As sociedades defrontam-se continuamente com novas definições e novas diretrizes para o desenvolvimento de percepções do mundo, relacionadas à busca de uma economia e de uma vida social mais justa. Hoje, evidencia-se sobremaneira a necessidade de inclusão da dimensão ambiental na educação e aqui ressaltamos, em especial, no ensino/prática da Arquitetura e do Urbanismo, apontando para a emergência do pensar a crise socioambiental.
Esta crise decorre, dentre outros aspectos, de longos anos em que a divisão disciplinar do conhecimento dificultou o reconhecimento da realidade tal como se apresenta na experiência comum. Na perspectiva interdisciplinar os objetos e assuntos são híbridos e por isto abrangem uma consideração além da condição científica disciplinar. A interdisciplinaridade é, neste sentido, uma das formas de enfrentamento destes desafios no ensino e na pesquisa. Em especial, destacamos estudos que relacionam arquitetura, urbanismo, meio ambiente, sociologia, antropologia e história.
Parece-nos que o ser humano começa a deixar de assumir aquele estatuto da “extraterritorialidade” ontológica e o mundo material de ser um “dado” intangível no qual o Homem deve se adaptar. Para melhor ou para pior o “real”, a arquitetura, o espaço urbano, o mundo material, torna-se mais permeável à intervenção demiúrgica dos seres humanos expostos à realidade de suas ações, de seus desejos e fantasmas. Alguns diriam tratar-se de uma naturalização” do ser humano e uma “antropização” do mundo material. Diríamos com E. Hall que “o homem e suas extensões constituem um sistema inter-relacionado. É um erro agir como se os homens fossem uma coisa e sua casa, suas cidades, sua tecnologia, ou sua língua, fossem algo diferente” (2).
No plano da percepção e da representação, da imagem do espaço urbano Kevin Lynch é referência fundamental nas pesquisas que valorizam esta relação homem X espaço, imagem X real, arquitetura X meio ambiente X desenho/paisagem urbana. A representação social e imagética sobre o espaço da cidade vista como um conhecimento que possibilita aos ambientes urbanos visibilidades como cidades únicas. As implicações políticas são significativas quando pensamos que é esta parte material/visível da realidade que sofre mudanças condicionadas por forças que definem as leis sobre o zoneamento urbano, os valores dos espaços no mercado imobiliário e sobre as estéticas arquitetônicas.
Na reflexão sobre as fronteiras entre o “real” e o “imaginado” Kevin Lynch considera que a imagem é formada pelo conjunto de sensações experimentadas ao observar e viver em determinado ambiente. E assim as imagens do meio ambiente resultam desta relação entre o observador e o seu habitat, seu meio. Entretanto, o sentido que ele dá para o que vê pode variar entre diversos observadores e estas diferenças dependem das suas características individuais, mas também dos conhecimentos/ aprendizagens/preferências que são sociais e culturais. Neste sentido, tornar-se relevante estudar as percepções dos usuários das áreas alvos de projetos de urbanização ou de intervenções que visam promover a requalificação de praças, parques, centros históricos, bairros, etc.
Convém ressaltar que a percepção mental apreendida pelo indivíduo, suas avaliações e preferências sobre o ambiente, de caráter subjetivo, mas também sociocultural, não representa toda a cidade, mas indivíduos que compartilham situações semelhantes no tempo e no espaço, que vivenciam as mesmas experiências perceptivas e que por isto tendem a formar imagens mentais semelhantes. Para Kevin Lynch, “parece haver uma imagem pública de qualquer cidade que é a sobreposição de muitas imagens individuais” (3).
Neste texto apresentaremos parte dos resultados de um trabalho desenvolvido sobre percepção dos usuários de uma Praça no centro histórica da cidade de João Pessoa, local de protestos políticos e concentrações dos movimentos sociais, mas também do comércio ambulante e outras atividades urbanas. Abordamos o tema sob a luz de conceitos como “legibilidade” e “morfologia urbana” dentro do processo de formação da imagem do lugar dando ênfase à leitura que os indivíduos fazem do espaço público contemporâneo, fundamentado no referencial teórico de Kevin Lynch.
Tal estudo tem por propósito compreender como as mudanças no desenho de uma área urbana – a praça Vidal de Negreiros conhecida popularmente como “Ponto de Cem Réis” – influenciaram na percepção e imagem urbanas e como isto influenciou, ou ainda influencia, o comportamento dos usuários em seu uso atual. O estudo foi encaminhado utilizando como fundamentação e roteiro o método apresentado por Kevin Lynch em seu livro A imagem da cidade (1997), trabalhando conceitos como “imaginabilidade”, “legibilidade” e “morfologia urbana”. Articulados, ainda, aos trabalhos de Vicente Del Rio em Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento (4) e de Gordon Cullen em especial seu conceito de visão serial, em obra intitulada The concise townspace (5), na qual a paisagem urbana é definida como uma série de espaços correlatos.
