Este trabalho objetiva analisar alcances e limites da implementação de projetos urbanos em áreas industriais, com foco na geração de trabalho e renda e no combate à exclusão social, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento local. Entende-se por projetos urbanos as iniciativas de renovação urbana concentradas em determinados setores da cidade, combinando agentes públicos e privados, cujos investimentos e intervenções seguem um plano urbanístico, podendo se apoiar no redesenho do espaço urbano e arquitetônico, em normas legais específicas e em novas articulações institucionais e formas de gestão.
Nesses projetos, o risco de potencializar os efeitos excludentes da urbanização contemporânea, que caracteriza os grandes projetos urbanos estratégicos das últimas duas décadas, coloca em questão a capacidade e as limitações do poder local no quadro da globalização. Soluções efetivas para os problemas urbanos dependem hoje do envolvimento dos atores locais, da sociedade civil e de diversas esferas governamentais, na busca de novas formas de gestão e da capacidade de governança.
Por meio da comparação de experiências internacionais, este trabalho aborda o impacto dessas iniciativas, discutindo tendências e limitações dos modelos adotados na implementação de projetos urbanos até o momento. O esgotamento das soluções autoritárias e/ou privatistas coloca a necessidade de envolver agentes sociais diversos na busca de uma gestão compartilhada do espaço urbano. Em face dos princípios do desenvolvimento local, discute-se a possibilidade de beneficiar as populações locais pela geração de empregos e outras formas de renda, além do atendimento às suas necessidades habitacionais, de equipamentos e infra-estrutura – evitando possíveis consequências excludentes do processo de renovação urbana. No que se refere às iniciativas brasileiras, a análise se concentra no caso do Grande ABC, na Região Metropolitana de São Paulo – gravemente atingida pela desindustrialização e pelo desemprego – mais especificamente, no Projeto Eixo Tamanduatehy em Santo André, envolvendo a requalificação de uma faixa de 8 km de antigos terrenos industriais .
Entre as diferentes dimensões da crise urbana provocada pelo processo global de reestruturação econômica que tem se intensificado ao longo dos últimos 25 anos, destaca-se o surgimento de grandes áreas ociosas ou subutilizadas, particularmente nas cidades e setores urbanos, cujo crescimento havia se amparado na indústria de transformação. Atividades manufatureiras que pautaram, por décadas, a vida dessas aglomerações, subitamente se viram compelidas a encerrar suas atividades – ou, na melhor das hipóteses, tiveram que proceder a importantes transformações em seus métodos e cadeias produtivas, muitas vezes deslocando unidades de produção para outras regiões, em um processo já conhecido em suas consequências econômicas, sociais e urbanísticas (2).
Do ponto de vista da região deixada para trás, as perspectivas tornam-se sombrias: desemprego, perda do dinamismo econômico, desgaste dos tecidos sociais organizados tradicionalmente em torno da fábrica. De certa maneira, a unidade de produção deixa de ser o antiga núcleo fabril e começa a ser identificada com a própria cidade, com a região ou com uma rede transnacional, que passa a sediar um intrincado complexo de atividades produtivas e terciárias, organizadas de maneira flexível e fragmentada. Nesse movimento a tradicional área fabril, com suas grandes instalações fixas, torna-se obsoleta, levando ao esvaziamento do cerne econômico de cidades inteiras.
Como herança, a indústria deixa apenas seu legado de degradação ambiental e baixa qualidade da ocupação espacial urbana. Ao mesmo tempo, a queda da arrecadação fiscal nas cidades em que o setor terciário tinha pouca expressão deixou o poder local enfraquecido no momento em que deveria enfrentar a gama de velhos e novos problemas – quadro de impotência agravado pelo desmonte do aparelho estatal nas diversas esferas de governo, no âmbito de políticas liberais justificadas pela suposta falência do Estado do bem-estar e do planejamento integrado. Abdicando dos grandes esquemas de previsão e controle, o horizonte da intervenção urbanística passaria então a se concentrar nos planos de oportunidade e nos projetos urbanos (3).
Tal processo de esvaziamento das zonas industriais se acentuou no Hemisfério Norte a partir dos anos 70, verificando-se os casos mais agudos em cidades industriais emblemáticas, como Detroit, Pittsburgh, Bilbao, Lille, o vale do Reno e as Midlands inglesas. Às áreas industriais abandonadas somaram-se áreas portuárias tornadas obsoletas pelas novas tecnologias de transporte marítimo (conteneirização), com o agravante destas últimas normalmente ocuparem frentes de água em pontos urbanos estratégicos.
A reação das municipalidades que se viram no lado perdedor da reestruturação econômica assumiu diversos matizes. Em certos casos, a administração local, marcada por uma tradição esquerdista e por uma história de lutas sindicais, tentou enfrentar a situação pelo incremento das políticas sociais compensatórias, ou ainda por meio de programas incorporando a ação sindical: de um lado, como nova forma de luta para a reinserção de trabalhadores; de outro, constituindo-se em novo agente do desenvolvimento urbano.
Em outras cidades o governo assumiu o ponto de vista do empreendedor, procurando dinamizar a economia urbana por meio da busca da atratividade e da competitividade (4). Para isso concorreu a emergência, naquele momento, de técnicas de planejamento desenvolvidas para auxiliar a reinserção de empresas (abaladas, de maneira análoga, pela reestruturação produtiva global) nos mercados altamente competitivos e em constante transformação da nova ordem econômica. A partir dos anos 1980, o chamado “planejamento estratégico” passou a figurar de maneira proeminente entre as políticas urbanas adotadas por municipalidades européias, tornando-se muitas vezes nada mais que o sinônimo de uma postura competitiva e empresarial preocupada com a atração de investimentos, eventos e turismo, com a imagem urbana e a reinserção otimizada de cada cidade no panorama europeu e mundial (5).
Projetos de renovação urbana: experiências, tendências e limites
Entre as jogadas estratégicas adotadas pelos governos locais, logo se destacaram os projetos de renovação urbana. Grandes portos, como Boston, Baltimore, Gênova, Barcelona, Dunquerque e Rotterdam, que assistiram ao esvaziamento de antigas instalações portuárias situadas em zonas relativamente privilegiadas, estavam entre as primeiras cidades a vislumbrar o potencial urbanístico e imobiliário dessas áreas. O mesmo ocorreu em metrópoles globais como Londres, Nova York e Buenos Aires. A visão estatégica salientou a possibilidade de aproveitar essas oportunidades de renovação para a implementação de projetos que combinassem atratividade para eventuais investidores, alta visibilidade e atividades afinadas com tendências econômicas emergentes, concentradas no setor terciário e nos serviços especializados – escritórios, lazer, turismo, gastronomia, esporte, alta tecnologia e assim por diante.
