retilíneos, da difusão do "tabuleiro de xadrez" e de sua conseqüente rigidez, do princípio de zoneamento: é necessário melhor organizar o espaço, através da eliminação de superposições inúteis, ordenar a "confusão" do espaço, desobstruir as vias – e perspectivas – congestionadas, "limpar", tornar lisível o espaço.
O refinamento das técnicas disciplinares se farão sentir também pelo estabelecimento e pelo controle das atividades, através dos horários pois se o tempo é pago, deverá haver um rendimento e um aproveitamento máximo. O indivíduo deverá estar ocupado durante todo o tempo, mergulhado em sua atividade. Ele deverá também executar suas tarefas com exatidão e regularidade; uma "elaboração temporal do ato", onde cada um dos atos são decompostos em todos os seus elementos e em seguida são definidas as posições ideais para o corpo, assim como para os membros e mesmo para suas articulações. Desta maneira, uma ordem é estabelecida, assim como de um ideal de execução, objetivando retirar do menor gesto, do menor movimento, o maior rendimento. Isto implica a imposição de uma correlação determinada entre os corpos e os gestos, de uma posição ideal: a melhor, a mais eficaz, isto é, aquela que permite a execução mais rápida das tarefas de trabalho. É também a ordem da articulação corpo-objeto que define o valor ótimo para a manipulação dos objetos pelos corpos, da utilização exaustiva dos tempos, sem nenhuma perda, o que quer dizer: intensificar ao máximo cada um dos instantes.
Toda a tecnologia para o aproveitamento máximo dos tempos e do gesto não teria lugar sem a imposição de um modelo, de uma regra, de um manual para a estruturação e a execução ao mesmo tempo global e particularizada das atividades dos grupos e dos indivíduos, através da classificação e da hierarquização de todos os tempos para todas as atividades possíveis: da formação à prática. Prática esta que passa a ser avaliada em todas as suas possibilidades, pelas aplicação de provas e de exames, que após uma análise geral determinarão as aptidões (ou o seu contrário) de cada um dos indivíduos e dos grupos. Essas normas transformam os indivíduos em "peças" de uma grande "engrenagem", que podem ser intercambiáveis, articuladas: uma nova flexibilidade, segundo as mais diversas necessidades. O resultado: a normalização do indivíduo e dos grupos.
Os hospitais projetados e construídos a partir da segunda metade do século XVII e durante todo o século XVIII já foram propostos a partir de um "núcleo" dos parâmetros acima descritos, pois à época já existia uma preocupação de propor e de resolver ao nível do projeto questões tais como a salubridade da edificação (aeração, iluminação, disposição dos leitos, limitação do número de pacientes por leito e por enfermaria), a determinação de uma forma ideal (em cruz) que prenunciava a seriação, assim como o início de uma hierarquização do espaço, o "embrião" do zoneamento funcional contemporâneo do edifício hospitalar (as zonas de hospitalização, de serviços, de administração, etc.). Pode-se perceber a existência de uma visão semelhante obras ainda mais antigas, como no Ospedale Maggiore de Milão, com projeto elaborado por Filarete, nas últimas décadas do século XV, considerado à época como sendo um modelo durante muito tempo e que marca a aparição da planta em cruz no edifícios hospitalar.
Apesar de podermos identificar a preocupação de ordem funcional nos espaços de outras épocas, como no hospital de Milão acima apresentado, foi ao longo do século XVIII que a "técnica disciplinar" tornou-se norma, modelando, pouco a pouco, os discursos, as práticas e o pensamento. Os relatórios produzidos por Tenon e por Howard são exemplares nesse sentido. Sobretudo aqueles produzidos por Tenon pois ele elaborou um verdadeiro conjunto de "normas", nas quais estabelecia como o hospital deveria ser concebido porque "não existe nenhuma obra sobre a formação e sobre a distribuição dos hospitais e ainda não se reuniu os princípios que colocariam em estado de julgar de suas perfeições ou imperfeições; fazia-se necessário, então, procurá-los. Primeira dificuldade" (8). E ainda "tratava-se de estudar os hospitais nos hospitais mesmo e de compreender o que uma longa experiência tinha indicado como perigoso ou marcado pelo selo da utilidade" (9).