Os autores, em seus trabalhos citados, têm em comum o estudo da percepção ambiental, cujos objetivos principais são a identificação de imagens públicas e da memória coletiva como instrumento capaz de auxiliar o Desenho Urbano na prática do planejamento.
O homem precisa ler o ambiente em que se insere em busca de referências e orientação, o que ajuda a construir uma percepção do usuário sobre o espaço. Um ambiente de fácil leitura é, então, um ambiente com boa legibilidade. Ou seja, facilmente diferenciável, singular. A leitura da imagem formada pelo usuário denuncia quão legível é esse espaço, bem como o grau da relação habitante-cidade, fator importante no uso desses espaços.
Essa análise torna-se especialmente interessante quando se trata de áreas históricas e possíveis intervenções urbanísticas, pois, nesse caso, trabalha-se também com a memória coletiva, traços da histórica do lugar que por vezes são recriados, atualizados em entrelaçamentos entre vivências, práticas e representações. Nesse sentido, antes de promover mudanças nessas áreas é necessário avaliar o tipo de relação que o usuário estabelece com este espaço, a memória e seus significados segundo as imagens e representações daqueles que circulam no lugar.
Atualmente são inúmeras as iniciativas para a revitalização de áreas históricas nos centros urbanos, muitas delas referenciadas como Centros Históricos, reconhecido seu valor e sua crescente importância no debate e formulação de políticas públicas. Em geral, são ações que buscam recuperar valores, usos desses espaços, perdidos ou alterados ao longo do crescimento das cidades.
Os planos para intervenções públicas e renovação urbana que se desenvolveram nos anos de 1960, a partir da 2ª Grande Guerra Mundial destinaram-se, especialmente, à recuperação de áreas dos antigos centros que haviam sido bombardeados ou eram considerados em decadência. Citamos como exemplos marcantes desse período, segundo menção feita por Vicente Del Rio (6): áreas na cidade de Coventry (Inglaterra), Rotterdam (Holanda) e Berlim (Alemanha). Sendo esses novos planos baseados nos preceitos defendidos nos Congressos de Arquitetura Moderna e na Carta de Atenas. Em países tidos como do Primeiro Mundo, como nos Estados Unidos, esses trabalhos de intervenção urbana abordavam tanto áreas centrais quanto habitacionais e/ou comerciais que estivessem em situação de esvaziamento. Esse esvaziamento, na maioria das vezes, não era causado pelas condições físico-ambientais, mas por outro lado, “pelas próprias políticas regionais vigentes e de outro, pelos novos modos de vida e paradigmas buscados pela classe média, insuflados pela sociedade de consumo” (7).
De maneira geral, nas diversas cidades em nível mundial, a população foi se afastando das áreas centrais em busca das condições ideais de moradia, atraídos pela oferta de infra-estrutura em espaços onde tudo era corretamente planejado, e com ela as grandes empresas também entraram no processo de migração em busca do melhor meio para sua atuação, ou seja, onde houvesse um público consumidor. Com a formação de uma sociedade de consumo veio a nova forma de comprar em Shopping Centers – espaços “semi-públicos”, reservados e planejado para um público com potencial de consumo. Vicente Del Rio descreve esse processo migratório urbano:
“As áreas centrais se deterioraram física, econômica e socialmente; os grupos mais abastados se instalariam em suas novas casas de subúrbio, o comércio e as atividades culturais perseguiram seu mercado, mudando para os subúrbios, os imóveis das áreas centrais passaram a apresentar alto índice de deterioro e abandono, os grupos menos favorecidos herdariam estas condições e os cortiços e guetos se formariam” (8).
Esse processo inicialmente registrado em grandes cidades do Primeiro Mundo também atinge as cidades dos países menos desenvolvidos, em outro período histórico, algumas décadas à frente. Como exemplo desse processo temos grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, mas também médias cidades como Fortaleza, Natal, Aracaju e João Pessoa, estas últimas no Nordeste brasileiro, só para citar algumas delas, pois são inúmeras e de diferentes tamanhos e formas as cidades alvo destas políticas de desenvolvimento baseadas em projetos ou estratégias de revitalização urbana cujas áreas centrais passam por importantes estudos de investigação da renovação urbana e cujo processo de urbanização inspira muitos trabalhos como o realizado por Jovanka Scocuglia, Revitalização urbana e reinvenção do centro histórico de João Pessoa – 1987-2002 (9).
