Já faz algum tempo, em artigo publicado no Portal Vitruvius (1), voltou-se à questão, necessariamente recorrente, da criação arquitetônica e suas ferramentas (2). O projeto está, deliberadamente, na moda acadêmica, como se viu na impressionante concorrência de trabalhos no Seminário Projetar 2005.
Parece oportuno, nestas circunstâncias, voltar a pensar nas divergências sobre o uso do computador no ato de projetar arquitetura.
Certamente um dos maiores problemas para colocar a questão da informática na arquitetura nas suas devidas dimensões é de caráter temporal. Os que detêm o "saber projetar" são, freqüentemente, neófitos nos computadores e os que detêm o uso da informática são, também freqüentemente, neófitos no "saber projetar". Ainda existe um terceiro grupo: os que sabem projetar, usam fluentemente o computador para seus projetos, mas não estão nem um pouco interessados na polêmica. Polêmica aliás que se centra nas escolas de arquitetura, onde existe um razoável número de professores que se encontram numa quarta categoria: os que não sabem projetar nem usar computadores (a exceção do Office para fazer seus relatórios).
Não me incluirei em nenhuma das categorias; o leitor atento saberá me situar. Deixo apenas como pista que, dado a minha idade, comecei com régua "T" e caneta "Graphos" e fui, durante muitos anos, desenhista profissional.
Declaro de antemão que concordo inteiramente com Artur Rozentraten em que a modelagem manual tem um papel fundamental no processo de projetação e é, portanto, uma ferramenta de ensino poderosa. E deixo para uma outra discussão futura as questões da necessidade de saber desenhar, falo de desenho dito arquitetônico, e a de liberar a criação arquitetônica deste tipo de desenho.
Muito se tem falado das vantagens do computador; parece-me inteiramente inútil repetir esta questão pois, tecnologia francamente em evolução, cedo – muito cedo – tudo que dizermos ficará absolutamente passado de moda ou, como se diria hoje, necessitando um "upgrade". Não só a sua capacidade é enorme como suas possibilidades futuras vertiginosas.
Não acontece o mesmo com nosso velho instrumento de interface com a máquina: a visão. Essa não deverá mudar significativamente nos próximos milênios; então, é bom aproveitar ao máximo as suas estupendas aptidões.
O olho humano, como o da maioria dos animais, é um complexo sistema decorrente de um longo aperfeiçoamento seletivo de milhões de gerações de caçadores e presas. A nossa visão é, de longe, o nosso sistema mais eficiente de assimilação de informações. A forma do uso deste instrumento é, portanto, fundamental. Com ou sem computador (3).
A complexa percepção visual se dá num sistema de ambiente e foco; o que é freqüentemente chamado de atenção visual central e atenção visual periférica. Vemos segundo um sistema de figura e fundo porque nossa visão é predisposta a este sistema. É compreensível que, num ambiente de caça – onde oscilamos de caçador a presa com grande facilidade – esta visão é garantia de sobrevivência da espécie: a percepção, num amplo campo, de tudo o que se mexe ou muda, e a capacidade de focar essa mudança num campo focal de extrema precisão para verificar o perigo ou a chance.
120 milhões de bastonetes e 7 milhões de cones (4) distribuem-se, com suas particularidades fotosensitivas, de forma desigual na nossa retina: os primeiros distribuídos numa vasta área, os segundos apinhando-se na fóvea, no eixo óptico do olho. Os primeiros sensíveis a pequenas quantidades de luz, os segundos de grande acuidade e preparados para os grandes contrastes de intensidade lumínica. O resultado desta visão, se comparado com os nossos hábitos fotográficos, é o de uma poderosa lente grande angular "olho de peixe" de baixa definição porém de alta sensibilidade à pouca luz, combinada com uma igualmente poderosa teleobjetiva no centro de altíssima definição e de grande claridade. Não há fotógrafo que não tenha sonhado com uma lente destas características...
Poder ver um extenso campo com grande sensibilidade a movimentos e mudanças e possuir um telescópio de extrema acuidade e de fácil manejo para dirigi-lo a qualquer ponto daquele campo é a característica da nossa visão; do nosso mais eficiente "input" de informação.