Como potencializar essa receita e, ao mesmo tempo, garantir a projeção individual de cada iniciativa na corrida pela primazia mundial? Logo um dos elementos cruciais nesse sentido passou a ser o projeto que orientaria a intervenção. De um lado, a qualidade espacial e urbanística seria um dos trunfos para garantir o sucesso das iniciativas de renovação, redefinindo a hierarquia urbana em favor da região antes degradada (6). De outro, a visualidade impactante, a imagem de (pós-)modernidade, e a grife de um arquiteto conhecido garantiriam uma cartada de peso na grande arena estratégica, a mídia.
Na medida em que os projetos urbanos passaram a integrar a agenda das grandes cidades no final do século, o modelo foi se sofisticando. Ao mesmo tempo, a competição entre cidades foi se acentuando, na disputa pelos investimentos voláteis no novo processo de financeirização mundial. Em Baltimore a renovação do porto nos anos 70 tornou-se mote para o “reerguimento” da cidade, esboçando o novo paradigma do projeto urbano estratégico, que seria desenvolvido em Battery Park City, Nova York. O plano original de aproveitamento para um aterro a ser criado sobre os antigos molhes do porto, no canto Sudoeste de Manhattan, havia sido patrocinado nos anos 60 pelo governador Nelson Rockefeller como uma mistura de habitação, serviços sociais e indústria leve, segundo a concepção modernista de Wallace Harrison – a ser implementado pela Battery Park City Authority e financiado pela emissão de bônus.
Em face da crise nova-iorquina dos anos 70, a diretriz passou a ser a abertura ao mercado, visando criar um grande complexo de torres de escritórios e condomínios residenciais verticais. Aprovado em 1979, o novo plano, de Cooper & Eckstut, adotou padrões urbanísticos tradicionais: malha de ruas, arranjos simétricos e grandes lotes. Ganhando autonomia e a propriedade do solo, a BPC Authority passou a priorizar o aproveitamento imobiliário, mas adotou a assinatura arquitetônica (no caso, de Cesar Pelli, ligado à imobiliária Olympia & York, que avalizou a iniciativa ao bancar o World Financial Center) como marco diferencial. Ao longo dos anos 80 e 90, sucessivos empreendimentos high-profile foram preenchendo os lotes, tendo como contrapartida para a comunidade a criação de dois parques, uma marina, uma escola e a construção de algumas habitações populares no Harlem e no Bronx com o rendimento da operação (7).
O sucesso da experiência nova-iorquina inspirou a polêmica aventura de Docklands, pautada pelo liberalismo extremado. Nos anos 70, o fechamento das antigas docas londrinas havia levado à discussão de várias propostas de renovação urbana, mas os comitês criados não dispunham de poderes e recursos, e a transformação não se consumara (8). Em 1981, o governo Thatcher adotou uma nova postura, ao mesmo tempo privatista e autoritária, criando a London Docklands Development Corporation – entidade autônoma que passou a dispor de poderes sobre o planejamento da região, em detrimento dos governos locais, de fundos substanciais cedidos pelo governo central, e de vastos terrenos (80% da área pertencia a agentes públicos como o porto, a autoridade metropolitana, as empresas de gás, eletricidade e a British Rail). No que se refere aos terrenos privados, a LDDC passou a dispor do direito de aquisição compulsória. Para atrair investidores e alavancar o processo, em 1982 a região da Isle of Dogs foi declarada uma zona especial cujos terrenos permaneceriam isentos de impostos por dez anos (9).
O resultado foi o loteamento das imensas glebas do antigo porto de Londres (22 km2) entre diversos empreendedores, abdicando de um projeto único, mas fazendo uso de todos os cacoetes de um urbanismo pós-moderno voltado à gentrificação. Os motes da flexibilidade, da adaptabilidade aos ditames do mercado e do abandono da planificação "rígida", exacerbados no caso londrino, fizeram de Docklands o maior exemplo da sujeição do planejamento ao ideário neoliberal, criando "ilhas" de privilégio que tiram proveito das novas localizações valorizadas, relegando a último plano a provisão de serviços sociais e habitação popular (10). Como símbolo da empreitada, a torre de Canary Wharf, do mesmo Cesar Pelli, cujo fracasso comercial levaria à bancarrota a própria Olympia & York (11).
Na segunda metade dos anos 80, algumas das cidades européias que se viram face a problemáticas semelhantes de esvaziamento industrial e reestruturação econômica, ao adotar o mote do planejamento estratégico, já tinham em vista as experiências liberais e socialmente excludentes de Nova York e Londres. No outro extremo, o elenco dos Grands Projets parisienses, integralmente bancados pelo Estado (Orsay, Louvre, La Villette, IMA, etc.). Mas a França também trazia o exemplo dos projetos coordenados por sociedades de economia mista nas ZACs (La Défense, Rive Gauche) que estruturaram a passagem do modelo de planejamento hierárquico para o "modelo negociado", quase sempre dentro de diretrizes definidas por planos urbanos gerais (12).
A partir do Beaubourg de Renzo Piano e Rogers, a repercussão das contribuições arquitetônicas passou a destacar a importância da ousadia arquitetônica e do desenho para definir a atratividade das cidades no final de século. Nesse sentido, a participação de nomes importantes da arquitetura começou a ser encarada como um requisito para o sucesso dos projetos estratégicos (13). Em Rotterdam, os planos de reconversão da área portuária passaram a prever convites às maiores estrelas do mundo arquitetônico, cujos projetos seriam encaixados no bairro desenhado por Jo Coenen. Em Lille, a estratégia adotada passou pela contratação do polêmico teórico Rem Koolhas. Em Bilbao, a transformação das margens do Rio Ebro adquiriu projeção internacional no momento em que se construiu ali o Guggenheim de Frank Gehry. Gênova chamou Renzo Piano para desenhar a reconversão do porto; em Dunquerque, o ambicioso Projeto Netuno, abrangendo a transformação de 180 hectares das antigas docas e estaleiros em um novo centro para a aglomeração, contou com a assinatura de Richard Rogers. Outras cidades recorreram o outros profissionais, na medida de suas possibilidades (14).