O caso da cidade de João Pessoa possui peculiaridades analisadas por Jovanka Scocuglia (2004), mas também processos que se inserem na linha hegemônica destas intervenções que poderíamos dizer que são globais. No Nordeste e em especial na cidade de João Pessoa este fenômeno se intensifica, sobretudo, a partir dos anos de 1970 quando as antigas áreas centrais vão gradativamente perdendo seu valor funcional e se consolidando um investimento em infraestrutura e de capital imobiliário que desloca grande parte do desenvolvimento da cidade em direção ao litoral. O centro que até então congregava funções de serviço e lazer, passa a restringir-se apenas ao primeiro (e por curto período de tempo, pois pouco tempo depois nos anos oitenta e noventa estes serviços também migrarão para os novos bairros em áreas mais valorizadas).
Nas últimas duas décadas, a partir de meados da década de oitenta, são intensificados os estudos sobre o centro histórico de João Pessoa assim como os trabalhos de catalogação de seu patrimônio histórico-cultural a partir do Convênio Brasil/Espanha de cooperação internacional com parceria do IPHAEP – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (10). Ressalta-se o fato de que as propostas de intervenção no centro histórico da cidade, em geral, mediadas e executadas pelos órgãos públicos federais, estaduais e municipais ou em parcerias com iniciativas privadas ou órgãos transacionais, não procederam a um estudo prévio sobre como os usuários desses espaços o enxergam dentro do contexto urbano, nem ao levantamento da história do local de forma sistematizada a fim de orientar uma possível intervenção.
Reconhecendo a relevância desses estudos e a complexidade das intervenções urbanísticas em áreas já consolidadas, mesmo que estas estejam em processo de degradação ou abandono, seria importante que antes da elaboração de uma proposta de intervenção fosse diagnosticado como esse espaço foi e está sendo, apreendido ou compreendido pelos usuários, pelos cidadãos. Assim, os trabalhos de intervenções em áreas históricas deveriam antes passar por essas etapas, em que estariam sendo avaliadas a legibilidade, a formação da imagem do lugar e a morfologia urbana da área. Deste modo, pensamos ser possível a elaboração de propostas que promovam mais a inclusão social, valorizem a história local estimulando as vivências nos espaços públicos e privados, bem como a reinvenção/ recriação das memórias nos espaços, mas que sejam ao mesmo tempo elementos de desenvolvimento social e econômico para municípios, que reinventem sua historicidade e que sejam funcionalmente adequadas.
A ausência de estudos socioambientais, de análises que valorizem a percepção dos usuários, dos cidadãos alvos das políticas urbanísticas e, em especial, das intervenções de requalificação de áreas de centros históricos, talvez seja uma das razões pelas quais nos estudos sobre os processos de mudança relativos ao patrimônio cultural, costuma-se ver como “ameaças” o desenvolvimento urbano, as indústrias culturais e o turismo, ao invés de serem considerados como contextos em que hoje os bens históricos existem e cujos recursos como televisão, rádio, cinema, CDs e vídeos às vezes são tão significativos quanto os bens tradicionais considerando-se o papel que desempenham na difusão, socialização e renovação de comportamentos (11).
Supõe-se, nesta mesma lógica, a possibilidade de uma memória e de patrimônios culturais “autênticos”, uma “identidade autêntica” brasileira sendo descaracterizada pela “revitalização” associada à cultura de massa, pela lógica do consumo nas atividades de entretenimento e de turismo nos centros históricos. Porém, não se pode pensar o processo de rememorização como sendo estático, “a tradição nunca é mantida integralmente” e “não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos” (12). É esclarecedora aqui a distinção que Renato Ortiz desenvolve entre memória coletiva e memória nacional para distinguir entre o popular e o nacional:
“A memória coletiva é da ordem da vivência, a memória nacional se refere a uma história que transcende os sujeitos e não se concretiza imediatamente no seu cotidiano (...) a memória coletiva se aproxima do mito e se manifesta, portanto ritualmente. A memória nacional é da ordem da ideologia, ela é o produto de uma história social, não da ritualização da tradição (...) a memória coletiva dos grupos populares é particularizada, ao passo que a memória nacional é universal. Por isso o nacional não pode se constituir como prolongamento dos valores populares, mas sim como um discurso de segunda ordem” (13).
Neste sentido, as contradições e desigualdades que as relações sociais assumem no uso do patrimônio interferem e resultam em interações complexas entre o Estado, o setor privado e diferentes grupos e movimentos sociais e culturais urbanos, as quais estão claramente expressas nos processos de “revitalização” de centros históricos desenvolvidos no Brasil nas últimas décadas.
Desta forma, considera-se que o espaço urbano e a arquitetura enquanto lugares simbólicos sempre implicados na memória coletiva, nos valores de grupos sociais determinados, até mesmo na economia local, indicam uma possibilidade de articulação entre a política dos lugares e o consumo dos lugares de memória, sua produção, uso e apropriação por grupos sociais diferentes, gerando, muitas vezes, não apenas o esvaziamento e o privatismo, mas uma espacialidade pública a partir de sociabilidades centradas no sentimento de pertencimento que as pessoas elaboram diante dos processos de resignificação e requalificação das paisagens e da arquitetura. Por isto mesmo, produzir/recriar espaços públicos é uma tarefa que exige a contextualização e a inserção de valores não apenas econômicos, mas sócio-culturais, uma vez que as informações veiculadas pelo espaço aos seus usuários passam por análises e seleções psicosociais gerando em cada indivíduo uma experiência diferente que determinará sua forma de relacionar-se com o meio.
O urbano, o Ponto de Cem Réis e as intervenções urbanísticas modernizadoras
As primeiras transformações urbanísticas na cidade de João Pessoa começaram ainda no início do século XX, sobretudo a partir das décadas de 1920-30 com a construção de grandes praças, instalação de transportes coletivos (bondes), serviços de água encanada, energia elétrica, saneamento e abertura de ruas e avenidas.
O logradouro em foco, a Praça Vital de Negreiros (vulgo Ponto de Cem Réis) nasceu devido à confluência das três linhas de bondes elétricos, instalados em 1914, que serviam a população: Varadouro, Trincheiras e Tambiá. O apelido do lugar, até hoje utilizado, deve-se ao hábito que os condutores tinham de ao chegarem na Praça gritar: Ponto de Cem Réis! Este era também o valor da passagem.
Em 12 outubro de 1924 foi a inauguração da Praça Vidal de Negreiros, que logo ficaria conhecida como Ponto de Cem Réis – uma marca simbólica do seu uso. A Praça surgiu como resultado de uma intervenção na área onde, antes, localizava-se a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Na ocasião, o então presidente do Estado, Sólon de Lucena, discursa sobre a importância da área e sua simbologia:
“Toda vez que se sentirem diminuídos nas suas liberdades coletivas, que toda vez que tiverem que cogitar de uma comemoração cívica, de defender uma idéia nobre, toda vez que tiverem que confabular por um princípio de honra nacional, o façam na Praça Vidal de Negreiros, que evoca o espírito forte, adamantino, daquele que melhor defendeu nossa nacionalidade” (14).
Em 1951, uma nova intervenção substituiu alguns elementos físicos, como a coluna com o relógio pelo busto de Vidal de Negreiros (ver figura 2), ao centro, e do pavilhão em estilo eclético por dois novos pavilhões em estilo moderno. Eram nos pavilhões onde os encontros eram marcados e a vida da cidade se desenrolava. Não passadas duas décadas, a área sofreu uma quarta intervenção, essa modificação foi a mais significativa, mudando completamente a fisionomia e a identidade do lugar com a construção de um viaduto, inaugurado em 17 de julho de 1970 (ver figuras 3, 4 e 5). Com essa intervenção foram retirados os pavilhões e o estacionamento para os carros de aluguel.
Disposição da Praça Vidal de Negreiros em períodos diferentes e suas alterações
A Praça Vidal de Negreiros caracteriza-se como um marco da modernização dos transportes, local de concentração de reivindicações públicas, lugar de encontros, e mais tarde, o local é palco da construção do símbolo do progresso dos anos 1970, o viaduto. Seu entorno caracteriza-se pela forte presença de empreendimentos comerciais e edificações antigas: o casario que pertenceu à família dos Ávila Lins, o Paraíba Palace Hotel, iniciado nos anos de 1920, Edifícios Régis e Duarte da Silveira, ambos símbolos do movimento moderno no Estado, e pelas ruas Visconde de Pelotas e Duque de Caxias.
O entorno da Praça caracteriza-se pela presença de muitas construções comerciais e a presença de antigas construções, como o Paraíba Palace Hotel, símbolo de riqueza e elegância para a sociedade da época.
Considerando a importância histórica do local e as transformações sofridas, essa análise busca avaliar a legibilidade, a formação da imagem e a morfologia urbana da área em foco procurando entender a ligação entre o usuário e o lugar, bem como antever alguns dos condicionantes para elaboração de futuros projetos de intervenção.
