Embora tendo raízes familiares em Veneza, e apesar de meu profundo amor por essa cidade, não me foi possível pôr em prática o desejo de visitar a última Bienal de Arquitetura lá realizada.
Tinha especial curiosidade de ver a instalação da mostra no ambiente do antigo “Arsenale”, e também me atraía a retrospectiva de Lina Bo Bardi, arquiteta que sempre admirei desde meus tempos de estudante, e cuja obra sem dúvida terá ganho uma dimensão especial ao ser apresentada no espaço da Cá Pesaro e na excepcional atmosfera cultural e física de Veneza.
Por isto foi ainda maior o interesse com que li o artigo “Sobre as gôndolas da Corderie”, de Carlos M. Teixeira, em Textos Especiais Arquitextos nº 272, Portal Vitruvius, de dezembro de 2004.
Mas à parte estas considerações que tocam a um relacionamento pessoal, encontrei no artigo eco para impressões e pensamentos que vêm me ocupando de tempos para cá diante das tendências que se afirmam no panorama internacional da arquitetura.
A polêmica cultural e a crítica de arquitetura sempre sofreram por um excesso de intelectualismo e por uma prolixidade semântica com que grande parte de autores se referem à produção de seu período: a ponto de outorgar ao processo criativo características de um “mistério poético” ou de um sofisticado exercício mental que nem sempre correspondiam à personalidade do arquiteto ou à natureza de sua obra.
Mas este endereço se tornou quase indecifrável diante da eclosão morfológica e da ilimitada liberdade gráfica desencadeadas pelo computador como instrumento de projeto, e apoiadas num desenvolvimento tecnológico que permite executar a qualquer preço “fantasias” espaciais que glorificam os novos deuses do mercado e os arquitetos que os servem..
E então nenhuma cidade de respeito se sentirá realizada sem que possa exibir a sua versão do Museu de Bilbao. E nenhum político municipal de importância arriscará sacrificar sua carreira deixando de inscrever algum Ghery ou Nouvel no rol dos encargos de sua administração.
E ao mesmo tempo, diante da infinita gama de possibilidades técnicas que o arquiteto tem hoje a seu dispor, parece tornar-se menos importante o realmente realizar o projeto, e a “visão virtual” toma às vezes o lugar da obra concluída, colocando-se no mesmo grau de importância no contexto cultural. E os expedientes gráficos, expositivos e mesmo coreogrãficos se transformam num custoso mas indispensável fator da ação do arquiteto.
É isto que tansparece – na minha compreensão – de quanto descreve Carlos M. Teixeira sobre o conteúdo e a montagem do exposto na Bienal. E não posso deixar de registrar uma nostálgica lembrança da retórica direta e simples com que os mestres de minha geração transmitiam em traços e em palavras sua linguagem arquitetônica: a leitura visual era clara, assentada sobre conceitos lógicos de utilidade e economia, e traduzida em formas e espaços racionalmente assimiláveis e esteticamente classificáveis. O contexto da cidade ou do entorno ambiental e da memória histórica interferia de forma mensurável no resultado construído, e o emprego dos materiais ou das estruturas se baseava num conhecimento natural e imaginoso, inovador mas também respeitoso de costumes e tradições.
Mas mais do que tudo, os programas construtivos e a argumentação ideológica se voltavam muito mais para o preenchimento de necessidades e aspirações da sociedade e do indivíduo, do que para reluzentes e impressionantes engenhos formais.
Será talvez este um dos motivos que fizeram certamente da mostra de Lina Bo Bardi um marco de exceção no quadro do grande evento da cidade lagunar. E sua colocação em separado na nobre sede da Cá Pesaro poderá então ter dado lugar a reflexões equilibradas e comparativas, sobre os caminhos mais autênticos que a arquitetura de hoje deveria buscar.
Concedi-me entrar nestes comentários, mesmo ciente da ousadia de dar opiniões baseadas em intuição e não numa verificação de fatos: intuições sugeridas pelo artigo de Teixeira a um observador algo afastado, pouco familiar com os mais novos nomes da vanguarda da arquitetura mundial, e certamente prisioneiro de seus próprios conceitos, formados no exercício profissional em dias já superados. E conhecedor apaixonado de Veneza, sob o fundo da qual qualquer exibição adquire um significado vibrante, e qualquer polêmica se humaniza e modera, ao som musical e amigo do dialeto vêneto.
sobre o autor
Vittorio Corinaldi é arquiteto formado na FAU-USP e correspondente Vitruvius em Tel Avivi, Israel