Ao mesmo tempo, esboçava-se uma união entre arquitetura contemporânea e grande capital, emblematizada pelo caso de Berlim. A unificação da Alemanha a partir de 1990 acarretou a transferência do governo para a cidade antes dividida, com novos e maciços investimentos, públicos e privados, na requalificação da cidade e das extensões antes ocupadas pelo muro. Acirrados debates a respeito da destinação desses espaços, no início dos anos 90, não evitaram a concessão dos pontos de maior prestígio – PotsdamerPlatz, Pariser Platz, AlexanderPlatz – a grandes corporações multinacionais, que adotaram arquiteturas de impacto como instrumentos de redefinição do espaço urbano central, buscando uma nova visualidade metropolitana, espetacular e sofisticada em seu comercialismo. Ambiciosos projetos governamentais também fizeram uso de projetistas de renome: Norman Foster, Dominique Perrault, Aldo Rossi, Santiago Calatrava (15).
Novamente prevaleceu o modelo liberal, pelo qual o governo democrata-cristão concedeu, a partir de 1991, incentivos fiscais às empresas e construtoras que se transferissem para Berlim – resultando, alguns anos depois, no excesso de oferta de áreas para escritórios e em uma crise imobiliária que ecoou aquela ocorrida em Docklands. Mesmo as obras do governo tiveram que ser revistas em bases mais modestas. Consequentemente, o excesso de (neo)liberalismo passaria a ser visto com mais desconfiança, na medida em que a abertura súbita ao mercado, com seus building booms e crises de retração, poderia ameaçar a estabilidade econômica geral. Por outro lado o gigantismo dos empreendimentos ameaçava a própria qualidade urbana que se pretendia erigir em fator de atração. Nesse sentido, a lógica imobiliária tornava-se o calcanhar de Aquiles dos planos estratégicos. Para evitar tais riscos, os elementos estabilizadores da regulação urbanística não poderiam ser deixados de lado.
Com sua tradição vanguardista e seu empreendedorismo, Barcelona parecia ser o terreno mais propício para combinar ambas as perspectivas, estratégica e arquitetônica, em um projeto paradigmático de renovação urbana com grande impacto econômico, sem abdicar do controle urbanístico. Assim como na França, a inserção de grandes projetos estratégicos em um quadro bastante consolidado de planejamento urbano permitiria superar a suposta dicotomia entre plano e projeto, que viciava o debate urbanístico dos anos 1980 (16).
A renovação da região portuária estava prevista como parte do reequipamento da cidade para sediar as Olímpiadas de 1992. Dispondo de amplos fundos disponibilizados pelo governo em virtude do evento, a construção da Vila Olímpica tornou-se oportunidade para colocar em prática um projeto urbano ambicioso, ao longo de uma face de água antes obstruída pelo porto. O plano comportava duas altas torres, uma delas sendo um hotel projetado por Frank Gehry, conjuntos de escritórios (como a Eurocity de Piñon y Vilaplana), habitações e ênfase no lazer, do Porto Olímpico na antiga Barceloneta às praias criadas ao longo de um parque linear até Poble Nou. Após os jogos de 1992, o projeto custou um pouco a deslanchar por conta própria, tendo em vista o perfil elitista definido pela ocupação habitacional e de serviços, mas a atratividade ligada à recreação ao ar livre acabou prevalecendo, configurando um pólo de referência para a população em geral (17).
É preciso salientar que o projeto em questão se insere no âmbito de uma vasta gama de projetos e intervenções, contemplados pela revisão do planejamento de Barcelona a partir de 1980, incluindo iniciativas que cobrem praticamente todas as zonas da cidade. Ao mesmo tempo, integra políticas urbanas em nível regional, nacional e europeu – as quais não deixam de dar continuidade, em seus objetivos, dimensão e alcance, à tradição do planejamento regulador e abrangente (18). Nesse panorama, a questão social, assim como os problemas ambientais e de infra-estrutura, não são preteridos pelos projetos de impacto, mas recebem atenção pelo menos equivalente. Se estes assumem o primeiro plano, é no sentido de catalisar as intenções de recuperação, focadas na imagem e na auto-imagem da cidade. Mas tal "patriotismo" urbano, assim como o city marketing, só se justificaria dentro de um quadro de atendimento pleno às demandas sociais urbanas (19).
Não foi apenas na Europa que o exemplo barcelonês deu frutos. Em Buenos Aires, a área de Puerto Madero, conjunto de diques e armazéns criado na virada do século entre o coração da cidade e o Rio da Prata, representava um potencial inestimável para renovação, tendo em vista sua proximidade do centro histórico. Em seguida a um convênio firmado entre as municipalidades de Buenos Aires e Barcelona, os urbanistas catalães Busquets e Alemany elaboraram, em 1989, o Plano Estratégico para o antigo Puerto Madero. No mesmo ano, por convênio entre o governo central (Ministério de Obras e Serviços, responsável pelo porto) e o município, era criada a Corporación Antiguo Puerto Madero S. A., entidade autônoma de direito privado (20). Previu-se a reconversão dos velhos galpões como escritórios de alto padrão, mantendo sua volumetria original; do outro lado dos diques, junto à Costanera Sur, o projeto adquiriu maior liberdade, com parques, torres de escritórios e prédios de habitação.
A primeira porção a ser viabilizada, a dos antigos armazéns, foi ocupada por uma elite de empresas que tirou proveito da qualidade arquitetônica e imagem européia dos edifícios convertidos, cujos térreos foram tomados por bares e restaurantes caros. Esse centro executivo e gastronômico, bastante exclusivo, contrasta com o aproveitamento dos espaços coletivos ao longo dos diques como passeio público, turístico e mais popular. Os terrenos vagos da porção Leste do porto foram divididos em lotes e vendidos a empreendedores, a exemplo de Battery Park City. Foram implantados edifícios com arquitetura personalizada, mas sujeita a limitações em termos de ocupação e volumetria. Encontramos aí nomes como Telecom e Hilton, além de condomínios residenciais de alto padrão.
Assim, a lógica empresarial inerente à operação tende a trazer Puerto Madero para o campo dos privilegiados, conformando espaços de alta qualidade que, embora possam ser parcialmente desfrutados por todos, têm sua fruição integral limitada aos grupos dominantes. Embora a cidade tenha ganho, sem desembolsos pecuniários, uma área de grande vitalidade e expressão, a marca da gentrificação continua presente. Não obstante, a experiência de Puerto Madero tornou-se paradigmática na América Latina, por combinar com sucesso a requalificação urbana, a revitalização econômica e a reconversão arquitetônica. Ressonâncias de diversos matizes podem ser encontradas em projetos latino-americanos e brasileiros, de Ribera Norte / Biobio / Concepción no Chile (21) à Praça XV no Rio, do Bairro do Recife às Docas de Belém.
No entanto, após duas décadas de grandes projetos de renovação urbana inseridos nos cenários do planejamento estratégico, evidenciam-se os limites desse modelo no que se refere a algumas da questões cruciais que haviam motivado o recurso às novas abordagens urbanísticas. Além de passar ao largo das carências habitacionais, de infra-estrutura e de serviços sociais que continuam comprometendo as regiões metropolitanas, particularmente no Terceiro Mundo, os projetos estratégicos parecem constituir uma faca de dois gumes no que se refere aos problemas da integração econômica, do desemprego e do combate à exclusão social.
Assumindo o ponto de vista dos possíveis "investidores" – nebulosa entidade cujos caprichos se tornaram a grande referência dos cenários econômicos – e tomando o grande capital financeiro ou imobiliário como principal agente capaz de alavancar as iniciativas, os projetos tendem a incorporar e reproduzir a lógica econômica dominante. Na medida em que a recuperação da valorização imobiliária (por meio das entidades autônomas que implementam os projetos) financia melhorias urbanísticas, de infra-estrutura e atratividade na área de intervenção, tais qualidades acabam sendo usufruídas primordialmente pelos próprios "investidores" e seus clientes. Na melhor das hipóteses, uma parte dessa valorização pode ser empregada pelo poder local para financiar algumas obras mais abrangentes de infra-estrutura, habitação e equipamentos sociais. Áreas de lazer e espaços livres podem ser disponibilizados para a população em geral, democratizando o acesso ao incremento da qualidade urbana – talvez o maior ganho efetivo proporcionado pela implementação de tais projetos.
É na esfera propriamente econômica, porém, que comparecem algumas das principais limitações desse modelo. A criação de empregos, quando ocorre, se concentra nos extremos da escala social (postos altamente qualificados, de um lado, e menial services, de outro). Vantagens e lucros encaixados nos fluxos financeiros internacionais não revertem necessariamente em benefício da esfera local. Ganhos fiscais, que poderiam significar um benefício a longo prazo, muitas vezes são objeto de renúncia como parte da estratégia para atrair investimentos. Sem arrecadação suficiente, a municipalidade deve arcar com os ônus referentes à reprodução da força de trabalho não-qualificada, cujos serviços apóiam as atividades high-profile ostentadas pelos novos pólos terciários. Exclusivas e diferenciadas, as áreas centrais requalificadas acentuam o contraste centro-periferia, seja no âmbito intra-urbano, seja na distinção entre as cidades "reprojetadas" na vanguarda do capitalismo e suas congêneres "atrasadas", excluídas até mesmo do possibilidade de bancar um dos projetos em questão.
Podemos dizer que os grandes projetos de renovação urbana acabam exacerbando tendências vigentes na urbanização contemporânea, em que os princípios que caracterizam a produção privada do espaço – aproveitamento imobiliário, enfoques pontuais, agilidade, flexibilidade, afinação com as demandas do mercado – são assumidos como diretrizes no desenho das intervenções urbanas (22).
Nos países periféricos, contudo, em que tais princípios já prevalecem normalmente na transformação e construção da cidade, torna-se mais difícil canalizar tais forças para um projeto específico. Tendo a metrópole toda como campo de ação, nada impele o capital a enfrentar o desafio de investir em uma região deteriorada. Para isso os benefícios fiscais e de desregulamentação precisam ser realçados, assim como os investimentos públicos em infra-estrutura, aumentando, do ponto de vista da cidade, o ônus da iniciativa.
De qualquer maneira, permanece sem resposta a questão primordial que motivou tais empreendimentos: a geração de opções sustentáveis para a recuperação do emprego, da atividade e da arrecadação em cidades e regiões industriais que sofrem os efeitos da reestruturação econômica. Se o modelo dos grandes projetos urbanos estratégicos mostra sinais de esgotamento nesse sentido, qual seria a alternativa? Entre os muitos caminhos em discussão, é possível identificar, ao longo da última década, a emergência de iniciativas menos ambiciosas de renovação urbana, voltadas aos interesses e às perspectivas de cada localidade, que podemos denominar projetos urbanos de desenvolvimento local.
Desenvolvimento local
Enquanto prioridade nas novas políticas urbanas, o desenvolvimento local pode ser compreendido de diversas maneiras. De um lado, liga-se à esfera econômica, sendo medido pela evolução do quadro produtivo local, pela geração de emprego e renda no seio das comunidades, pelo acréscimo da autonomia fiscal dos governos locais, e pela diversificação e dinamização de atividades econômicas que tenham impacto em termos de integração das populações marginalizadas.
Em termos sociais, liga-se à busca da inclusão de diferentes setores populares, em um quadro de crescimento e evolução econômica. Combatem-se os efeitos excludentes da nova ordem mundial com linhas de ação, programas e projetos que tirem proveito das especificidades e potencialidades de cada região, sempre partindo dos interesses da população local. No que se refere às articulações administrativas e institucionais, o desenvolvimento local está ligado ao conceito de governança, como medida da capacidade de gestão compartilhada entre diversos agentes, permitindo que o processo de tomada e implementação de decisões seja assumido, de maneira democrática, participativa, negociada e transparente, pelas forças locais (23).
Podemos destacar nesse sentido a experiência européia, com o funcionamento de agências e fundos visando apoiar projetos de desenvolvimento local nas áreas mais desprovidas de recursos próprios, sejam elas regiões, cidades, bairros ou populações abaladas pela reestruturação econômica. A partir de 1990, a União Européia, por meio do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, passou a financiar projetos-piloto de renovação em diversas cidades, envolvendo uma gama de setores de atuação, como meio ambiente, habitação, saneamento, cultura, etc., incluindo projetos de regeneração urbana e conversão industrial. Não mais se limitando, como nos anos 80, ao financiamento de obras de infra-estrutura, a ênfase da atuação do Fundo foi concedida à regeneração estratégica de áreas urbanas. No caso de antigas regiões manufatureiras ou portuárias afetadas pela decadência econômica, o programa começou a buscar soluções inovadoras para diversos problemas de esvaziamento funcional, comprometimento ambiental e exclusão social (24).
Tratam-se de projetos em pequena escala, financiados com aportes da União Européia e dos governos locais, com o objetivo de alavancar, por meio de intervenções específicas, um processo mais amplo de revitalização econômica – enfatizando a geração de emprego e renda, o apoio às pequenas e médias empresas, a qualificação profissional, passando por iniciativas comunitárias e pela participação dos agentes locais (governo municipal, organizações sociais, entidades e empresas já existentes) no processo de decisão e implementação da iniciativa (25).
São muitos os exemplos. Em Völklingen, na região do Saar (Alemanha) abandonada pela indústria siderúrgica, foi criado um centro comercial e tecnológico para sediar pequenas e médias empresas, concentradas nas áreas de informática, design e propaganda. Uma usina foi transformada em centro cultural e pólo de convenções, e o edifício das fornalhas, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, aproveitado como atração turística. Em Wolverhampton, na Inglaterra, também um antigo centro siderúrgico, estabeleceu-se um "bairro cultural" que entre 1993 e 1998 atraiu 75 empresas, muitas delas na área de mídia e produção cultural, gerando mais de 1500 empregos (26).
Em Mulhouse, na Alsácia, abalada pelo fechamento das minas de potassa, foi criada uma incubadora para novos negócios e atividades industriais, gerida por empresa privada, com o fornecimento de empréstimos a juros baixos, bancados pelo Fundo, treinamento e assessoria para pequenos empreendedores. Em Stoke-on-Trent, a indústria cerâmica ganhou novas perspectivas a partir da instalação de um centro de design. No bairro de Kop van Zuid, em Rotterdam, o programa financiou um centro de referência profissional com foco na questão do desemprego. Também na Holanda, em Groningen, foi montada uma Rede de Desenvolvimento Sócio-Econômico baseada na cooperação entre empresas, associações comunitárias, ONGs e o governo local, buscando soluções conjuntas para a geração de empregos e a revitalização econômica.
Um segunda fase do programa foi iniciada na segunda metade dos anos 90, com maior ênfase nos aspectos comunitários e participativos dos projetos (27). Em Bremerhaven, na Alemanha, em face do desemprego provocado pelo fechamento da indústria naval, atingindo principalmente imigrantes, foram criados, a partir do envolvimento da população, um pólo multifuncional de serviços e um centro cultural e comunitário, visando reintegrar os excluídos do mercado de trabalho, promover qualificação profissional, educação ambiental e consultoria para pequenas empresas. Em Friedichshain, bairro da periferia de Berlim que perdeu 20.000 empregos industriais, foi concebido um projeto de qualificação para formar operários especializados na construção civil, tendo em vista o boom de obras na nova capital alemã. Adotando os princípios da construção sustentável ou ecobuilding, permite a inserção dos trabalhadores na vanguarda do setor. Em Huddersfield, cidade média periférica da Grã-Bretanha, buscou-se adotar o lema da "cidade criativa" para atrair a indústria fonográfica, particularmente os estúdios independentes.
Nem sempre, porém, essas novidades constituem uma solução. Em muitos casos é flagrante o contraste entre a pujança das antigas atividades industriais e a pequena expressão das micro-iniciativas terciárias que pretendem ocupar seu lugar. Outros programas da União Européia destinam-se especificamente a regiões industriais importantes cujo papel na economia deve ser reiterado, como o RESIDER, voltado ao reerguimento econômico e industrial das bacias siderúrgicas. O exemplo de Charleroi, na Bélgica, revela esses princípios de diversificação e dinamização do tecido econômico a partir da base existente, reunindo iniciativas de descontaminação e recuperação ambiental a programas de inovação tecnológica, com a criação de um centro de pesquisas que pretende reconduzir a cidade à ponta-de-lança do desenvolvimento industrial (28).
Menos atraentes do ponto de vista urbanístico, para não dizer imobiliário, tais enfoques talvez sejam os mais eficazes para solucionar os problemas sofridos por cidades tradicionalmente dependentes do setor secundário. De um lado, a ênfase na perspectiva local, nas soluções inovadoras e na participação dos diferentes agentes da comunidade; de outro, a consciência da necessidade de um planejamento macroeconômico que recupere o potencial produtivo das regiões urbanas.
Nas cidades do Terceiro Mundo, as agências multilaterais de financiamento também têm enfatizado as iniciativas de desenvolvimento local, na medida em que correspondem a seus ideais de participação comunitária, simplicidade de soluções e recurso ao potencial de cada região. Mas poucas vezes essa perspectiva tem levado em conta os problemas relacionados ao esvaziamento de áreas industriais, situação normalmente identificada com os centros desenvolvidos. Assim, torna-se mais espinhoso o enfrentamento da questão nos pólos manufatureiros em processo de reestruturação econômica, como Santo André.
O Grande ABC, Santo André e o Projeto Eixo Tamanduatehy
O caso da região do Grande ABC, no setor Sudeste da Região Metropolitana de São Paulo, é emblemático no que se refere aos dilemas enfrentados pelos municípios industriais, aos desafios colocados pela reestruturação econômica, e ao papel a ser exercido, nesse quadro, pelos projetos de renovação urbana. Há mais de dez anos administrações locais procuram enfrentar um quadro de desindustrialização, desemprego e queda na arrecadação, por meio de políticas sociais urbanas e iniciativas diversas, entre as quais podemos destacar a cooperação entre as sete cidades da região, por meio de um consórcio intermunicipal, e, no caso específico de Santo André, a proposta de um grande projeto de renovação urbana ao longo do Rio Tamanduateí.
Na região do Grande ABC, o debate em torno do desenvolvimento social já resultou na criação de um programa visando a erradicação do analfabetismo, de um plano de integração e complementação dos equipamentos públicos de saúde e de um projeto voltado à reintegração social de meninas e meninos de rua. No que se refere ao desenvolvimento econômico, decidiu-se pela criação de um pólo tecnológico, de um programa de requalificação profissional e de outras iniciativas no sentido de aumentar a competitividade das cadeias produtivas da região.
Uma Agência de Desenvolvimento Econômico foi criada em 1998, reunindo associações comerciais, centros de indústria, Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), empresas do setor petroquímico e sindicatos. Sua missão é estabelecer ações de marketing regional para atrair investimentos, produzir conhecimento sobre os processos econômicos na região e incentivar pequenas e médias empresas. Pelo Programa Hábitat, o Banco Mundial e o BID forneceram recursos da ordem de US$ 300 mil para amparar essa iniciativas. Grupos de Trabalho foram organizados em torno de sete eixos estruturantes: educação e tecnologia; sustentabilidade das áreas de mananciais; acessibilidade e infra-estrutura; fortalecimento e diversificação das cadeias produtivas; ambiente urbano de qualidade; identidade regional; inclusão social (29).