O processo entendido como análise visual e o estudo da morfologia de uma área está intimamente relacionado com a imagem final gerada pelo usuário, resultado da percepção deste do meio em que se insere. Assim, dentre os diversos fatores que influenciam na formação dessa imagem – como o significado social da área, sua função e história, etc – destacamos agora os efeitos dos objetos físicos perceptíveis levando em consideração que “a forma deve ser usada para reforçar o significado, e não para negá-lo” (15).
Os elementos físicos relativos à forma de um espaço e que determinam a imagem da cidade são reconhecidos por Lynch como: vias, limites, bairros, pontos nodais e marcos. Pela escala do ambiente urbano que escolhemos trabalhar, não faremos maiores menções sobre bairros.
Os canais de circulação, ou vias, mais utilizados são as ruas Duque de Caxias e Visconde de Pelotas, também reconhecidas com ‘portas de acesso’ para a praça. Ainda como elementos de circulação temos os percursos laterais – vias laterais – que servem também de ligação entre as ruas anteriormente citadas, porém raramente esses caminhos cruzam o interior da praça.
Sobre os limites, que podem ser reconhecidos como elementos de interferência na paisagem urbana, destacamos o viaduto Damásio Franca e os prédios comerciais. O primeiro se apresenta como um recorte na paisagem fragmentando a praça em zonas distintas e utilizadas de forma desigual uma vez que tal interferência dificulta a leitura do todo. Apesar do seu desenho ter coerência com a memória do lugar – cujo núcleo era utilizado como estacionamento, tendo como marco uma coluna central que sustentava um relógio, e este circundado pelas linhas dos bondes – tal recorte transpõe a barreira física gerando áreas distintas em um mesmo espaço, com diversidade de significados. Com isso, observa-se uma área central que deveria ser utilizada para permanência e contemplação, mas que se verifica muitas vezes desértica, e áreas laterais para circulação que acabam por assumir a função de permanência por sua acessibilidade e estrutura. O outro elemento limítrofe é composto pelas edificações que caracterizam o entorno, apresentando-se ainda como marcos.
Os marcos são referenciais externos “geralmente utilizados como indicadores de identidade, ou até de estrutura” (16), podendo apresentar grande valor histórico na memória dos usuários. Destacamos como marcos significativos do Ponto de Cem Réis o Paraíba Palace Hotel, o Edifício Régis e a rua Duque de Caxias.
No entanto, a poluição visual por placas e anúncios em cores diversas prejudica a leitura das fachadas de prédios como os acima citados e outros como o Edifício Duarte da Silveira e a residência dos Ávila Lins, o que demonstra o descaso com edificações que antes serviram de identificadores do espaço da Praça Vidal de Negreiros. Assim, um dos componentes da escala ambiental é comprometido – a identidade. E, conseqüentemente, a imagem formada pelo usuário dessa área pública.
Os pontos nodais “são (...), lugares estratégicos de uma cidade através dos quais o observador pode entrar, são os focos intensivos para os quais ou a partir dos quais ele se locomove” (17). Os que identificamos no local foram as áreas onde se concentram os engraxates na “entrada” da praça pela Visconde de Pelotas e o ponto de encontro dos aposentados, marcado pela arborização que convida à permanência e ao descanso. Outro ponto nodal seria um trecho da rua Duque de Caxias convidativo pelos seus bancos e árvores de pequeno porte, em uma área de grande fluxo.
Essas foram as categorias de elementos físicos perceptíveis identificados na análise visual da Praça Vidal de Negreiros, no estudo de sua forma e morfologia urbana, a fim de fazermos uma primeira leitura do espaço antes partirmos para a análise da percepção dos usuários.
O conceito de vias para os usuários não é o mesmo entendido por Kevin Lynch, ou seja, os entrevistados não mencionaram seus percursos internos na Praça por entenderem como vias ruas e avenidas. A mais citada como percurso e até mesmo como ponto de permanência é a Rua Duque de Caxias. Enquanto que a Avenida Padre Meira é a mais citada quando os usuários se referiam ao trajeto percorrido no deslocamento do Parque Sólon de Lucena até o Ponto de Cem Réis. Ainda como referência viária temos a Rua Visconde de Pelotas, único caminho de acesso de veículos. Um dos entrevistados ainda lembra de citar a Avenida General Osório.
Segundo Lynch, uma imagem ambiental pode ser decomposta em três componentes: identidade, estrutura e significado. Identidade no sentido de unicidade, o reconhecimento do lugar como entidade separável, individual. Assim, um objeto ou lugar que apresenta uma boa imagem, ou uma imagem viável, é também aquele apreendido pelo usuário como único, que se diferencia facilmente de outros por características próprias e únicas. Com relação ao segundo componente, a imagem refere-se à relação espacial e interação com o usuário. Por último, esse objeto ou lugar deve ter algum significado para o observador, seja ele prático ou emocional.
