Tempus edax rerum tuque, invidiosa vetustas, omnia destruitis vitiataque dentibus aevi paulatim lenta consumitis omnia morte
Ovídio, Metamorfoses 25.234
Ovídio (Púbio Ovídio Nasão, 42 AC – 18 DC), em um dos mais belos poemas da antiguidade latina, Metamorfoses, escreveu: “O tempo, que tudo devora, e tu, invejosa velhice, vós tudo destruís, e tudo que foi afetado pelo passar dos anos, consumis, pouco a pouco, pela morte” (1). Esta passagem, uma das mais famosas da literatura ocidental, cifra em versos a consciência humana do tempo e a certeza da inelutável morte individual, consciência angustiante que Ovídio apazigua com a transformação ininterrupta do mundo natural: “Coisa alguma conserva sempre a mesma aparência, e a natureza renovadora encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre, acreditai-me, no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados” (2).
A tradição materialista ganha aqui um dos seus mais altos elogios e, mesmo sendo contestada pelas hegemônicas manifestações religiosas por largo tempo – que via na transcendência da eternidade e da divindade as verdades que justificavam a trágica existência temporal e sua infalível decadência material –, resistiu com vigor através das eras, como um rio subterrâneo e sombrio, mas surpreendentemente caudaloso.
Na Renascença italiana o verso ovidiano voltou à tona, tornando-se adágio recorrente. Um pintor anônimo, que ficou para a posteridade como Hermannus Posthumus, realizou em 1538 a intrigante obra Paesaggio fantastico con rovine, onde, em meio às ruínas arquitetônicas do passado clássico que se estendem por uma imensa planície, é possível se ler em uma lápide de mármore “Tempux edax rerum...” Ao fundo, imponente, uma cordilheira imensa e intransponível como a eternidade, que se debruça sem muito interesse sobre o incansável e sem sentido frenesi humano.
A relação alegórica entre a morte e ruína, assim como entre natureza e eternidade, foi, na tradição ocidental, temas recorrentes em diversas manifestações estéticas ao longo dos séculos, estando presentes no Barroco e no Romantismo. As mais variadas formas artísticas da estética romântica – analisadas, dentre outros, por Sigmund Freud em seus escritos sobre a melancolia – nas apresenta constantemente a imagem da ruína como metáfora da morte. No conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, tempestade, morte e loucura expandem o significado alegórico das ruínas, reunindo fragmentos trágicos das histórias do homem e da natureza.
Já no ambiente cultural da modernidade e diante do eminente holocausto nazista, o filósofo alemão Walter Benjamin vai atualizar a velha tradição:
“Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo, que parece querer afastar-se de algo a que ele contempla. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão prontas para voar. O Anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula escombros sobre escombros, arremessando-os diante dos seus pés. Ele bem que gostaria de poder parar, de acordar com os mortos e de reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte que ele não consegue mais cerrá-las. Essa tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de Progresso é essa tempestade” (3).
A obra de Nelson Kon
Tal visão de mundo – Weltanschauung, como eternizou a filosofia alemã –, que em cada época encontrou formas e gêneros estéticos para se materializar como arte, é uma das entradas possíveis para se compreender a obra de Nelson Kon. Mais conhecido por suas fotos de arquitetura, o fotógrafo paulistano manifesta nas mais variadas abordagens presentes em seus ensaios uma recorrente predileção pela marcação da passagem do tempo, uma renitente capitulação diante do efêmero e da transitoriedade das coisas. Tal propensão pelo melancólico se manifesta das mais diversas formas, que ocultam – mas não muito – um fulcro comum: um olhar sempre distanciado e contemplativo, cuja recusa em estabelecer um contato empático com o objeto leva quase sempre ao estranhamento. Mais do que revelar coisas conhecidas, suas fotos retratam algo que não está mais ali, que já se esvaiu. Evocam, se me permitem uma libérrima associação, as palavras do mais poeta dentre os teólogos, Santo Agostinho:
“Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço” (4).
De uma forma talvez excessivamente esquemática, mas quem sabe eficaz para situar melhor sua obra, poderíamos imaginar que as fotos de Nelson Kon poderiam ser enquadradas em dois vetores, que poderiam se cruzar (ou não) nas mais variadas angulações. O primeiro vetor seria o da dupla Natureza e História, que contempla os assuntos fotografados, constituindo o universo de imagens do artista, que varia em um arco amplo que vai da natureza intocada ao edifício em ruínas. O segundo vetor seria formado pela dupla de opostos Transcendência e Imanência, que se refere ao ponto de vista do fotógrafo, que pode ser a mais distanciada do vôo de pássaro que a tudo contempla sem se envolver ou sua a antinômica possibilidade de enquadrar pequena parte de um assunto, sugerindo metonimicamente sua totalidade. O surpreendente é que as combinações possíveis, ao contrário da esperada dispersão da mensagem estética, acaba sempre resultando no reiterado estranhamento provocada pela ausência ou pela falta de sentido.