Sob um outro ponto de vista, seus relatórios se apresentam como uma "síntese arquitetônica" desenvolvida com uma visão particular e precisa do edifício, através das atividades que se desenrolam no espaço, o que nos revela dois procedimentos complementares. Primeiramente, pelo desenvolvimento de um estudo cuidadoso das práticas do pessoal e dos pacientes, decompostas em seus modos e gestos. Em segundo lugar, pela recomposição dos dados obtidos através do estabelecimento de um manual contendo os padrões para a concepção dos espaços mais adequados ao desenrolar das atividades ou práticas estudadas. Em síntese, nas proposições espaciais apresentadas por Tenon ou na aplicação de seus postulados, a idéia de espaço funcional é perfeitamente clara. Essa idéia continuará a ser aperfeiçoada ao longo de todo o século XIX e do século XX, transformado-se aos poucos em categoria de análise de passagem obrigatória, apesar de todas as controvérsias e das diferentes versões doutrinais, para a elaboração de projetos arquitetônicos: um verdadeiro dispositivo disciplinar destinado a organizar as atividades, presente em todas as proposições espaciais, quaisquer que sejam suas destinações. É importante mencionar que essa categoria função e suas subdivisões (fluxo, circulação, hierarquia, modelo, zona, etc.) está tão arraigada na idéia mesma de espaço que se transformou numa das idéias matrizes para a arquitetura – tanto quanto a necessidade de luz – e assim, para todas as discussões ou proposições de projeto.
notas
1
Uma parcela do presente trabalho foi apresentado no "Congreso Internacional: el futuro del arquitecto – Mente, Territorio, Sociedad"; UPC/DEP. Projectes d’Arquitectura; Barcelona, España, 7-11 de junio 2000 com o título L’hôpital, ou la fonction dans l’árchitecture. O estudo ora apresentado foi dividido em seis partes. Cada uma das partes poderá ser lida independentemente pois cada uma das seções trata de um assunto diferentes. Contudo, para compreensão do assunto de fundo, ou seja, a discussão da gênese de uma idéia de função particular e sua apropriação pela arquitetura, o leitor deverá ter em mente que tal assunto é desenvolvido em todas as seis partes. Na sexta e última parte são apresentadas as conclusões do presente estudo, assim como a bibliografia de apoio. As partes deste artigo são:
SILVA, Kleber Pinto. "A idéia de função para a arquitetura: o hospital e o século XVIII – parte 1/6. Considerações preliminares e a gênese do hospital moderno: Tenon e o Incêndio do Hôtel-Dieu de Paris". Arquitextos, n.009. Texto Especial nº 060. São Paulo, Portal Vitruvius, fev. 2001 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp052.asp>.
SILVA, Kleber Pinto. "A idéia de função para a arquitetura: o hospital e o século XVIII – parte 2/6. A gênese do hospital moderno: saberes, práticas médicas e o hospital". Arquitextos, n. 010. Texto Especial nº 060. São Paulo, Portal Vitruvius, mar. 2001 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp060.asp>.
SILVA, Kleber Pinto. "A idéia de função para a arquitetura: o hospital e o século XVIII – parte 3/6. Disciplina ou formação do pensamento: a Razão das Luzes, Tenon e o hospital". Arquitextos, n. 012. Texto Especial nº 070. São Paulo, Portal Vitruvius, maio 2001 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp070.asp>.
SILVA, Kleber Pinto. "A idéia de função para a arquitetura: o hospital e o século XVIII – parte 4/6. Disciplina ou formação do pensamento: modelar o olhar, modelar o espaço". Arquitextos, n. 014. Texto Especial nº 085. São Paulo, Portal Vitruvius, jul. 2001 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp085.asp>.
SILVA, Kleber Pinto. "A idéia de função para a arquitetura: o hospital e o século XVIII – parte 5/6. Função, um Conceito?: Função x Funcionalidade x Funcionalismo". Arquitextos, n. 016. Texto Especial nº 095. São Paulo, Portal Vitruvius, set. 2001 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp095.asp>.
SILVA, Kleber Pinto. "A idéia de função para a arquitetura: o hospital e o século XVIII – parte 6/6. Função, um Conceito?: Aprendendo com Tenon e Considerações Finais". Arquitextos, n. 019. Texto Especial nº 111. São Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2001 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp111.asp>.
2
FOUCAULT, M., Surveiller et punir. La naissance de la prison , Paris, Gallimard, 1975, 360 p., pp 161-162
3
FOUCAULT, M., op. cit. , p. 162.
4
FOUCAULT, M., op. cit., p 161
5
O autor diz também que essas técnicas não são inteiramente novas. Cdada uma delas se desenvolveu individualmente ao longo do século XVII. Ao longo do "século das luzes" essas técnicas foram reunidas após um processo de refinamento, formando um "corpo de doutrina" como meio de melhor modelar a sociedade a partir de suas novas finalidades.
6
FOUCAULT, M, op. cit., p 171
7
FOUCAULT, M., op. cit., pp 173-174
8
TENON, J., Mémoires sur les hôpitaux de Paris, Paris, Doin/Assistance Publique-Hôpitaux de Paris, 1998, p. viii
9
TENON, J., op. cit., p. x-xi
sobre o autor
Kleber Pinto Silva é arquiteto; Doutor em Arquitetura (FAU/USP, 1999); Professor Assistente-Doutor do Departamento de Arquitetura, UNESP e Pesquisador-Associado junto ao LA/A Laboratoire Architecture/Anthropologie, Ecole d’Architecture de Paris-La Villette