Para os usuários os limites são fortemente representados pelas ruas Duque de Caxias e Visconde de Pelotas – apesar de Lynch não considerar vias de circulação como limites. O Viaduto Damásio Franca é outro elemento também importante no sentido de demarcar o lugar (figuras 8 e 9). Porém, poucos identificaram as edificações sendo mencionadas como limites, talvez pela pouca expressividade/visibilidade que possui apesar dos inconvenientes em termos urbanísticos e desperdícios por estar desativado há muitos anos.
Assim como na análise anterior, os usuários também destacaram a área onde se fixam os engraxates como local de maior concentração de pessoas (figura 12), Pontos Nodais. Ainda que para a maioria falte infra-estrutura, é naquele ambiente onde eles passam a maior parte do tempo quando estão na Praça. Muitos não explicaram o porquê da escolha daquele ponto, porém alguns mencionam a questão do conforto térmico devido a presença de árvores de grande porte no local, tornando o espaço sombreado e agradável. Confirmamos essa visão quando alguns entrevistados mencionaram a impossibilidade de permanência no centro da Praça por falta de arborização adequada, local onde há também fontes e espelhos d’água desativados (ver figuras 8, 10 e 22).
Outro fator importante para tal falta de ocupação da área central seria o desnivelamento do piso (ver fotos da área, foto 17 desnível e outras), sendo este mencionado como elemento que isola regiões dentro do Ponto de Cem Réis, e pela memória coletiva que se refere àquele lugar como espaço utilizado por prostitutas e “cheira-colas”. A falta de segurança inibe os usuários.
Apesar da pouca manutenção e do mau cheiro, os bancos onde as pessoas sentam para conversarem, em especial, os aposentados da cidade, localizados na Duque de Caxias também são percebidos como Pontos Nodais, pois caracterizam-se como pontos de permanência em uma via de grande fluxo e destinada unicamente ao passeio público.
Através da análise dos marcos, presentes na memória do usuário podemos observar com maior eficácia a falta de legibilidade da Praça Vidal de Negreiros. Vários pontos de referência foram citados ao pedirmos que os entrevistados descrevessem a Praça e como chegar nela e houve certa dificuldade na localização dos mesmos. Observa-se então, que os marcos não são tão expressivos, gerando percepções múltiplas.
Mesmo que não mais existam fisicamente ou que estejam em desuso, como é o caso das cafeterias, do Cinema Plaza e da fonte no centro da Praça, respectivamente, esses elementos ainda são tidos como marcos. Para os que conhecem bem a história do Ponto de Cem Réis, até mesmo os antigos pavilhões e o bonde apresentam-se como marcos sensitivos, além da coluna com o relógio. Para estes entrevistados era mais fácil identificar esses elementos de referência e muitas vezes referiam-se a estes como forte saudosismo.
A escolha de um marco, segundo Lynch, é feita dentro de um conjunto de possibilidades, prezando a singularidade – algum aspecto único ou memorável no contexto. Assim, quando esse tipo de elemento físico possui forma clara e contrasta com seu plano de fundo, torna-se mais perceptível. Dentro da análise que fizemos, a partir das entrevistas com os usuários, podemos observar esse fato com mais clareza. Pois, são as lojas, devido as suas fortes cores na fachada, pelas vitrines e letreiros, que marcam mais acentuadamente a imagem do Ponto de Cem Réis para os seus observadores, fazendo das lojas comerciais os mais claros pontos de referência. Nesse sentido, temos a “Insinuante”, a “Ótica Maia” e a “Neywa” como os maiores exemplares. Ressalte-se ainda o papel do marketing, do consumo na construção destas referências e imagens espaciais.
Ao final os entrevistados foram perguntados se e qual modificação eles fariam naquela área. O que pudemos observar foi que apesar de não serem capazes de construir uma imagem clara, de terem uma legibilidade boa da Praça nenhum deles promoveria mudanças físicas de grande porte ficando suas reivindicações na melhoria da infraestrutura da Praça – cuidado com as calçadas cheias de buracos que até acidentes já causaram, ampliação e cuidado do seu mobiliário urbano como bancos, postes para iluminação pública, implantação de banheiros públicos, aproveitamento adequado da área do viaduto, policiamento principalmente à noite, cuidado com sua vegetação e implantação de lanchonetes.