Quando a névoa da manhã se desfaz, ante nossos olhos perplexos surgem instalações humanas no meio das montanhas. É uma foto da série Paisagem de Cubatão. Ali temos estranhos artefatos no meio da floresta, destituídos de utilitarismo, esmagados pela imensidão. A ocupação do território acontece de forma incompleta, pois as forças telúricas fazem questão de retomar o que é seu. Mas se a névoa da manhã se desfaz, pode também surgir, diante de nossos olhos, homens erguendo uma estrutura metálica no meio urbano, uma estrutura que não se sabe bem para qual finalidade, mas que automaticamente registra, metaforicamente, o trabalho hercúleo de construção da Torre de Babel, o mesmo trabalho insano, repetido ao longo dos tempos, de construir os sonhos humanos que, implacavelmente, serão arrasados pelo passar do tempo. A aparição humana no meio da névoa dos tempos sempre repete a mesma ação destituída de sentido último, pois está fadada à desaparição. Como Sísifo, que transformou a tarefa eterna de levar a mesma pedra ladeira acima em um fim em si, uma espécie de sublimação da maldição eterna, cabe aos homens construir seus sonhos irrealizáveis em meio à névoa do tempo.
Os homens em meio à neblina dessa bela foto da série Arte/Cidade são anônimos, sem face, sem identidade, como quase todos os seres humanos que aparecem nas fotos de Nelson Kon. Tal presença pode, eventualmente, evocar o conceito de sublime, de Schopenhauer, que dá sustentação estética para o Romantismo alemão. Uma das fotos da reforma realizada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha na Oca do Parque do Ibirapuera, projeto de Oscar Niemeyer, conta com a presença de uma figura humana contemplando a edificação. A escala assombrosa que toma a edificação diante da figura quase insignificante convoca em nossa memória o famoso quadro O peregrino sobre o mar de brumas (“Der Wanderer über dem Nebelmeer”), realizado em 1818 pelo pintor alemão Casper David Friedrich. Aqui um homem urbano, com indumentária sofisticada do mundo civilizado, mira a magnitude de uma paisagem natural de amplitude cósmica. Ele está de costas para o observador, da mesma forma que o homem esmagado pela cúpula de concreto da foto atual.
Tal como um leitmotiv musical, os homens de costas para o observador surgem em outros ensaios, como em uma foto da série A Noite, onde um personagem solitário esgueira-se por uma paisagem desolada e suspeita. Não há qualquer elemento que explique sua presença neste local. Não se tem certeza se está retornando para casa ou se está indo para um encontro, se está prestes a cometer um ato desabonador ou se apenas caminha em uma noite de insônia. O que temos é apenas um vulto e sua sombra, que se projeta enorme, desproporcionada, para trás, como um vestígio de uma presença transitória, de existência efêmera.
Em outra foto, realizada para o livro Rino Levi – arquitetura e cidade, várias pessoas transitam por uma área livre do Centro Cívico de Santo André. Provavelmente estão indo para suas casas, após uma jornada de trabalho estafante, em grupos ou solitários. Contudo, a amplidão do espaço e as sombras extensas projetadas para trás produzem uma sensação de esvaziamento, de abandono, de solidão. Mais do que pessoas, os personagens destas fotos são vestígios da existência humana, são vultos que registram a passagem do homem pela terra, pela história, que já estarão esquecidos tão logo desapareçam.
Uma outra foto, agora da série sobre a Cobertura da Praça Patriarca, projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, traz em primeiro plano um pedestre, certamente um homem pelos trajes que veste, mas que mal se sabe a idade, pois a exposição grande da foto borrou a figura em movimento. De uma forma convencional, podemos dizer que o personagem é uma escala humana para dar medida ao objeto fotografado. Mas da cobertura se vê apenas um dos apoios, nos remetendo a uma das figuras da Retórica, a metonímia. Aqui a figura humana é praticamente dispensável, indesejável, e a eliminação dos transeuntes em outras fotos, com o recurso da exposição demorada, parece comprovar isso. Mudamos bruscamente de registro, o detalhe tornando-se agora o principal argumento. Uma outra foto, de um projeto do arquiteto Miguel Juliano, traz novamente à tona esta questão. Temos agora diante de nossos olhos uma foto com a perspectiva uniocular tão cara aos renascentistas. A foto, de orientação horizontal, enquadra o embasamento do edifício. Predomina a cor azul e seus matizes, resultante do espelhamento do céu na face envidraçada. Enigmática, uma porta vermelha fechada nos convida a especular sobre os segredos que aprisiona.
Chegamos à arquitetura. Assunto mais freqüente na obra do fotógrafo e com a qual mantém uma relação interessante em sua ambigüidade. Como se sabe, o arquiteto mantém com sua obra uma relação de criador e criação balizada pelos meios projetuais que dispõe. A concepção quase sempre desenvolvida e expressa em decomposições planimétricas no sistema cartesiano faz com que sua visão sobre sua obra seja hegemonicamente racional, deixando pouco espaço para a percepção.
O olhar do fotógrafo, sempre postado em um determinado ponto de vista, é antagônico à visão totalitária do arquiteto. As recorrentes fotos de Nelson Kon focadas em detalhes trazem à tona o problema da percepção da obra arquitetônica, que não pode ser jamais experienciada em sua totalidade por um único golpe de vista. Não há concessão ao desejo do arquiteto em ver sua obra fotografada segundo seu desígnio. A imagem que resulta da exposição às lentes do fotógrafo é um instante de perfeição roubado às imperfeições do tempo, que consome e desgasta incessantemente. As luzes – artificiais e natural –, o clima, os elementos da natureza, tudo o que rodeia, acaba contaminando o objeto, conferindo à foto um estatuto de registro único, irrepetível e, portanto, definitivo.
notas
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1
OVÍDIO, Metamorfoses.
2
Idem, ibidem.
3
BENJAMIN, Walter, Teses sobre a filosofia da história.
4
Santo Agostinho. Confissões.
sobre o autor
Abílio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius.