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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
A recente demolição, em 2014, das antigas Oficinas da Light, no Cambuci, expressivo conjunto industrial paulistano, representa, exemplarmente, a dificuldade de se conciliar ações de preservação do patrimônio cultural e de planejamento urbano.

english
The recent demolition of the antique Light Factory, at Cambuci, in 2014, significant industrial complex of the City of São Paulo, represents, exemplarily, the difficulty to reconcile the actions to preserve the cultural heritage and urban planning.

español
La reciente demolición, en 2014, de los antiguos talleres de la empresa Light, expresivo complejo industrial de São Paulo, representa, de forma ejemplar, la dificultad de conciliar las acciones de conservación del patrimonio y de la planificación urbana.


how to quote

TOURINHO, Andréa de Oliveira; PIRES, Walter. Como anda a temperatura no Cambuci? Patrimônio industrial e dinâmicas urbanas na demolição das antigas oficinas da Light em São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 193.00, Vitruvius, jun. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.193/6086>.

Essa era a forma como os funcionários da Light, nas décadas de 1940 e 1950, costumavam avaliar a mobilização e participação nas campanhas salariais e trabalhistas dentro da poderosa empresa de capital canadense, que monopolizava serviços fundamentais de infraestrutura na cidade de São Paulo. As Oficinas do Cambuci, famosas pela eficiência e qualidade de seus serviços, eram, também, reconhecidas pelo engajamento de seus trabalhadores: uma espécie de termômetro político da Light.

Esse envolvimento dos funcionários com a empresa e as Oficinas possivelmente os teria levado a reagir à inimaginável, até bem pouco tempo atrás, demolição completa do conjunto secular de edificações, que abrigaram seus espaços de trabalho. Além de lugar de trabalho e de mobilização política – ali se organizaram as primeiras greves da empresa –, as Oficinas do Cambuci também foram locais de manifestações esportivas e festivas.

Ao contrário desse agitado cenário, o atual terreno vazio, onde funcionou durante mais de um século esse complexo industrial, é hoje um frio termômetro das conflitivas dinâmicas que constroem cotidianamente a cidade. De um lado, os grandes empreendedores imobiliários que atuam na produção do “novo”, menosprezando as possibilidades que construções preexistentes ainda apresentam. E, de outro lado, setores da administração pública que procuram reconhecer os valores da cidade existente, sem conseguir, no entanto, conciliar as ações entre as políticas de preservação do patrimônio cultural e as do planejamento urbano.

O conjunto industrial conhecido como Oficinas do Cambuci correspondeu a uma extensa área, com mais de 100.000 m², que, desde o final do século 19, abrigou atividades vinculadas às empresas de transporte público e produção/fornecimento de energia elétrica em São Paulo. Este conjunto constituiu expressivo acervo arquitetônico industrial e espaço de memória dessas atividades relacionadas ao importante papel da Light na construção da cidade e seu consequente simbolismo, durante o século 20. Mesmo com as mudanças posteriores levadas a cabo pelas empresas sucessoras da Light – a Eletropaulo, criada em 1981, após a estatização da empresa em 1979, e a AES Eletropaulo, em 1999, a partir de sua privatização –, o conjunto permaneceu ligado às suas atividades originais.

Apesar dessa relevância, as Oficinas foram totalmente demolidas entre os meses de agosto e outubro de 2014, após a celebração, em 2012, de instrumento de compromisso de venda da área por sua proprietária, a empresa AES Eletropaulo.

Se cada vez é mais evidente, defendida e divulgada a necessidade de associação entre preservação do patrimônio cultural e planejamento da cidade, não é, contudo, o que, em geral, ocorre na prática. Fato exemplar desta dissociação é, justamente, a demolição integral desse conjunto de Oficinas na cidade de São Paulo: perdeu o urbanismo e perdeu a preservação da memória e da história do patrimônio industrial paulistano. O objetivo deste artigo é refletir, a partir desse fato, sobre essas questões.

Consolidação da área das Oficinas do Cambuci

A grande área que abrigou as instalações da Light e posteriormente da Eletropaulo situa-se em terrenos da várzea do rio Tamanduateí, próxima a seus afluentes, hoje canalizados – os Córregos do Cambuci e do Lavapés. Constituem terrenos baixos, lentamente recuperados da várzea inundável a partir da retificação do leito original do rio, que, mesmo assim, ainda sofrem com alagamentos.

A escolha dessa área para instalação das primeiras oficinas e estábulos de bondes à tração animal da antiga Companhia Viação Paulista, no final do século 19, pode ter sido influenciada por sua localização próxima ao importante Caminho do Lavapés, que deu nome à rua atual. Essa antiga estrada ligava o núcleo original da cidade a Santos, acompanhando o vale do Tamanduateí, no qual se desenvolveriam os bairros do Cambuci, Ipiranga, Sacomã, entre outros.

As curvas, tão características desse trecho do antigo caminho, resultam da escolha de traçado a salvo das áreas que eram periodicamente inundadas, bem como pela disposição de algumas colinas próximas, que definem os terrenos mais altos dos bairros da Liberdade, Aclimação e Cambuci, no rumo do espigão principal da cidade, que divide os vales dos Rios Tamanduateí e Pinheiros.

Localização do conjunto das Oficinas do Cambuci, entre o canal do rio Tamanduateí e a Rua Lavapés, indicada pelos autores [Mapa Sara Brasil (1930), folha 51. Detalhe]

Desde o século 19 e ao longo do século 20, a retificação do Tamanduateí impulsionou a ocupação de sua várzea e facilitou a ligação dos bairros que se desenvolveram ao longo de suas margens, como Brás, Mooca, Ipiranga e Cambuci. Os terrenos situados entre o antigo Caminho do Lavapés e o rio beneficiaram-se desses melhoramentos e foram intensamente ocupados. Instalaram-se grandes estabelecimentos industriais como as fábricas da família Penteado, dos cigarros Sudan e de chapéus Ramenzoni, que não existem mais. Nessa área, no final da década de 1940, foi construído o conjunto habitacional da Várzea do Carmo, expressivo projeto do arquiteto Attilio Correa Lima e equipe para o antigo IAPI.

Consolidando sua ocupação, a Light – que adquirira em 1901 os primeiros terrenos dessa gleba, pertencentes à Cia. Viação Paulista, – ampliou consideravelmente suas instalações, incorporando novos imóveis e diversificando suas atividades, de acordo com as modificações tecnológicas dos serviços de transporte por bondes elétricos e do fornecimento de energia (1).

Imagem tomada do Morro do Piolho, no Cambuci. Em primeiro plano vemos as casas da Rua do Lavapés e ao fundo o conjunto da Light
Foto divulgação [Acervo Casa da Imagem/DPH/SMC]

Características de um expressivo conjunto industrial

O conjunto arquitetônico das Oficinas do Cambuci caracterizou-se pela construção de grandes galpões modulares, organizados ao longo de vias internas de circulação.

A área era marcada, predominantemente, por sua horizontalidade, definida pelas edificações térreas ou de poucos pavimentos, próprias para atividades fabris de produção, montagem e manutenção de equipamentos para transporte (bondes de passageiros ou para usos especiais) e produção/distribuição de energia (postes, luminárias, transformadores etc.).

Foto aérea com indicação das edificações por período de construção [Invamoto, 2005, p. 52]

Os edifícios mais antigos, construídos até a década de 1940, foram executados com estruturas metálicas em aço e alvenaria de tijolos aparentes. O desenho das coberturas, definido pelas linhas e inclinações dos telhados, em duas águas ou sheds, marcavam caracteristicamente esse conjunto. Os galpões com coberturas em shed exibiam um cuidadoso e inusual desenho denteado nas alvenarias de tijolos aparentes no arremate superior das fachadas.

Vista de galpões com cobertura em shed [Arquivo AES Eletropaulo]

Detalhe da cobertura em shed, 2014 [Arquivo da AES Eletropaulo]

O único elemento que alterava a horizontalidade predominante do Conjunto, que pode se observar nas fotos mais antigas, era a caixa d’água metálica que já existia em 1918, substituída, posteriormente, por outra em estrutura de concreto armado. Da via pública, contudo, pouco se discernia, nas últimas décadas, devido à altura dos muros de fechamento da área. À distância, apenas a caixa d’água e alguns galpões um pouco mais altos podiam ser observados.

Oficinas da Light no Cambuci, 1917 [FPHESP in: Invamoto, 2005, p. 24]

Os programas de uso desses galpões foram se modificando ao longo do tempo devido a alterações tecnológicas, como o encerramento do uso de bondes elétricos em São Paulo na década de 1960. As características construtivas dos edifícios maiores – grandes áreas internas livres, modulação, flexibilidade – certamente possibilitaram as adaptações necessárias a novos programas de trabalho, tanto industrial como administrativo, preservando-se as antigas construções (2).

Exemplo relevante desse potencial de adaptação e permanência foi a instalação, por vários anos, do setor criado pela própria Eletropaulo para cuidar de seu patrimônio – hist.órico, arquitetônico e documental – em um desses galpões, que abrigava as atividades museológicas, arquivísticas, de pesquisa e administração desse setor institucional, inicialmente denominado de Departamento do Patrimônio Histórico.

Reconhecimento do valor cultural das Oficinas do Cambuci

O reconhecimento do valor arquitetônico e urbanístico, mas principalmente histórico e social, das estruturas vinculadas ao chamado patrimônio industrial – fábricas, estações ferroviárias, vilas, usinas, etc. – ampliou-se nas últimas décadas, com a identificação e proteção legal, pelas instituições públicas, de diversos bens materiais classificados nessas categorias.

Alguns exemplos pioneiros e relevantes foram os tombamentos, pelos órgãos estadual e municipal de preservação do patrimônio cultural em São Paulo – Condephaat e Conpresp –, de vários bens do sistema ferroviário paulista (Estações da Luz, do Brás, Júlio Prestes, entre outras, nas décadas de 1970-1980); do ramal da Ferrovia Perus-Pirapora e da antiga Fábrica de Cimento Portland Perus (1992); dos remanescentes da Fábrica e da Vila Maria Zélia (1992); bem como do conjunto de galpões industriais da Rua Borges de Figueiredo, na Mooca (2007); e de elementos integrantes da Cia. Nitroquímica, em São Miguel (2012).

Nesta direção, deve ser destacada a iniciativa pioneira da Eletropaulo, ainda como empresa estatal, no início dos anos 1980, de constituir um Departamento de Patrimônio Histórico, acima referido, responsável pela identificação, conservação e difusão do extenso, diversificado e precioso patrimônio documental, arquitetônico, tecnológico e social, herdado da antiga Light. No mesmo período, em 1984, a antiga sede da empresa, o emblemático Prédio Alexandre Mackenzie, marco arquitetônico situado no Vale do Anhangabaú, no centro paulistano, foi tombado pelo Condephaat.

Entre as ações de preservação empreendidas pela empresa destaque-se a edição de uma série de boletins, revistas e publicações que divulgavam não só os documentos históricos relativos à Eletropaulo (como a excepcional coleção de imagens fotográficas com registros urbanos produzidos pela Light), mas, também, reportagens e ensaios relativos às questões históricas, urbanísticas e culturais de São Paulo. Merece referência, também, a organização do 1º Seminário Nacional de História e Energia, realizado em São Paulo em outubro de 1986, cujos Anais, em dois volumes, foram publicados pela Eletropaulo em 1988.

Esse Departamento, associado aos setores similares que foram criados em outras empresas (Cesp, Comgás etc.), deu origem, em 1998, à atual Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento, responsável, ainda, pela continuidade de muitas dessas ações.