Para finalizar, destacamos nesta análise os “mapas mentais” que foram de grande importância, pois são representações do espaço elaboradas em imagens pelos próprios usuários. Analisamos na seqüência alguns dos desenhos feitos pelos entrevistados quando solicitados a ilustrarem o espaço da Praça Vidal de Negreiros, seus percursos habituais e seu(s) local(is) de permanência (estão registrados nas figuras 9, 10, 11, 12 e 13). Deixados livres para representarem como quisessem o ambiente em que se encontravam e freqüentavam, destacando ou não marcos ou pontos de referência, fornecemos apenas papel e lápis. As representações foram as mais diversas possíveis e destacamos aqui alguns dos desenhos mais relevantes para nosso estudo por mostrarem com clareza os elementos que buscamos determinar – vias, marcos, limites, etc – e por mostrarem-se imagens pessoais cuja ligação com o campo subjetivo mostrou-se bastante estreita.
Destacamos em primeiro lugar o desenho reproduzido na figura 5 pelos detalhes que o entrevistado conseguiu registrar. Começamos a analisar o formato circular da praça, fator comum à maioria dos desenhos, ou seja, quase todos os usuários do local a entendem como uma área circular e limitam sua área ao espaço interno delimitado pelo viaduto Damásio Franca. O que comprova que a forma da praça não é entendida como se apresenta lembrando que o desenho não corresponde ao seu formato real e que sequer é possível percorrer o perímetro dessa área interna – seu miolo – em um percurso de 360°, como indica os desenhos feitos. Outro fator interessante, ainda sobre os pontos levantados, é que, para alguns, a área da praça restringe-se a uma área interna criada pelo recorte que o Viaduto faz da área total. Assim, a presença desse elemento físico ‘limítrofe’, o Viaduto, também representado nesse desenho, não permite que o usuário apreenda, a área de entorno que circunda o espaço considerado como sendo a praça.
Destacamos a figura 9 por ter sido uma das poucos a representar, apesar de representado com uma forma diferente da “real”, a dimensão mais detalhada do que se encontra hoje na Praça com a inclusão de seus elementos limítrofes como a área dos engraxates e referência às árvores (ponto nodal), o vão criado pelo viaduto em frente ao Paraíba Palace Hotel e a alça viária do viaduto (limites) e a calçada do mesmo (via), bem como alguns prédios como o próprio Paraíba Palace Hotel e o prédio do IPASE (marcos), este último sendo destacado pelo nome. Observamos ainda a indicação de alguns elementos na parte interna da Praça como as escadarias de acesso – inclusive, a única entrada assinalada – o mastro e o desenho do local onde este está inserido. Novamente, as formas geométricas da praça e dos seus elementos são apreendidas pelos usuários como formas circulares mesmo sendo polígonos hexagonais.
Com relação às entradas e saídas, ainda na figura 9 o usuário representa apenas um ponto de entrada que é a escadaria que dá acesso a parte interna da Praça e também não faz menção às ruas Visconde de Pelotas e Duque de Caxias, mencionadas com freqüência pelos demais entrevistados.
Na figura 10, o desenho elaborado por outro usuário demonstra que ele também entende o espaço da praça como sendo circular destacando alguns elementos físicos, como as árvores e bancos. Mostra ainda um marco-referencial, que caracteriza a área, o Paraíba Palace Hotel (indicado pela sigla PH), porém dentro da praça, enquanto ele está, na verdade, à direita da via criada pelo Viaduto e assinalada no desenho. Dessa forma, ele incorpora o prédio do Paraíba Palace Hotel à praça e destaca como vias principais a Rua Visconde de Pelotas, acima, e a Av. Padre Meira, à direita.
A figura 11 é a única que mostra alguns dos elementos internos da Praça com o formato “real”, como também sua forma retangular e não circular. E que não se define na parte delimitada pela alça viária do viaduto. Além de marcar as ruas mencionadas.
Na figura 12 outro usuário confirma novamente a representação circular para a Praça Vidal de Negreiros sem distinção para a área interna criada pelo Viaduto. Há referência ao Viaduto desativado, à rua Duque de Caxias (vias), algumas edificações de entorno como o Edifício Duarte da Silveira (marcos), à vegetação na área que marcaria o local dos engraxates (ponto nodal). Porém, essa representação se dá de forma desordenada sem corresponder, absolutamente, à disposição atual destes elemento no local – a exemplo das vias desenhadas convergindo todas para o centro da Praça, as edificações ‘circundando’ a área, etc.