Soma-se a esta lente maravilhosa um sistema de processamento da informação luminosa em informação neuronal organizada, tão complexo e extraordinário quanto aquela.
Vemos, por natureza, objeto e contexto; e podemos mudar, à nossa escolha, novos objetos e contextos de nossa visão. Vemos ações em cenários e cenários em mundos. Podemos então, com certa facilidade, estabelecer as relações entre parte e todo, entre figura e fundo, entre detalhe e estrutura, etc. ; e cada coisa vista, grande ou pequena, importante ou insignificante, é percebida num ambiente com o qual se relaciona.
O que isto tem a ver com computadores e projetos?
Quando nos sentamos frente a um computador, a nossa atenção fica presa à sua tela, que ocupa pouco mais do que a fóvea e a perifóvea da nossa visão. A atenção visual periférica serve, apenas, para alertar-nos sobre uma eventual visita, para não derrubar a xícara de café, para perceber uma barata fugaz ou uma folha de papel levantada pelo vento. Usamos, portanto, no computador uma pequena parte da nossa visão. Isto não é defeito do computador, obviamente, a mesma coisa acontece quando lemos um livro: a nossa visão percorre pouco mais do que palavras num "ambiente" que, visualmente, não tem importância pois a linguagem é, essencialmente, diacrônica; o seu ambiente é o lido antes e o depois. Em certos aspectos o computador, na leitura de textos, melhora a relação de "ambiente" em relação ao livro: o ambiente dos "menus" e a série de elementos não textuais da tela podem vir a ampliar o uso da visão como receptora de informações em relação ao texto.
Mas, se fizermos a comparação do computador com uma prancheta de desenho veremos que existe uma diferença radical. Imaginemo-nos projetando numa prancheta sobre uma planta de um trecho de cidade ou sobre uma planta de terreno. A nossa visão estará sendo ocupada quase totalmente pelo campo de informação do nosso trabalho. O foco estará naquilo que, num momento determinado, estamos tentando resolver, mas o "todo" daquela prancha estará presente como ambiente deste foco. E, no foco, poderemos atuar com tanta precisão quanto a nossa mão e o nosso instrumento de trabalho nos permita.
A informação visual na tela, ao contrário, é de pouca precisão – com 95 dpi – e de pequeno campo, com telas de 15", 17" ou mesmo 20". Esta circunstância obriga ao uso permanente das ferramentas de "zoom" e "pan" para ir de um lado a outro. Se nos aproximarmos, ao ponto da tela ocupar a maior parte de nosso campo visual, perderemos precisão de imagem e se nos afastarmos, campo visual. O todo e a parte nunca estarão sincronicamente na nossa visão.
Numa imaginária tela A0, ou, pelo menos A1, poderíamos trabalhar de forma semelhante ao trabalho de prancheta e, obviamente, enriquecido com as incontáveis ferramentas dos sistemas CAD!
Um bom exemplo do que quero dizer é o painel de um avião. Com todos os avanços da computação, os painéis de avião conservam o uso da atenção periférica e a atenção central. Uma grande quantidade de indicadores analógicos em que posições pré-estabelecidas indicam a situação normal estão permanentemente no "ambiente" de vôo; qualquer movimento ou mudança será percebida nesta visão periférica. A informação exata pode ser buscada a cada momento pela atenção visual central e lida com precisão. E faz parte do ambiente, como é obvio, o mundo exterior. E com as grandes mudanças da eletrônica e da computação, o ambiente do aposentado Concorde é muito parecido ao do novíssimo Boeing 767.
Mas é mais do que evidente que projetar e pilotar um avião são tarefas completamente diferentes.
A tarefa de projetar, por outra parte, se divide em diversas etapas. Determinar em que momento o computador é a ferramenta mais adequada é a nossa questão principal.
Penso que há um momento recorrente na elaboração do projeto de arquitetura que chamarei, segundo Pietilä, de caça de idéias. É o momento em que surgem as idéias novas que resolvem nossos problemas. Pode acontecer em qualquer fase do projeto: desde o seu início, ou "partido" como se dizia antigamente, até o detalhamento. Segundo palavras do próprio Pietilä:
"Na caça de idéias, a perícia do homem na preparação do cenário representa a arte do caçador. A criatividade é uma questão de pôr em cena um problema com uma disposição tal que alguma coisa começa a acontecer, aparece e entra dentro dela. Agora um ente está ‘realizando-se’ ali, alguma coisa se faz mais visível, mais crível. Mas está somente preso muito debilmente; pode escapar-se se a gente se aproxima demasiado rapidamente.
A captura de uma idéia é um processo que a gente não parece capaz de influenciar conscientemente. A cognição consciente é um instrumento demasiado rude" (5).
E para isto é necessário usar todas as aptidões dos nossos olhos de caçador:
O próprio Pietilä lembra a casual importância do seu gato Misukka na “caça de idéias” no projeto da igreja de Malmi:
“Tinha que ser uma cova informe para reuniões formais de pessoas. A gente devia sentir como uma rocha de concreto surge do bosque da mesma forma característica das acumulações minerais. É sabido que nós (não somente o homem primitivo) podemos ver formas cheias de significados na formação excepcional da rocha. A igreja de Malmi devia ser uma fonte para esta experiência. Mas na sua estrutura geomórfica há também uma pose animal. Nosso gato Misukka soia dormir na minha prancheta de desenho diante dos meus olhos oferecendo-me uma imagem perfeita de massa relaxada. Uma rocha animada surgindo da forma de um gato doméstico, que jaz sob o calor da lâmpada da prancheta, dando forma à massa do edifício e a seu ritmo sonâmbulo” (6).
Há um momento muito importante e muito esquecido de nossa profissão que é esse "pôr em cena um problema"; ou seja: levar o mundo à prancheta de forma que alguma coisa comece a acontecer. Daí a importância da síntese do croquis feito "in loco" mais do que a fotografia, mas também da fotografia; das plantas desenhadas e re-desenhadas do local e do entorno, e das – muitas – maquetes do terreno, do sítio, do lugar.
Nestes cenários, como presas furtivas, aparecerão as idéias. Idéias de que nossa arquitetura tanto necessita.
Se a arte do caçador é a preparação do cenário, o computador deverá ser um auxiliar dessa arte. Poderoso auxiliar na elaboração de mapas, gráficos e esquemas que ajudem na construção do cenário.
Mas, se ao contrario, pretendermos que a cognição consciente auxiliada pelo CAD nos leve à caça de idéias, seremos um caçador vendo a floresta através, apenas, da sua mira telescópica.
Cuidado com o leão!...
notas
1
ROZENTRATEN, Artur. “Modelagem manual como instrumento de projeto”. Arquitextos, Texto Especial nº 236. São Paulo, Portal Vitruvius, jun. 2004 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp236.asp>.
2
Necessariamente recorrente, pois as ferramentas mudam e, freqüentemente, com grande velocidade.
3
O computador pode ser um instrumento de grande importância para potencializar a visão como canal de informação; a facilidade de confecção de mapas e gráficos permite uma assimilação de informações de forma extremamente eficiente. A construção de mapas temáticos a partir de combinações de variáveis territoriais georeferenciadas – rurais ou urbanas – por exemplo, pode facilitar e incrementar o conhecimento de uma determinada realidade. É óbvio que é necessário incrementar a nossa imaginação nos tipos de mapas ou gráficos que devamos criar.
4
Cito os dados de: AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, Papirus, 1995. A Enciclopédia Britânica aponta os mesmos 7 milhões de cones e um intervalo entre 75 a 150 milhões de bastonetes.
5
PIETILÄ, Reima. Intermediate zones in modern architecture. Helsinki, Museum of Finnish Architecture, Alvar Aalto Museum, 1985.
6
PIETILÄ, Reima. “Misukka”. In: Fisuras, jan. 1995, p. 112.
sobre o autor
Alberto Rafael (Chango) Cordiviola, arquiteto, Professor Titular da UFBA.