Sobre as Oficinas do Cambuci pelo menos três artigos foram divulgados nas publicações editadas pela Eletropaulo, na década de 1980, enfatizando seu interesse patrimonial no sentido abrangente desse conceito, que envolve a memória e sua apropriação pelos que lá trabalharam (3).

De outra parte, esse conjunto foi objeto de algumas ações de identificação patrimonial desenvolvidas por instituições públicas de preservação ou em pesquisas acadêmicas.

O primeiro inventário de patrimônio ambiental urbano no bairro da Liberdade, desenvolvido pelo Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), da Prefeitura de São Paulo – órgão técnico que atualmente também subsidia as decisões do Conpresp –, na década de 1980, seguindo o modelo metodológico que foi denominado de Igepac (Inventário Geral do Patrimônio Ambiental e Cultural da Cidade de São Paulo), incluía em seu território o eixo da Rua Lavapés. Neste se indicavam como área de possível interesse as Oficinas do Cambuci, bem como um conjunto de edificações assobradadas, que marcam enfaticamente o desenho desse trecho da via.

O DPH retomou, em 2013, para complementação e atualização, atendendo à solicitação de apoio técnico formulada pela empresa municipal São Paulo-Urbanismo, a análise de uma extensa área, compreendendo a gleba das Oficinas do Cambuci, correspondente ao perímetro da atual Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí (OUCBT) – inicialmente denominada Operação Urbana Consorciada Mooca-Vila Carioca (OUCMVC), que teve como origem os estudos da Operação Urbana Diagonal Sul.

A própria São Paulo-Urbanismo, responsável pelo desenvolvimento dos planos e projetos para essa Operação Urbana, realizara, em 2012, estudos preliminares sobre a questão do patrimônio industrial dessa região e, no caso da área da Eletropaulo, já identificara seu potencial valor como patrimônio cultural e possível área de interesse público.

Contudo, mesmo que preliminares, esses estudos indicativos dos valores culturais e sociais relativos às Oficinas do Cambuci, e sua possível inserção como um sítio de interesse para preservação do patrimônio industrial paulistano, não resultaram no reconhecimento do conjunto visando sua preservação efetiva.

Venda e demolição das Oficinas do Cambuci pela AES Eletropaulo

A AES Eletropaulo, proprietária até 2012 da gleba onde funcionavam as Oficinas, foi progressivamente desativando o uso das antigas instalações – inclusive os galpões que abrigavam áreas da Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento, transferidas para outros locais.

Em 28 de dezembro de 2012, a empresa emitiu comunicado público de fato relevante, informando que, naquela data, tinha sido celebrado Instrumento de Compromisso de Venda e Compra do imóvel do Cambuci com a empresa GTIS Cambuci Empreendimentos e Participações Ltda., no valor de 160 milhões de reais.

A AES Eletropaulo formalizou consulta ao Conpresp, em abril de 2013, sobre a possível existência de proteção legal para o imóvel, sendo informada que inexistia legislação protetiva, e, portanto, não se fazia necessária a apreciação e aprovação por parte daquele conselho para intervenções no imóvel.

Em agosto de 2014, os serviços de demolição estavam em andamento, e em outubro nenhuma construção restava de pé. A AES Eletropaulo se comprometera a entregar ao novo proprietário o terreno limpo, desocupado e descontaminado. Pronto para novos empreendimentos imobiliários. No mesmo período, o site da GTIS divulgou matéria com imagem de projeto preliminar de ocupação da área, em que se informava a previsão de vários edifícios de moradias a preços acessíveis e de mercado, e um grande centro comercial, inseridos em um bairro de classe média, com boa infraestrutura, conforto e acesso aos centros de emprego via transporte de massa (4).

Esse empreendimento integra a Meta 35 do Programa de Metas da atual administração municipal (2013-2016), que se refere à produção de 55 mil unidades habitacionais.

Após a efetivação da venda de toda a área, a nova proprietária alterou, em 2015, sua razão comercial para Pateo do Cambuci Incorporações.

Demolição em andamento em 16 set. 2014, mostrando vários galpões totalmente demolidos, restando, ainda, um núcleo de construções importantes, algumas anteriores a 1920 [Acervo dos autores]

Preservação e planejamento urbano: uma oportunidade

Há pelo menos quatro décadas defende-se a ideia de que as ações de preservação do patrimônio e as de planejamento urbano devem caminhar juntas, reconhecendo-se que a proteção de conjuntos urbanos exige instrumentos urbanísticos e de gestão muito mais complexos do que aqueles propostos na legislação de preservação do patrimônio cultural. Também se considera que esta seria uma prática fundamental para o desenvolvimento urbano, em que a conjugação de permanências e transformações nos projetos urbanos poderia vir a ser um fator importante de requalificação de dinâmicas locais, podendo até gerar impactos mais amplos. Contudo, o que se verifica é uma grande distância entre o discurso e a realidade.

A existência, até bem pouco tempo, do conjunto das Oficinas do Cambuci configurava justamente uma rara oportunidade na cidade de São Paulo de se aliar políticas de preservação e de planejamento e desenvolvimento urbano. Tanto pelo reconhecimento do seu valor histórico e cultural – embora ainda não tivesse sido protegido “oficialmente” por tombamento ou outra medida legal –, quanto por sua dimensão e inclusão inicial em um plano que se pretende como importante vetor de desenvolvimento urbano da metrópole paulistana: a Operação Urbana Bairros do Tamanduateí.

Os estudos dessa Operação Urbana propunham, para essa gleba, sua transformação em parque e área de uso público, com preservação parcial dos bens históricos, conforme está registrado no Relatório de Impacto Ambiental da então denominada OUCMVC, em sua Ação Integrada 11:

“A11. Implantação de Parque de lazer e cultura na gleba da Eletropaulo em área hoje contaminada, aproveitando as edificações indicadas como de prospecção de interesse de preservação, designando equipamentos de lazer, cultura e esporte no Parque – setor Cambuci” (5).

Proposta para a gleba da Eletropaulo (A11). OUCMVC, Mapa das Ações Integradas [EIA-Rima OUCMVC, 2013]

Essa proposta estava em absoluta consonância com a situação diagnosticada nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA), que subsidiam o RIMA. Esse, a partir da constatação de que essa área se insere no cadastro de áreas contaminadas, não recomenda o uso habitacional, mas considera adequada, com medidas de remediação, sua adaptação para a criação de parque e equipamento público (6).

Com efeito, a gleba da Eletropaulo consta no EIA (7) como área contaminada no Cadastro Cetesb, sendo o subsolo e águas subterrâneas apontados como os meios impactados, por contaminantes como metais e solventes, entre outros, indicando as seguintes medidas de remediação: bombeamento, tratamento e cobertura de resíduo/solo contaminado.

Além disso, essa área está mapeada no referido documento como área passível de desapropriação (8) para implantação do Parque Eletropaulo, integrando o conjunto de áreas verdes proposto pelo Plano Urbanístico da referida Operação:

“Tomando como exemplo os casos em que a implantação de áreas verdes e espaços públicos surgem da oportunidade de descontaminação de áreas, podemos citar o Parque Eletropaulo – CP 01, com aproveitamento das edificações relevantes da atual gleba, remediação do solo contaminado para sua utilização prioritária de atividades de lazer e esporte ao ar livre e criação de grandes áreas permeáveis e arborizadas, contribuindo para a melhoria de qualidade ambiental do bairro” (9).

Ressalte-se que no zoneamento então vigente na cidade de São Paulo (Lei nº 13.885/2004) – assim como no atual (Lei nº 16.402/2016) –, a gleba da Eletropaulo localiza-se em área classificada como ZEIS 3 (Zona Especial de Interesse Social). Definidas no Plano Diretor de 2002, são zonas destinadas a promover e ampliar o uso de Habitação de Interesse Social ou de mercado popular.

Mesmo assim, a partir de outra leitura das dinâmicas que envolvem a região (contaminação, patrimônio industrial, carência de áreas verdes e de equipamentos), o próprio poder público municipal considerou, nos estudos da agora denominada Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí, que o mais adequado para aquela gleba seria a implantação de parque, com usos de lazer e cultura, preservando parte das antigas Oficinas do Cambuci. Por essa razão, a área da Eletropaulo não consta do mapeamento das Habitações de Interesse Social integrantes tanto do EIA quanto do RIMA (10), em que se indicam os terrenos situados em ZEIS-3, no perímetro dessa Operação.

Contudo, mesmo com o diagnóstico e proposição de uso e preservação parcial previstos pela Operação Urbana, além do interesse de preservação identificado pelo DPH, acima mencionado, o fato é que, sem alguma proteção legal efetiva, o imóvel não pôde ser salvo da demolição total.

A perda de uma oportunidade: discursos em busca de práticas efetivas

Parece que o desafio com o qual técnicos, especialistas e gestores das áreas de preservação e de planejamento se deparam atualmente não é o de identificar o que deve ser feito, no que se refere a uma atuação conjunta, mas sim o de como enfrentar as dificuldades de se colocar na prática os enunciados desse discurso que se pretende integrador. Os problemas têm sido muitos, tanto sob a perspectiva da legislação e da gestão, quanto no que se refere ao desenvolvimento de projetos urbanos em áreas centrais ou em tecidos de ocupação mais antiga.

O que chama a atenção no caso das Oficinas do Cambuci não foi a falta de reconhecimento do seu valor, registrado tanto nas pesquisas realizads pelo DPH, quanto nos estudos da Operação Urbana Bairros do Tamanduateí.

O problema parece estar na dificuldade em se estabelecer uma estratégia de ação conjunta, ágil, depois da fase de identificação. Tanto os estudos do DPH não se traduziram em um processo de tombamento que garantisse a proteção das Oficinas, quanto o projeto urbanístico da referida Operação, que previa uma ação importante naquela área, não viabilizou a tempo a sua transformação em espaço de uso público nos moldes inicialmente propostos.

Agora, a situação real – terreno vazio com previsão de implantação de prédios habitacionais – é totalmente distinta daquela prevista no próprio EIA-RIMA. Foi concedida, em julho de 2015, a Licença Ambiental Prévia pela Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente para a OUCBT e está em discussão na Câmara Municial de São Paulo o Projeto de Lei do Executivo (PL nº 723/2015) que “estabelece objetivos, diretrizes, estratégias e mecanismos para a implantação da Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí, define Projeto de Intervenção Urbana para a área da Operação Urbana e autoriza a criação da empresa Bairros do Tamanduateí S/A”.  Na minuta do referido PL, a chamada gleba Eletropaulo do EIA-RIMA tinha sido substituída pela denominação de “antiga gleba Lavapés” (11), cuja indicação já não aparece no Plano Urbanístico Específico (PUE) do Projeto de Lei agora em discussão. Grande parte desta área está indicada, no PUE, como Habitação de Interesse Social, com a criação, em parte, de área verde (Parque Lavapés) e sistema viário.

Proposta para a denominada “antiga gleba Lavapés” (A11) [Minuta do Projeto de Lei da OUCBT]

Ressalte-se que um avanço significativo dessa Operação Urbana é a proposta referente à dotação de 4% dos recursos captados para a preservação do patrimônio histórico, ambiental e cultural. Incentivo, este, que já não poderá beneficiar o conjunto da Eletropaulo.

Infelizmente, tanto os tempos de maturação de uma Operação Urbana, quanto os de proteção de bens culturais têm sido muito longos, distintos dos ritmos mais rápidos envolvidos na dinâmica de produção da cidade.

Uma ação importante para garantir a viabilização das propostas contempladas em um plano da escala de uma Operação Urbana é o contato e negociação – no sentido de estabelecer tratativas, ajustes, acordos – com os proprietários dos imóveis e outros envolvidos. Essa ação deveria ser considerada como etapa preliminar, sobretudo quando o projeto prevê intervenções importantes em grandes terrenos de propriedade privada. Tal medida se anteciparia a possíveis alterações da situação detectada na fase de diagnóstico, evitando, assim, que pudessem contrariar os objetivos propostos pelo projeto (no caso, a criação de parque prevista originalmente no EIA-RIMA). Ou poderia resultar na constituição de parceria público-privada com o objetivo de implantar um conjunto de habitações de interesse social e de mercado, integrado a um parque, com a manutenção parcial do patrimônio ali existente.

Por outro lado, no âmbito dos órgãos de proteção, a inventariação contínua e sistemática dos bens de valor cultural da cidade – cuja dificuldade é conhecida – poderia ser um poderoso instrumento de orientação prévia das ações de preservação. Sem este inventario, a atuação do órgão acaba por atender, principalmente, às demandas cotidianas ou outras que vão se colocando como prementes diante das solicitações diárias. O recente reconhecimento do inventário, junto ao tombamento, como instrumento de identificação, proteção e valorização do patrimônio cultural paulistano no atual Plano Diretor da cidade (12), pode vir a ser uma oportunidade interessante para a alteração deste panorama.

Se for confirmada a destinação da área para o empreendimento proposto por sua atual proprietária perdeu-se uma oportunidade muito instigante para desenvolvimento de projeto urbanístico que conciliasse as muitas e diversas necessidades desse setor urbano: habitação de interesse social, áreas verdes, comércio e serviços, e, por último, mas não menos importante, a preservação e valorização de referenciais histórico-arquitetônicos do bairro do Cambuci. Conciliação de usos e espaços plenamente convergente, prevista, e almejada, inclusive, no referido Plano Diretor recentemente aprovado.

Trata-se de uma situação em que, mais uma vez, a visão planejadora e a ação efetiva do poder público teria sido essencial, pois, apesar da vasta dimensão do terreno, da diversidade do programa de usos (residencial, comercial e serviços de apoio) e da desejável (para a cidade) integração com o tecido urbano do seu entorno, não houve por parte dos proprietários interesse ou sensibilidade para um possível reaproveitamento das edificações do conjunto original, que seriam perfeitamente adaptáveis a algumas dessas novas funções. Desinteresse e insensibilidade evidentes, pois uma das condições para a efetiva transação da venda do terreno foi a entrega, pela AES-Eletropaulo, do terreno totalmente vazio ao seu novo proprietário.

Em outubro de 2014, milhares de metros quadrados de construções desse significativo patrimônio da história da indústria em São Paulo estavam completamente destruídos.

Vista aérea mostrando a gleba da GTIS Patéo do Cambuci totalmente vazia [Captura de tela Google Earth]

notas

NA – Este texto é uma versão atualizada e modificada de trabalho publicado em Anais Eletrônicos, como: TOURINHO, A. de O.; PIRES, W. “Como anda a temperatura no Cambuci ?”: Patrimônio industrial e dinâmicas urbanas na demolição das Oficinas da Eletropaulo no bairro do Cambuci em São Paulo. In: Fórum Mestres e Conselheiros: Agentes Multiplicadores do Patrimônio, 7., 2015, Belo Horizonte. Anais eletrônicos... Belo Horizonte: IEDS; MACPS; Ministério Público Estadual; IPHAN; IEPHA; Centro Universitário Izabela Hendrix, 2015. Disponível em: <http://www.forumpatrimoniomestres.com/>. Acesso em: 10 set. 2015.

1
Para imagens históricas das Oficinas do Cambuci, consultar o site da Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento, que apresenta um rico e instigante Banco de Imagens com muitas fotografias do conjunto: seu entorno, sua construção, vistas externas, imagens internas dos galpões, bem como cenas de trabalho. Disponível em: <http://acervo.energiaesaneamento.org.br/consulta/Galeria.aspx?id=3>. Acesso em: 10 set. 2015.

2
Para um estudo detalhado da expansão e das alterações do programa de uso dos galpões que integravam as Oficinas do Cambuci, consultar: INVAMOTO, Denise. Territórios do carnaval paulista: proposta para a Escola de Samba do Lavapés. Trabalho Final de Graduação. São Paulo, FAU-USP, 2005; LIMA, Verônica Calsoni. Inventário de Identificação: Oficinas Gerais da Light no Cambuci. Trabalho apresentado para o Curso de História. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo, Unifesp, 2011.

3
FERRAZ, Vera Maria de Barros. Oficinas Gerais do Cambuci. Memória Eletropaulo. São Paulo, Eletropaulo, n. 24, p. 30-34, jul 1996/jun 1997; KÜHL, Júlio César Assis. Oficinas Gerais da Light no Cambuci – 1895-1953. Revista Memória e Energia. São Paulo, FPHESP, n. 25, p. 30-40, 1998; SILVEIRA, Milena de Castro. As oficinas do Cambuci. Memória. São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico da Eletropaulo, ano II, n. 2, p. 40-45, jan/fev/mar 1989.

4
Esta informação encontrava-se no site da empresa GTIS Partners, que não está mais acessível. Consultado em <https://www.gtispartners.com/brazil>. Acesso em: 05 dez. 2014.

5
RIMA, 2013, p. 12; SÃO PAULO (Cidade). OUCMVC. RIMA – Relatório de Impacto Ambiental. Disponível em <http://issuu.com/svmasp/docs/rima_operacaoconsorciada_mooca-vila>. Acesso em: 10 set 2015.

6
EIA, 2013, p. 38; SÃO PAULO (Cidade). OUCMVC. EIA – Estudo de Impacto Ambiental. Disponível em: <www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/meio_ambiente/arquivos/eia_rima_eva/eia_oucmvc.pdf>. Acesso em: 10 set 2015.

7
EIA, 2013, p. 193.

8
EIA, 2013, p. 724.

9
EIA, 2013, p. 95.

10
EIA, 2013, p. 101; e RIMA, 2013, p. 21.

11
SÃO PAULO (Cidade). Minuta do Projeto de Lei da OUCBT, ago. 2015. Disponível em: <http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/operacao-urbana-consorciada-bairros-do-tamanduatei-oucbt/>. Acesso em: 10 set 2015.

12
PDE, 2014, Art. 172

sobre os autores

Andréa de Oliveira Tourinho é arquiteta, com doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e mestrado pela Universidad Autónoma de Madri. Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu e do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. Trabalhou em órgãos públicos de preservação do patrimônio e de planejamento urbano da cidade de São Paulo.

Walter Pires é arquiteto, com mestrado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Foi diretor do Departamento do Patrimônio Histórico, da Prefeitura de São Paulo, e vice-presidente do Conpresp entre 2006 e 2013. Atualmente é conselheiro do Condephaat.

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193.00 patrimônio
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193

193.01 história da arte

Hélio Oiticica no MoMA de Nova York

Amanda Saba Ruggiero

193.02 teoria

A presença da ausência do "Jardim dos passos perdidos"

Uma análise interlocutora entre o discurso e a prática

Manuella Marianna Andrade

193.03 projeto

Auto Posto Clube dos 500

excepcionalidade de uma linguagem Niemeyeriana no pré-Brasília

Rolando Piccolo Figueiredo

193.04 urbanismo

A cidade dos centros excêntricos

Lineu Castello

193.05 cultura

"A origem do mundo" e o “Foda-se o conceito"

A história viva nas (i)maculadas paredes de Jorge Moreira

Luiz Felipe da Cunha e Silva

193.06 urbanismo

Ecorregiões e gestão do planejamento urbano-regional

Desafios da aplicação da técnica de ponderação na região metropolitana de Medellín

Eunice Abascal and Carlos Abascal Bilbao

193.07 restauro

O projeto do Hospital de Retaguarda e Reabilitação Física do Complexo Hospitalar do Juquery

Pier Paolo Pizzolato

193.08 patrimônio

Se o nosso Land Rover falasse

Os primeiros automóveis que trabalharam na preservação do patrimônio em São Paulo

Mauro Bondi

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