Integrando o Plano Estratégico Regional, esses eixos levaram a Planos de Ações, entre os quais aquele voltado para a obtenção de um Ambiente Urbano de Qualidade. Esse eixo foi concebido não apenas como uma série de projetos de infra-estrutura, mas também como um conjunto de programas, ações e decisões políticas, tendo como principal meta o desenvolvimento integral do ambiente urbano, além da melhoria contínua da qualidade de vida da população da região do Grande ABC. Visando a redução das disparidades de desenvolvimento econômico e social do Grande ABC, pretende-se caminhar rumo à caracterização da Região Metropolitana de São Paulo como um espaço policêntrico e sede de uma nova cultura vivencial, prevendo-se a realização de projetos em áreas centrais das sete cidades (parques, áreas verdes e vegetação urbana), implantação de marcos referenciais regionais, recuperação ambiental e preservação do patrimônio cultural (30).
O Projeto Eixo Tamanduatehy nasceu em Santo André, fruto de vários processos em andamento: em primeiro lugar, do processo de articulação regional, mobilizando as sete cidades que compõem o Grande ABC, procurando reenfocar o planejamento urbano de forma integrada, envolvendo os agentes sociais e questões de desenvolvimento sustentável, uma vez que a região tem 56% de sua superfície em área de proteção aos mananciais. Em segundo lugar, o projeto Cidade Futuro, proposto para Santo André, prevê a construção coletiva de ações de desenvolvimento local e urbano envolvendo a sociedade civil. E, finalmente, a preocupação da administração municipal com o processo de reconversão produtiva em Santo André.
Com a adoção das diretrizes do planejamento estratégico, emergiu a oportunidade de se estudar um grande projeto de renovação urbana para os terrenos industriais e ferroviários situados ao longo do Rio Tamanduateí, em uma faixa de 8 km entre o rio (canalizado e ladeado por uma importante via marginal, a Avenida dos Estados) e a estrada de ferro. Ocupada originalmente por grandes complexos fabris, dos quais restam alguns em plena atividade (Rhodia, Pirelli) enquanto muitos foram abandonados, a faixa conta com excepcionais condições de acessibilidade, mas sua ocupação é limitada pelo zoneamento industrial. Integra um eixo maior que, prosseguindo ao longo do rio e da ferrovia, atravessa o município de São Caetano e chega aos bairros do Ipiranga e da Mooca em São Paulo. Essa enorme extensão de áreas aproveitáveis, hoje um panorama desolador de armazéns e fábricas decadentes ou em ruínas, constitui uma oportunidade inestimável para a renovação urbana na maior metrópole brasileira.
Para a concepção do Projeto Eixo Tamanduatehy concorreram os exemplos norte-americanos, europeus e argentino de projetos urbanos estratégicos. Comparecem portanto os elementos característicos desse modelo: a visão dos pólos terciários avançados como solução para a reestruturação do setor produtivo; o destaque para os empreendimentos culturais, as áreas livres e de lazer; a busca do aproveitamento da dinâmica imobiliária; e a valorização do espaço público e da qualidade espacial urbana, com vistas à qual se deveria contar com a contribuição de arquitetos conhecidos para o redesenho do eixo. Foram colocados como objetivos específicos a criação de uma nova centralidade metropolitana, revertendo a posição de “fundos” das zonas industriais e do ABC, a costura entre as duas metades de Santo André, historicamente divididas pelo eixo, e a afirmação de uma nova identidade para a cidade e para a região como um todo (31).
A construção de um novo centro regional passaria por componentes como prédios de escritórios, hotéis, centro de convenções, espaço para feiras e exposições, restaurantes, cinemas, grandes equipamentos culturais e outros elementos hoje ausentes na região, superando a atual dependência em relação ao pólo cultural e de serviços localizado no centro metropolitano de São Paulo. Além disso, prevêem-se áreas residenciais, que deverão conviver com favelas urbanizadas em alguns pontos do eixo.
Iniciada em 1997 e ainda em andamento, a elaboração do Projeto Eixo Tamanduatehy já envolveu propostas elaboradas por quatro escritórios de arquitetura e urbanismo (Joan Busquets, Christian de Portzamparc, Eduardo Leira e Cândido Malta), ampliando a idéia da construção coletiva do espaço urbano, aproveitando nesse sentido a própria diversidade de posturas urbanísticas. De certa maneira as propostas adotaram enfoques complementares. Enquanto o projeto Busquets está voltado à criação de áreas verdes, Leira se preocupou com as questões regional e metropolitana e com a inserção do projeto do ponto de vista da acessibilidade. Cândido Malta priorizou a busca do redesenho espacial e a criação de equipamentos geradores de uma nova centralidade para a metrópole. Finalmente, Portzamparc concentrou-se na exploração do desenho das quadras e suas volumetrias de ocupação (32).
Até o momento, a implementação do projeto esbarra em dificuldades oriundas da carência de recursos, da propriedade privada dos terrenos e da previsão de alguns empreendimentos já aprovados para implantação no local. Adiantando-se à intervenção pública, o mercado já havia se dado conta do potencial da área e definido projetos para shopping centers, um centro empresarial e uma universidade. O resultado é que as realizações efetivas se concentraram até agora na obtenção de algumas contrapartidas por parte desses empreendedores, no sentido de promover melhorias no espaço público (melhoramentos viários, recuperação paisagística, calçadões cobertos, criação de áreas verdes) (33).
O processo de implementação se ressente da ausência de uma entidade com autonomia financeira e domínio sobre os terrenos a serem renovados, a exemplo das que foram criadas em Battery Park City, Docklands, Barcelona, Puerto Madero e nas ZACs francesas. Dessa maneira, o principal trunfo do governo local em Santo André é o poder de regulação que permite negociar mudanças de legislação, possibilidades de reparcelamento do solo e mecanismos de captura da valorização imobiliária, entre outros instrumentos que poderiam viabilizar uma intervenção de maior porte, atualmente em estudo.
O projeto Eixo Tamanduatehy prevê a criação de espaços públicos, apostando na idéia de que a democratização desses espaços constitui um processo de redistribuição de renda e de inclusão social. Esta poderá ocorrer não apenas por meio da ampliação do convívio social democrático nas novas áreas a serem criadas, mas também através da criação de programas de geração de trabalho e renda, nos moldes construídos pelo processo de articulação regional.