Dos desenhos apresentados, a figura 13 nos chamou mais a atenção por sua subjetividade. O entrevistado era um ‘cadeirante’, filho de um engraxate local e que sempre acompanha o pai no seu trabalho na Praça durante alguns horários do dia. O que ele faz é, na verdade, o retrato do que ele vive no espaço da Praça, ou seja, as árvores e os boxes dos engraxates. Lembrando algumas palavras de Lynch:
“Temos a oportunidade de transformar o nosso novo mundo urbano numa paisagem passível de imaginabilidade: visível, coerente e clara. Isso vai exigir uma nova atitude de parte do morador das cidades e uma reformulação do meio em que ele vive. As novas formas, por sua vez, deverão ser agradáveis ao olhar, organizar-se nos diferentes níveis no tempo e no espaço e funcionar como símbolos da vida urbana” (18).
Esse estudo deve ser visto como uma sugestão de análise preliminar na elaboração de futuras propostas de intervenção urbana no sentido de otimizar o potencial de uso da área, revitalizando sua história e fornecendo aos habitantes da cidade um local de uso coletivo convidativo e agradável. Encontra-se em fase final de elaboração um projeto de redesenho da Praça Vidal de Negreiros por parte de profissionais ligados a nova gestão pública municipal (2005-2008). Esperamos ainda haver tempo para, com esta publicação, darmos publicidade ao tema e ampliarmos nossa contribuição do plano teórico para o prático, fornecendo subsídios para a discussão desta proposta de intervenção em área tão importante da cidade em termos históricos, memoriais, cívicos e urbanísticos.
Essa abordagem não tem por fim solucionar o problema da inserção do usuário aos novos projetos urbanos, mas objetiva colocar em pauta a discussão sobre a inserção daquele nos projetos de intervenção em áreas públicas, uma vez que o impacto dessas medidas pode tanto ser positiva quanto negativa a esses espaços e, sobretudo, aos seus usuários, tendo-os sempre como referências fundamentais. É, a relação que o indivíduo mantém com o espaço que o cerca, o que mais influencia na sua forma de uso, significação e valorização. Portanto, é sobre essa ligação que precisamos iniciar a elaboração de novos projetos buscando reconhecer o potencial de uso da área, suas marcas histórias e o que esse espaço representa na memória coletiva de seus habitantes.
notas
1
O presente texto é fruto de pesquisa desenvolvida no âmbito do Estágio Curricular Supervisionado para o Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) pelas alunas Carolina Chaves e Juliane Lins, sob orientação da Profa. Dra. Jovanka B. Scocuglia, referente ao aprofundamento de estudos anteriores sobre parques e praças da cidade de João Pessoa desenvolvidos entre 2004/2005 na disciplina Elementos de História da Arte e da Arquitetura e posteriormente nas disciplinas História da Arquitetura e Urbanismo no Brasil I e História da Arquitetura e do Urbanismo III, ministradas pela referida professora.
2
HALL, Edward. “A dimensão oculta”. Apud ELALI, Gleice Azambuja. Psicologia e arquitetura: em busca do locus interdisciplinar. Disponível em: <http://biblioteca.universia.net/ficha.do?id=621084>. Acessado em: jan. 2004.
3
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 51.
4
DEL RIO, Vicente. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo, Pini, 1990.
5
CULLEN, Gordon. The concise townspace. London, The Architectural Press, 1971.
6
DEL RIO, Vicente. Op. cit.
7
Idem, ibidem, p. 20.
8
Idem, ibidem, p. 2.
9
SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy C. Revitalização urbana e reinvenção do centro histórico na cidade de João Pessoa – 1987-2002. João Pessoa, Editora Universitária UFPB, 2004. E ver também da mesma autora: Cidadania e patrimônio cultural. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2004.
10
Ver a respeito os livros de Jovanka Scocuglia (op. cit.), nos quais estes processos são analisados bem como a história recente do patrimônio cultural em suas interfaces entre o global, o nacional, o regional e o local. Trata também dos usos e dos contra-usos dos espaços públicos e do patrimônio cultural urbano na contemporaneidade.
11
CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. México DF, Grijalbo, 1989; “O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional”. Revista do IPHAN, nº 23. Rio de Janeiro, 1994, p. 94-115; Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1995.
12
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 132.
13
Idem, ibidem, p. 135-136.
14
AGUIAR, Wellington Hermes Vasconcelos de. Cidade de João Pessoa: a memória do tempo. João Pessoa, Idéia, 3ª ed., 2002, p. 241.
15
LYNCH, Kevin. Op. cit, p. 50.
16
Idem, ibidem, p. 53.
17
Idem, ibidem, p. 52.
18
Idem, ibidem, p. 101.
sobre os autores
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, docente e pesquisadora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPB. Doutora em Sociologia/UFPE.
Carolina Chaves, estudante e pesquisadora do PIBIC junto ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPB).
Juliane Lins, estudante do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPB.