“§1º Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental”.(Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257 de 10/07/2001)
Segundo uma acepção comum, operação urbana é um instrumento urbanístico que pressupõe formas de parceria entre o poder público e o setor privado, interessado na permissão de construir área adicional à definida pela lei: ao pagar os benefícios decorrentes de exceções à legislação urbana (2), os empreendedores privados financiariam o investimento público na transformação de determinada parte da cidade, objeto de operação. Em outras palavras: mediante a outorga onerosa de exceções à lei de uso e ocupação do solo, isto é, pela arrecadação das contrapartidas a serem pagas pelo empreendedor em troca dessas exceções, uma operação urbana deveria garantir recursos para custear intervenções de estruturação, qualificação e melhoria das áreas definidas como território de sua atuação.
Entretanto, desde uma posição crítica, atenta aos modelos de produção e apropriação do capital fixo social urbano (3), parece claro e indispensável que as definições acima enunciadas passem a admitir uma ordem de precedência e subordinação entre as duas séries, de modo que, apesar de inseparavelmente complementares, a série correspondente ao setor privado venha condicionada e atrelada à série pública. Com isto não se conclui que aquela seja secundária relativamente a essa, mesmo por que ela a torna possível. Apenas ressalva que, no plano técnico, jurídico e financeiro de uma determinada operação urbana, os mecanismos e interesses referentes à concessão onerosa dos benefícios estariam submetidos a, ou melhor, inferidos dos objetivos de transformação física, social e ambiental urbana (no sentido das séries tenderem a uma unidade territorial coerente e plural, coletivamente reconhecível e apropriada).
Talvez seja sob esta ótica – e, mesmo assim, dentro de certas condições – que uma dada operação urbana possa supor maior alcance urbanístico e social, i) fugindo da armadilha arrecadatória, da lógica tributarista e/ou especulativa que muitas vezes acabam se sobrepondo às decisões e interesses públicos; ii) garantindo a recuperação e distribuição da mais-valia gerada pelo próprio investimento público, e, assim, regulando distorções de valorização geradas por esses mesmos investimentos (4); iii) promovendo formas de ocupação mais intensa, qualificada e inclusiva do espaço urbano articuladas a medidas que racionalizem e democratizem a utilização das redes de infra-estrutura e equipamentos sociais.
Procurando repercutir e prolongar essas posições, as operações urbanas, em São Paulo, ganham novas dimensões. A definição de quatro novas áreas – Butantã - Vila Sônia, Vila Maria - Campo de Marte, Vila Leopoldina-Jaguaré e Diagonal Sul –, como objeto de estudos e proposição, suscita uma linha de indagações e hipóteses de atuação que põem sob outra perspectiva (diversa, senão divergente, da até então dominante) o processo de formulação desse instrumento de política pública e desenvolvimento urbano.
E isto tem a ver com as seguintes condições e escolhas:
- Quanto a razões e objetivos. as razões gerais por que essas áreas (juntamente com outra cinco) foram eleitas lugar de operação urbana remetem, em grande medida, a processos de mudança que afetam extensas partes da metrópole, e desde logo, às tendências que se verificam na constituição de sua base produtivo-econômica; seja como for e antes de mais nada, os objetivos a serem alcançados devem pautar-se pela exigência e pela possibilidade (aberta por esses mesmos processos de mudança) de avançar (indispensáveis, senão tardias e inadiáveis) estratégias de atualização, qualificação e integração da base territorial, técnica e social da cidade de São Paulo.
- Quanto a princípio e linhas de ação. Se a ampliação dos espaços públicos, a organização do transporte coletivo, a implantação de programas habitacionais de interesse social e a melhoria da infra-estrutura e do sistema viário devem constituir (conforme prescrito no PDE) eixos básicos de atuação localizada das novas operações, o princípio comum que (a par e para além dos novos marcos jurídicos), os fundamenta e ultrapassa será a promoção, valorização e democratização do capital fixo social e, logo, a coerente construção e articulação dos sistemas gerais e territorialidades diversas que constituem o espaço urbano: habitação, mobilidade, produção, centralidade e “verde”. Daí deriva a posição de submeter a série privada dos interesses mercadológicos (ou corporativos) à série pública de objetivos físico-territoriais, sócio-ambientais e econômicos de maior abrangência e alcance transformador e distributivo.
- Quanto a procedimentos analítico-propositivos. Como instrumento de antecipação e mediação das futuras ações dos agentes públicos e privados no âmbito espacial e legal de atuação de cada operação urbana, vem proposta a elaboração, para cada operação, de um Plano-Referência de Intervenção e Ordenação Urbanística -PRIOU. Por esse instrumento, i) discrimina-se o perímetro de atuação de determinada operação, bem como os diversos setores que ele inclui; ii) identificam-se e caracterizam-se os problemas urbanos e os objetivos a serem a alcançados; iii) definem-se as diretrizes de intervenção pública; iv) estima-se o potencial de construção adicional a ser alienado, distribuindo-o por setor e por uso; v) determinam-se os parâmetros urbanísticos e financeiros para sua realização; vi) estabelecendo um programa de prioridades que correlaciona e encadeia investimento público e empreendimento privado.
Nesta linha de atuação, o resgate do papel antecipador do projeto urbano diz respeito à capacidade (que lhe é intrínseca) de pré-figurar e experimentar (de modo tecnicamente pertinente) hipóteses e alternativas de estruturação e configuração urbanas, propondo e avaliando formas e relações de compatibilidade e incompatibilidade, de proximidade e distância, de inclusão e exclusão, de agregação e conexão, de conjunção e disjunção dos materiais, sistemas, sujeitos e atividades. Mas, por isto mesmo, tal resgate significa também confiar ao projeto (ou plano-referência) a possibilidade de prever (e, assim, regular) a geração e distribuição dos valores posicionais e da mais valia urbana, quando não, por vias de cooperação ou associação, constituir matéria e fator de indução da atuação privada.
Os textos que seguem, prenunciados e articulados por essa introdução, pretendem dar uma idéia geral das indagações, hipóteses, limites e proposições suscitadas pelo trabalho no campo das operações urbanas, realizado no período 2001/2004, dentro do Departamento de Projetos Urbanos da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano da Prefeitura do Município de São Paulo (5). Seguindo uma certa ordem (cronológica e temática), e sempre desde o ponto de vista do urbanismo, esse conjunto de artigos vai do processo de reavaliação crítica das operações urbanas então vigentes na cidade (aqui focado no exemplo Faria Lima) até as proposições para a formulação de novas operações previstas no Plano Diretor Estratégico de 2002. Este itinerário inclui o esforço de construção de linhas analítico-propositivas, na tentativa de explicitar e sistematizar conceitos e instrumentos técnicos que nutriram e balizaram teórica e operativamente o trabalho (6).
Como se sabe, a partir de 2001, as políticas urbanas em geral e os instrumentos urbanísticos em particular passaram a remeter a novos marcos jurídicos e institucionais, tanto de âmbito federal (Estatuto da Cidade, 2001) quanto, no caso específico da cidade de São Paulo, municipal (Plano Diretor Estratégico, 2002, e Planos Regionais Estratégicos, 2004). A rigor, tal remissão constitui ainda processo de aproximação, reconhecimento e experimentação das novas possibilidades, todavia não plenamente desveladas ou exploradas. Portanto, mas não só por isto, e mesmo que o ponto de partida já vá relativamente distante, os artigos seriados (abaixo acessíveis) estão longe de constituir um ponto de chegada. Antes, compõem uma espécie de relato intermediário, de mapa provisório, fragmentário e parcial (7), de experiências em curso, que tenta apontar alguns problemas da atuação urbanística na cidade contemporânea brasileira, sugerindo linhas (ou hipóteses) de desdobramento, prolongamento e, quem sabe, renovação dessa atuação.
Esse relato-mapa vem traçado pela reunião e exposição de temas que, elaborados ao longo de percurso, resultam textos mais ou menos independentes entre si (o que não deixa, por isto mesmo, de provocar certa recorrência de informações).
notas
1
O presente artigo é parte de uma série de artigos sobre o assunto, disponibilizados nesta mesma editoria:SALES, Pedro M. R. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 1. Introdução". Arquitextos, Texto Especial nº 295. São Paulo, Portal Vitruvius, abril 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp295.asp>.SALES, Pedro M. R. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 2. Operação Urbana Faria Lima: relatório de avaliação crítica". Arquitextos, Texto Especial nº 300. São Paulo, Portal Vitruvius, abril 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp300.asp>.SALES, Pedro M. R. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 3 – Operações Urbanas: plano-referência e proposições". Arquitextos, Texto Especial nº 305. São Paulo, Portal Vitruvius, maio 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp305.asp>.SALES, Pedro M. R. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 4 – Operação Urbana Butantã-Vila Sônia". Arquitextos, Texto Especial nº 310. São Paulo, Portal Vitruvius, maio 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp310.asp>.SALES, Pedro M. R. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 5. Diagonal Sul: território a tempo". Arquitextos, Texto Especial nº 315. São Paulo, Portal Vitruvius, junho 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp315.asp>.BERNARDINI, Marcelo M. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 6 – Operação Urbana Vila Leopoldina – Jaguaré". Arquitextos nº 062.03. São Paulo, Portal Vitruvius, julho 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq062/arq062_03.asp>.OLIVEIRA, José Geraldo Martins de. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 7 – Operação Urbana Carandiru – Vila Maria". Arquitextos nº 065.03. São Paulo, Portal Vitruvius, outubro 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq065/arq065_03.asp>.MAGALHÃES JR. , José. "Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projeto. Parte 8 – Operação urbana Água Branca, revisão e proposição". Arquitextos nº 066.03. São Paulo, Portal Vitruvius, novembro 2005 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq066/arq066_03.asp>.
2
Benefícios esses que, segundo o Estatuto da Cidade, podem incluir além do potencial adicional de construção (inerente ao instituto do “solo criado”), mudança de parâmetros urbanísticos e regularização da edificação.
3
B. Secchi. Prima lezione di urbanística, 2000. “A verdadeira vitória do mercado e de suas mais aberrantes formas especulativas sobre o projeto civil se afigura hoje total, tanto em termos práticos quanto teóricos” (p. 179), seja pelo urbanismo quantitativo, seja pela tradução e redução monetarista da construção e transformação da cidade e do território, que, sob estas condições, se tornam simples imagem física do mercado, um mercado de mercadorias supérfluas. Por isto e apesar dos malogros, diz Secchi, o urbanismo não pode abrir mão do contínuo exercício da crítica social.
4
Ver Brasil, Governo Federal. Plano diretor participativo. Brasília: Confea / Ministério das Cidades, 2004.
5
A gestão 2001-2004 teve como prefeita M. Suplicy e a Secretaria de Planejamento Urbano teve como secretario o arquiteto J. Wilheim.
6
A concepção do Plano-Referência de Intervenção e Ordenamento Urbanístico –PRIOU–, e a formulação das operações urbanas Butantã -Vila Sônia e Diagonal Sul foram coordenadas pelo autor. A operação de Vila Leopoldina-Jaguaré ficou a cargo do arquiteto Marcelo M. Bernardini e a coordenação de Vila Maria-Campo de Marte foi de responsabilidade do arquiteto José Geraldo M. Oliveira, todas elas realizadas no Departamento de Projetos Urbanos, dirigido pelo arquiteto J. Magalhães Jr. Água Espraiada e Jacu-Pêssego (Pólo de Desenvolvimento Leste), outras duas operações urbanas lançadas no período, são da responsabilidade de outros órgãos municipais (Emurb e Gabinete da Prefeita).
7
Relato parcial no sentido de incompleto, não concluído, mas também por constituir ponto de vista pessoal sobre o qual, sem deixar de reconhecer o processo de trabalho necessária e inegavelmente coletivo de onde decorre, o autor assume inteira responsabilidade.
sobre o autor
Pedro M. R. Sales é arquiteto formado e doutorado pela FAU USP. Professor e pesquisador, é vinculado à Escola da Cidade e à Universidade Anhembi Morumbi. Assessor técnico da Sempla, entre 2001 e 2004, coordenou a formulação do plano de intervenção e ordenação de operações urbanas na cidade de São Paulo