As questões que podem ser colocadas para o projeto se aproximam daquelas levantadas pela experiência de cooperação intermunicipal: é possível construir efetivamente um novo tecido produtivo que supra as necessidades de inserção dos trabalhadores atingidos pela reestruturação econômica e pelo desemprego? Quais seriam os mecanismos que evitariam uma possível gentrificação da área, uma vez que muitas experiências do gênero, até o momento, apontam para as tendências excludentes do processo de atração de investimentos e de renovação urbana? É nesse sentido que se faz necessária uma reflexão contínua sobre tais questões, com a verificação crítica das potencialidades reais do desenvolvimento local, do alcance e dos limites colocados para os projetos urbanos.
Considerações finais
Em face da crise econômica, da reestruturação produtiva e da redefinição do papel do Estado, destaca-se cada vez mais a necessidade de formas de ação formuladas e implementadas em nível local, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico. Os elementos básicos do que Harvey denomina "empreendedorismo local" envolvem não apenas o desenvolvimento de parcerias entre o poder público e o setor privado, mas a capacidade mais geral de articulação, por parte dos atores e forças sociais. Partindo do princípio de que o poder de ordenar o espaço deriva de um complexo conjunto de forças, mobilizadas por diversos agentes, o governo local deve coordenar uma ampla gama de forças sociais, exercitando a governança urbana (34).
Lipietz aborda a mesma questão, enfocando formas intermediárias de regulação entre a dimensão material da aglomeração urbana, o governo local, a legislação e a ação do Estado. Define o conceito de governança como abrangendo todas as formas de regulação que não são mercantis nem específicas do Estado. Governança seria a sociedade civil menos o mercado, mais a sociedade política local, os notáveis e as prefeituras (35).
Muitas experiências recentes de articulação entre os setores público e privado apontam para uma possível reorientação do poder local, com vistas à inserção de questões relacionadas ao desenvolvimento econômico e social na agenda política (36). Todavia, o recurso à ação pontual dos governos locais coloca o risco do acirramento dos desequilíbrios regionais e internacionais, da mesma forma que a disputa pelos investimentos no quadro do planejamento estratégico – na medida em que algumas localidades estão melhor equipadas do que outras na luta autônoma pelo desenvolvimento.
Para evitar os efeitos deletérios dessa disputa, das guerras fiscais suicidas à exacerbação das diferenças, aumentando o abismo entre regiões privilegiadas e esquecidas, é preciso contar com instâncias regulatórias nas diversas esferas – local, regional, nacional e mesmo internacional. O exemplo europeu, em que a perspectiva estratégica convive com um alto grau de intervencionismo e com a multiplicação de iniciativas estatais estruturadoras, compensatórias e reguladoras, merece atenção especial nesse sentido.
Embora somente o futuro poderá dizer se as iniciativas de desenvolvimento local terão fôlego suficiente para superar problemas existentes e consolidar a reconversão industrial num processo de desenvolvimento sustentável, alguns limites já podem ser assinalados Em primeiro lugar, trata-se de um esforço que apresenta autonomia relativa e que, conseqüentemente, não pode prescindir de políticas nacionais, estaduais e regionais de desenvolvimento. Outros limites podem resultar do individualismo das tradicionais culturas municipalista e empresarial, da prevalência de interesses pontuais e casuísticos na esfera local, e da descontinuidade político-administrativa, que acarretam o risco de desestruturar esforços coletivos de longo prazo.
Quando se discutem formas de estimular a geração de trabalho e renda, também devemos levar em conta que a maneira pela qual se dá o desenvolvimento econômico, muitas vezes determinada em âmbito nacional, condiciona o caráter da participação dos agentes na esfera local, assim como a distribuição da renda gerada. A reestruturação produtiva, os efeitos da crise econômica e as novas desigualdades sociais colocam em pauta a necessidade de elaboração de estratégias que articulem os agentes sociais no sentido de enfrentar problemas urbanos e regionais, sem negar os conflitos existentes e a necessidade de políticas efetivas de inclusão social na escala do país.
notas
1
Artigo apresentado originalmente no IX Encontro Nacional da ANPUR. Ética, Planejamento e Construção Democrática do Espaço (Tema I: Escalas de poder e novas formas de gestão urbana e regional). O artigo “Desenvolvimento Local e Projetos Urbanos”, de autoria de Nadia Somekh e Candido Malta Campos, foi gentilmente disponibilizado pelos autores para o evento Workshop: Clusters Urbanos. Reestruturação Produtiva e Projetos Urbanos: Clusters e Tecnopólos como Instrumentos de Regeneração Urbana, organizado pelo Prof. Dr Carlos Leite, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 08.2004. Os artigos desta série são os seguintes:
- Metrô x Retrô: Califórnia 2004. Cidades, diversidade, inovação, clusters e projetos urbanos. Carlos Leite
- Desenvolvimento local e projetos urbanos. Nadia Somekh e Candido Malta Campos
- Enclaves globais em São Paulo: urbanização sem urbanismo? Zeuler Lima
- Fragilidade ambiental das áreas urbanas: o metabolismo das cidades. Paula Raquel da Rocha Jorge Vendramini, Gilda Collet Bruna e Juliana Magrini Di Cesare Marques
- Cidades na sociedade de informação: clusters urbanos. Fábio Duarte
- Notas sobre o fomento de Arranjos Produtivos Locais para o desenvolvimento econômico e renovação territorial urbana local. André I. Leirner
2
LIPIETZ, Alain: "Globalização, reestruturação produtiva e impacto intra-urbano." In: Pólis nº 27, ago. 1996, p. 11-16.
3
PORTAS, Nuno: "Tendências do urbanismo na Europa". In: Óculum nº 3 (vol. I). Campinas, FAU PUC-Campinas, mar. 1993, p. 6-13.
4
HARVEY, David: "Do gerenciamento ao empresariamento: A transformação da administração urbana no capitalismo tardio." In: Espaço & Debates nº 39 (vol. XVI), 1996, p. 48-64.
5
VAINER, Carlos B.: "Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano." In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Erminia: A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.
6
PANERAI, Philippe; MANGIN, David. Projet urbain. Marseille, Parenthèse, 1999.
7
Battery Park City Authority: "History and Design." (Monograph) New York, BPCA, 1998. Vide também BANHAM, Reyner: Megastructures: urban futures of the recent past. New York, Harper & Row, 1976; STERN, Robert A.; MELLINS, Thomas; FISHMAN, David: New York 1960. New York, Evergreen, 1996.
