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O artigo faz um um ensaio comparativo das simbologias territoriais presentes no filme “A Vila”, de M. Night Shayamalan, e no projeto Broadacre City, de Frank Lloyd Wright


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LORDELLO, Eliane. “A Vila” medrosa e a Broadacre esperançosa: um ensaio comparativo de simbologias territoriais no cinema e na arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 059.06, Vitruvius, abr. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.059/475>.

Recentemente esteve em cartaz na cidade do Recife, o filme “A Vila” (1), película concebida para o circuito comercial, visando o grande público, motivo que justifica a análise da ideologia nele veiculada. Embora seu trailer passe a idéia de mais uma produção americana explorando um certo fascínio pelo susto, que acomete alguns adolescentes, não se trata disso. O medo habita sim esta película, mas ele atinge pântanos bem mais profundos que os meros recursos fáceis dos filmes para este tipo de público logram atingir. Eis a razão principal de o escolhermos como caso da argumentação que aqui apresentaremos.

Tomando o citado filme como parte do caso de análise comparada, procuraremos estudar os capitais e a economia de símbolos e representações relacionados aos territórios natureza, campo e cidade, nele presentes. Como nos valemos desta película como parte ilustrativa do nosso argumento, infelizmente, nos será inevitável aqui desmanchar o prazer do leitor cinéfilo, narrando o filme.

A vila, o bosque, a cidade

A história se passa numa vila aos moldes dos condados americanos de economia rural do século XIX, porém supostamente auto-sustentável e onde é proibida a existência do dinheiro. É a tal vila habitada por uma comunidade administrada por um conselho de seniores (the elders), que de forma aparentemente “democrática” delibera em conjunto com a população. O principal assunto das reuniões deliberativas gira em torno do mesmo tema: “aqueles de quem não dizemos o nome”, eufemismo que designa as supostas criaturas que povoam o bosque lindeiro à vila.

Por causa delas, os moradores da vila são terminantemente proibidos de transpor o limite fixado através de um renque de mastros embandeirados em flâmulas amarelas. O mesmo, obviamente, não inibe os supostos entes, que periodicamente fazem sua assustadora aparição de rotina na vila. Como tudo é muito simbólico neste filme, enquanto as flâmulas de alerta são amarelas, as assustadoras criaturas vestem vermelho. Motivo este, aliás, da proibição na vila do uso desta cor, que é combatida inclusive nas ervas daninhas casualmente encontradas nos jardins.

O vermelho naquela vila nada mais representa que o crime. Este, por sua vez, não só é o que alimenta o medo que motivou semelhante simbologia, como também é o próprio motivo tanto da criação do mito das criaturas, quanto da escolha daquela comunidade pela vida no campo. No entendimento dos seniores, para que esta opção possa ser sustentada, é imprescindível o mito dos malévolos entes do bosque, de modo que os segredos da vila não sejam descobertos. Estes, por sua vez, são guardados em caixas azuis, não por acaso, a cor da melancolia. Cabe lembrar que o filme é falado em inglês, idioma em que o vocábulo blue tanto significa azul quanto melancólico (vide a locução “feeling blue”, usada para exprimir tristeza, e, ainda, o dolente estilo musical nascido no Mississipi, conhecido por blues). Pois bem, as tais caixas azuis trancafiam o passado dos habitantes daquela vila, todos antes moradores urbanos, tendo em comum entre si a vivência de uma perda humana por crime. Eis, portanto, a explicação do vermelho – sangue –, para simbolizar o horror encarnado pelos entes do bosque. Outrossim, elucida-se que a verdadeira estremadura entre e a vila e o medo não são as flâmulas amarelas entre esta e o bosque, mas sim o próprio o bosque. É ele mesmo o intervalo espacial e até temporal entre a vila e a cidade, ela sim o lugar de fato do medo.

Tomamos como ilustração este filme por ser ele pleno de simbologias, não apenas as cromáticas, mas, sobretudo, as do ideário comumente vinculado à natureza, à cidade e ao campo. Esta tríade, em eviterna discussão na história urbana, é tratada neste filme como três territórios distintos, cada qual pejado de representações. O bosque representa a natureza, abrigo do primitivo, do incivilizado, em substância: o meio indômito. A cidade, por sua vez, é representada como lugar do crime, e, portanto, é a um só tempo o lócus e a causa do medo. Finalmente, o campo é o refúgio, buscado no momento da fuga urbana pela nostalgia do idílio, na crença de encontrar ali o paraíso perdido das perfeitas relações humanas.

Inicialmente recordando que o conceito de capital é inseparável da idéia de reprodução, o ativo de contínua reprodutibilidade que funciona como mantenedor da Vila é o medo. Este, por sua vez, é sustentado por uma economia simbólica calcada na tríade natureza, campo e cidade. Podemos elucidar tal tríade como recurso de manutenção do poder na vila através de alguns dos conceitos de capital trazidos por Boisier, partícipes do seu conceito maior de capital sinergético (2). São eles: capital simbólico, capital cultural, capital psicossocial.

O capital simbólico, conceito creditado a Pierre Bordieu, consiste no poder das palavras em encetar ações (3). Este recurso é articulado na vila pelo eufemismo “aqueles de quem não dizemos o nome”, artifício muito elementar, usado até na literatura infantil – vide Harry Potter, de quem um dos maiores inimigos é apodado como “o você sabe quem”. Elementar, mas não por isto menos poderoso, posto que é o próprio fato de não se poder dizer seu nome o que torna aterrador e supremo o suposto inimigo. É sabido que na Idade Média circulava o adágio popular: “a bruxa perde o poder quando dizemos o seu nome”, eis o que o uso do eufemismo contrapõe. Se não podemos pronunciar o nome do outro, nossa relação de alteridade será sempre desigual, ele o todo poderoso que sequer pode ser nomeado.

O segundo capital acionado na vila é o cultural, subjacente e mantenedor do simbólico. Para que houvesse a criação mesma do mito “daqueles de quem não dizemos o nome”, alguém na vila tinha que ter o conhecimento prévio do poder do eufemismo e do mito a criar. Eis o capital cultural, definido pelo conhecimento contido nas lendas, tradições, literatura, nas produções culturais em geral. Na vila, quem o possui é o Sr. Walker, apresentado como ex-professor de História Americana na Universidade de Pensilvânia. Não casualmente, ele próprio quem concebeu a idéia da vila. Há um momento em que argüido por sua filha Ivy, o Sr. Walker admite já ter ensinado sobre antigas lendas concernentes a entes que habitavam bosques. Entes que ele copiou em sua farsa para manutenção do medo, e, portanto do seu poder, na vila.

Finalmente o capital psicossocial, que Boisier situa nos corações e mentes humanas. É definido como a relação entre o pensamento e a ação, referindo-se a: sentimentos, emoções, recordações, a “vontades de”. Remete igualmente à inspiração de sentimentos coletivos tais como autoconfiança e fé de que o futuro pode ser socialmente construído. Este capital é acionado no discurso coletivo do medo, realimentado pelas histórias de crimes ocorridas nas cidades, cotidianamente narradas pelos seniores para os jovens. Por exemplo, no dia do casamento da irmã de Ivy, uma sênior perversamente relata à menina que também ela, a sênior, tivera uma irmã, cuja vida fora ceifada aos 23 anos, por um estuprador e assassino na cidade. Ora, o que esta sênior adrede faz é advertir a Ivy, de que, mesmo nos momentos felizes, é preciso estar vigilante. Por outro lado, este capital é acionado positivamente pela inspiração de credibilidade no ideal coletivo da vila, através dos discursos de gratidão pela possibilidade de vida em seu território. Tais falas têm lugar nas cerimônias coletivas, que sempre terminam pela divisa: “nós somos gratos pelo tempo que nos foi dado”, repetida ao final das orações de agradecimento, à guisa de amém.

Desvendando os signos da ideologia

Ademais, podemos explorar o viés ideológico deste filme através da economia política do signo, na compreensão baudrillardeana. Para tanto, vejamos o caso do mocinho – presença indefectível no cinema americano –, o audaz Lucius Hunt. Como o próprio radical de seu nome sugere, neste filme que apela a uma semiologia muito simplificada, Lucius representa a lucidez. Calado, lacônico, reflexivo, como convém ao papel do detentor da razão, ele é também o caçador da verdade, como o seu sobrenome sugere – Hunt, que na língua inglesa exprime tanto o verbo caçar, quanto o substantivo caça.

Para Baudrillard, a ideologia aparece sob a forma relacional entre a projeção de uma consciência e a idealidade de uma idéia ou de um valor, em suas palavras: “A mesma passagem mágica entre conceitos artificiais, mesmo metafísicos, transpostos dos bens materiais para as representações coletivas e para os valores” (4). É neste sentido que aquele personagem, sem o perceber, ameaça a ideologia de sustentação da vila.

Sempre visando o proveito coletivo, Lucius não alcança que a manutenção da ideologia está na base das negativas do conselho de seniores aos seus bem intencionados pedidos para atravessar o bosque em busca de remédios nas cidades. Diante de suas frustradas tentativas de convencer ao conselho de que não ameaçando aos entes do bosque ele poderia transpô-lo sem ser molestado pelas criaturas, Lucius testa a si mesmo cruzando a fronteira materializada pelas flâmulas amarelas. Então se dá a passagem mágica entre conceito artificial transposto ao material, de que fala Baudrillard: como que por castigo divino por tal afronta ao código da vila, naquela mesma noite, as supostas criaturas invadem-na. Assim, vemos que o ideal de sociedade perfeita que o conselho pretende com a vila, é mantido por uma nefasta ideologia de poder.

Diante da invasão, sobrevém a Lucius o sentimento de culpa, sem se aperceber de que a culpa mesma é poderoso recurso dos seniores para a sustentação da ideologia da vila. Açodado por tal sentimento, Lucius atribui o ocorrido ao seu ato de violação fazendo um mea culpa perante a platéia. Ao que, para ainda mais aguçar o delito do transgressor e proteger a ideologia, o sênior Walker responde com o perdão ao rapaz. Resposta esta, que só faz aumentar o poder do sênior, exatamente como explica Baudrillard o poder nas sociedades primitivas: um dom daquele que pode dar e a quem não se pode retribuir.

O ideal romântico e a aspiração libertária do modernismo

A proposta da comunidade auto-exilada no campo, vivendo aos moldes oitocentistas em plena atualidade (como o filme posteriormente vem a revelar), é uma manifestação tardia do ideal romântico diante da insurgente modernidade urbana do século XIX. Centenário que em sua segunda metade assiste à emergência cabal, prenunciada desde o Renascimento, da modernidade nas cidades, e à celeridade das transformações urbanas e tecnológicas que nela se dão. Entre tantas definições, a modernidade pode ser entendida como o período em que o homem, influenciado pelo precedente iluminismo, passou a se reconhecer como um ser autônomo, auto-suficiente e universal, e a se mover pela crença de que, por meio da razão, pode-se atuar sobre a natureza e a sociedade (5). Convicção e atuação estas que podem ser compreendidas como transformações reais, progressivas e necessárias do pensamento (6).

Nesse contexto de liberação de entraves lança-se a semente do que posteriormente chamar-se-ia modernismo. Sendo um movimento que encampou diversos ramos da atuação estética, conheceu amplo leque de variadas manifestações artísticas, literárias e arquitetônicas. Exploraremos aqui apenas estas últimas, nos atendo a examinar alguns dos ideais modernistas constelados em Broadacre City, a utópica cidade concebida a partir dos anos 30 do século passado por Frank Lloyd Wright.

A vila – refúgio escapista, e Broadacre – utopia libertária modernista

"Entre as margens dos grandes lagos, e pelos prados todos,
Farei cidades inseparáveis, umas de braços dados com as outras." (Walt Whitman, Folhas das Folhas da Relva)

Tanto “A Vila” quanto Broadacre se projetam no território dos Estados Unidos, refletindo cada qual ao seu modo a cultura norte-americana. A Vila é um ensaio sociológico e cenográfico de M. Night Shayamalan, seu roteirista, produtor e diretor. Broadacre é um projeto de Frank Lloyd Wright, arquiteto influenciado pela poesia norte-americanista de Walt Whitman e pelos ensinamentos arquitetônicos de Louis Sullivan, da Escola de Chicago.

Ambas fazem uma crítica à cidade. Na “Vila” ela é tida como sede do crime, e na proposta de Broadacre descrita como lugar do barulho, da poluição, e onde a habitação se reduz a “um conjunto de celas de aluguel instaladas sobre a rigidez de um solo artificial. “A cidade não é mais que uma forma ou outra de aluguel” (7). Ambas espacializam-se de forma predominantemente horizontal. “A Vila” com suas casas de madeira, tem como única estrutura verticalizada a torre de atalaia, em nome da vigília permanente contra uma suposta invasão dos monstros bosquímanos. Broadacre, por seu turno, tem a horizontalidade defendida por um Frank Lloyd que assevera a “horizontalidade natural” como “a direção da liberdade humana sobre a terra” (8).

Uma e outra negam o passado urbano. Na “Vila”, como vimos, ele é encarcerado, em Broadacre, salvo pela tecnologia, ele é excluído do projeto. Ao integrar a tecnologia ao projeto, Frank Lloyd visa liberar o homem para as tarefas que considera mais nobres, participantes do “desenvolvimento estético da vida” (9), e que devem ser desvinculadas da subsistência. Esta liberação é o único legado do passado urbano admitido no seio de Broadacre, o que elimina todo o restante.

“A Vila” e Broadacre defendem uma romântica volta à terra – o capital natural por excelência, na compreensão de ambas. Na “Vila”, a terra onde “vivemos e plantamos”; em Broadacre, capital natural, dividida em um acre por unidade habitacional, para que cada residência possa contar com seu quinhão produtivo. Este, por sua vez, estaria ligado por auto-estradas e eficiente sistema de transportes a toda provisão de produtos, divertimentos, num raio de 10 a 40 minutos. No tocante a isto, disse Frank Lloyd: “A única base segura da velocidade reside em uma sã utilização da terra” (10). Portanto, a diferença entre as proposições reside na admissão em Broadacre do capital tecnológico, que a viabiliza, e que a Vila, ao contrário, exclui.

Neste ponto cabe retomar nossa reflexão central sobre a simbologia de natureza, campo e cidade. Na “Vila”, a cidade é o crime, o campo o refúgio e a natureza (representada pelo bosque) mero intervalo indomável entre ambos. Na utopia modernista de Broadacre, ao contrário, a cidade, o campo e a natureza estão integrados num ideal comum de vida, pela utilização dos aportes de cada qual. Senão vejamos: Broadacre propala o uso racional dos recursos naturais, inclusive os estéticos, destarte, a natureza é entendida um bem comum, um patrimônio. O campo é um território residencial e produtivo, em perpétua comunicação com as unidades prestadoras de serviços e os mercados (que podemos compreender como as unidades citadinas do projeto), através das auto-estradas.

A respeito dessa integração afirmou Kenneth Frampton:

Uma das ironias de nosso século está no fato de Broadacre City ter correspondido, mais estreitamente que qualquer outra forma de urbanismo radical, aos preceitos centrais do Manifesto comunista de 1948, que defendia “a abolição gradual da distinção entre cidade e campo através de uma distribuição mais equânime da população na terra.” (11)

Assim, consideradas as semelhanças e diferenças expostas, podemos concluir pela eleição de Broadacre como uma opção libertária, que contrapõe ao pessimismo da “Vila” uma perspectiva esperançosa em relação à urbanidade. Perspectiva que participa do ideal libertário do modernismo, senão efetivado, ao menos tentado em várias propostas e projetos. Será, talvez, esta busca incansavelmente propositiva da liberdade, um dos maiores legados dessa vanguarda.

notas

1
A Vila ("The Village"). Direção de M.Night Shayamalan. Com Joaquin Phoenix, Bryce Dallas Howard, William Hurt e Sigourney Weaver. Touchstone Pictures, 2004.

2
BOISIER, Sergio. “El desarollo territorial a partir de la construcción de capital sinergético”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n.2. São Paulo: ANPUR, 2000.

3
BORDIEU, Pierre. 1993, 1997. Apud BOISIER, Sergio. Op. cit.

4
BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica à economia política do signo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995.

5
HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico da Língua Portuguesa 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

6
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

7
WRIGHT, Frank Lloyd. Apud CHOAY, Françoise. O urbanismo – utopias e realidades: uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 1979.

8
Idem, ibidem.

9
Idem, ibidem, p. 241.

10
Idem, ibidem, p.246.

11
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 227.

sobre o autor

Eliane Lordello é arquiteta, Mestre em Arquitetura pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PROARQ/FAU/UFRJ, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano – MDU/UFPE

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