8
Commission for the New Towns: "Initiating urban change: London Docklands before the LDDC." (Monograph) London, LDCC, 1997.
9
Commission for the New Towns: "A strategy for regeneration." (Monograph) London, LDCC, 1997.
10
GHIRARDO, Diane: "London´s Docklands." In: Architecture after modernism. London, Thames & hudson, 1996, p. 176-194. Aos poucos, na medida em que os sucessivos lotes da operação eram desenvolvidos, a LDDC foi sendo desativada, extinguindo-se em 1998.
11
A torre, denominada One Canada Place, é o elemento mais visível do complexo de Canary Wharf, que segue um plano geral do escritório norte-americano Skidmore, Owings & Merril.
12
CALLON, Michel (org.): "Concevoir: Modèle hiérarchique et modèle negocié." In: BONNET, Michel (org.): "L'élaboration des projets architecturaux et urbains en Europe (vol. I): Les acteurs du projet architectural et urbain". Dossier du Ministère de l´Equipement, Paris, 1996.
13
GHIRARDO, Diane: "Megaprojects." In: Op. cit., p. 41-42.
14
PICHERAL, Jean-Blaise; BACHOFEN, Charles: "Dunkerque: Transformation des docks en coeur de ville"; CHIMITS, Catherine; GODIER, Patrice; TAPIE, Guy: "Bilbao: Entre volontarisme et pragmatisme". In: BONNET, Michel (org.): Op. cit., capítulo II, "Experiences de projets et strategies urbaines".
15
PHILLIPS, Duane. Berlin: A guide to recent architecture. London, Ellipsis, 1997.
16
"Los planes". In: Conclusiones del VI Congreso Iberoamericano de Urbanismo. Montevideo, out. 1994, s.n.p.
17
O mesmo não ocorreu em Sevilha e Lisboa, onde os complexos das exposições de 1992 e 1998, também em antigos setores portuários renovados, permanecem subutilizados.
18
GOTLIEB, Carlos: "Architecture et projet urbain en Espagne." Dossier du Ministère de l´Equipement, Paris, 1998.
19
BORJA, Jordi; FORN, Manuel de: "Políticas da Europa e dos Estados para as cidades." In: Espaço & Debates nº 39 (vol. XVI), 1996, p. 32-47.
20
À corporação foi concedido, além do domínio sobre os terrenos e prédios, o poder de desenvolver e impor projetos para a área, sendo encarregada de implementar a operação e viabilizá-la por meio da comercialização de seu potencial imobiliário. Não se previam recursos orçamentários: as empresas interessadas adquiririam os galpões e executariam às suas custas o projeto pré-estabelecido de reconversão. Em 1991, um concurso nacional definiu três propostas vencedoras no que se refere à arquitetura e ao detalhamento do conjunto.
21
VILLAROUCO, Fernanda M. O.; Et al.: "Programa de recuperación urbana Ribera Norte – Río Biobio –Concepción, VIII Region, Chile: Estudio de caso". In: Anais do IX Congresso Ibero-Americano de Urbanismo, Recife, nov. 2000.
22
A essa institucionalização das práticas antes "espontâneas" do mercado corresponde, no caso das metrópoles do Terceiro Mundo, a institucionalização das alternativas informais que pautaram, historicamente, o acesso da população de baixa renda ao espaço urbano: ocupações irregulares, auto-construção, comércio ambulante, transporte em lotações. Sobre isso vide MARICATO, Erminia: Metrópole na periferia do capitalismo: Ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo, Hucitec, 1996, p. 101-102.
23
BREDA-VÁZQUEZ, Isabel; CONCEIÇÃO, Paulo; BATISTA, Luisa Mendes; BRANCO-TEIXEIRA, Miguel: "Governância e programas de regeneração urbana: Novos desafios". In: Anais do IX Congresso Ibero-Americano de Urbanismo. Recife, nov. 2000.
24
Comisión Europea: “Hacia una política urbana para la Unión Europea.” CE, 1997.
25
O Fundo de Desenvolvimento Regional, que tem entre seus principais objetivos a regeneração de áreas industriais e urbanas, é um dos quatro Fundos Estruturais da União Européia, destinados a compensar desequilíbrios entre membros e regiões da comunidade. Para o programa URBAN, no período 2000-2006, o Fundo prevê a destinação de aproximadamente 700 milhões de euros.
26
s.n.a.: “An initial report on the Urban Community initiative, 1994-1999.” European Regional Development Fund & Cohesion Fund, 1999.
27
s.n.a.: “Vademecum for URBAN II Programme.” European Regional Development Fund & Cohesion Fund, 1999.
28
s.n.a.: “La Wallonie au futur: 10 ans de construction d'un projet de société.” IV Congrès La Wallonie au futur, Charleroi, 1997.
29
SOMEKH, Nadia; DANIEL, Celso: “Gestão compartilhada, limites e possibilidades: A experiência do Grande ABC.” São Paulo, CEPAM, no prelo.
30
Somekh, Nadia: "Mundo Urbano / Novas Utopias: Combate à pobreza e proteção à natureza". In: Grande ABC no século XXI. Santo André, Editora Livre Mercado, no prelo.
31
Vide as declarações do coordenador do projeto, Maurício Faria, em: s.n.a.: “Eixo Tamanduatehy: O futuro já chegou.” Separata da revista Livre Mercado, Santo André, 1999, p. 5.
32
Ibid., p. 10-17.
33
s.n.a.: “Eixo Tamanduatehy.” Santo André, PMSA, 2000.
34
HARVEY, David: Op. cit.
35
LIPIETZ, Alain: “O local e o global: Personalidade regional ou inter-regionalidade?” In: Espaço & Debates nº 38 (vol. XIV), 1994.
36
É preciso, no entanto, distinguir as iniciativas de desenvolvimento local das propostas de política urbana abarcadas pelas noções tradicionais de desenvolvimento urbano, ligadas às intervenções diretas do Estado nas áreas de infra-estrutura, habitação e saneamento, bem como do conceito de desenvolvimento sustentável. Enquanto toda iniciativa de desenvolvimento local deve, em última instância, visar o desenvolvimento sustentável, este pode ter objetivos e abrangência diversos, transcendendo a esfera local.
sobre os autores
Nadia Somekh, Doutora pela FAU / USP; Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Secretária de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura Municipal de Santo André
Candido Malta Campos, Doutor pela FAU / USP; Professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie