Em algum lugar, em um dos imóveis administrados pela Superintendência de São Paulo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, existe um antigo jipe Land Rover aposentado depois de prestar excelentes serviços à repartição. Esquecido, seu estado atual de conservação é muito ruim, principalmente a parte mecânica: a carroceria é de alumínio e, portanto, imune a processos corrosivos de ferrugem.
Desenhado pelos irmãos Spencer e Maurice Wilks, Land Rover Series surgiu em 1947 como um veículo rural da Rover Company (ou seja, o “Land” fazia parte do nome do modelo, não da marca); a produção começou no ano seguinte e a primeira unidade foi vendida durante o Salão de Amsterdã, pela bagatela de 450 libras (R$ 2.500). Montado praticamente sobre a mesma base de 1948 a 2016, o utilitário mudou algumas vezes de nome: já se chamou Série I (1948 a 58), Série II (58 a 71), Série III (71 a 85), Land Rover 90, 110 e 127 (1983 a 1990) e, enfim, Defender (1990 a 2016); durante este período foram produzidas e vendidas mais de 2 milhões de unidades.
Oferecido em configurações wagon e picape, sempre com 2 metros entre eixos, motor 1.6 de 50 cv à gasolina, transmissão manual de quatro marchas e tração 4x4, o modelo logo ficou conhecido por sua valentia e passou a ser o xodó de expedicionistas. Após 68 anos de história, Land Rover produziu a última unidade do clássico utilitário Defender na fábrica de Solihull no dia 29 de janeiro deste ano. Para acabar com o abandono dos Defenders, a fábrica de Solihull (Reino Unido) destinou um espaço próprio e 12 funcionários só para a restaurar os veículos Land Rover (1).
No Iphan/SP era corrente a versão de que o nosso Land Rover – que conheci quando já estava aposentado –, fazia parte de um lote desses veículos doados ao Brasil pelo Reino Unido como agradecimento pela participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra, junto aos exércitos Aliados. A coordenação do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, responsável pelo patrimônio nacional da Região Sul, recebeu um desses jipes em 1952, para uso exclusivamente em serviço. As características do veiculo – Land Rover Série I – aparecem em correspondência de outubro de 1972, do chefe do 4º Distrito do Sphan, Luís Saia, ao diretor do Detran-SP, solicitando certificado de propriedade e renovação de licença de 1971/1972.
Como o 4º Distrito do Iphan em São Paulo, não dispunha de motorista, o jipe era dirigido por um dos servidores habilitados da casa: o chefe engenheiro arquiteto Luis Saia, o fotógrafo Herman Hugo Graeser (Germano) ou o arquiteto Armando Rebolo.
A decisão de resgatar a história do nosso velho jipe aposentado justifica-se pelo fato de que ele, além de bem executar seu serviço, ter extrapolado suas “funções oficiais”, aquelas esperadas de um veículo pertencente a uma repartição pública federal responsável pela preservação de bens culturais.
Engatando a primeira 1ª marcha
Há oitenta anos, quando o Sphan iniciou suas atividades, o escritor Mario de Andrade era responsável pela 6° Região Administrativa do órgão com sede em São Paulo, acumulando os cargos de diretor do Departamento de Cultura da prefeitura de São Paulo. Depois de elaborar o anteprojeto para a criação do Serviço, Mario de Andrade, já nomeado assistente técnico, passa a viajar pelo Estado de São Paulo para elaborar pesquisas “a respeito de monumentos arquitetônicos de valor histórico ou artístico dignos de tombamento federal” (2), do patrimônio histórico e artístico brasileiro a proteger. Tinha conhecimento que para fazer os primeiros inventários, precisaria de uma pequena equipe (arquiteto, fotógrafo e historiador) assim como de um automóvel para garantir a mobilidade nos deslocamentos por estradas ainda bem precárias. O serviço ferroviário era mais eficiente naquela época, mas Mario de Andrade sabia que ele não atendia aos objetivos e não era bom para o serviço que tinham que fazer. Em carta de 5 de maio de 1937, a Rodrigo de Melo Franco de Andrade, escreveu:
“quando foi do seu telefonema, chamei imediatamente os dois principais colaboradores, que vou pagar com os meus cobres, o Nuto Sant’Ana historiador e o Luiz Saia engenheirando dedicado e apaixonado de coisas históricas e coloniais. Chamei também um fotografo pra ver se podia nos acompanhar nas viagens imprescindíveis. E estudamos o complexo problema das viagens. Dividimos o Estado em zonas vastas e principais, o Vale do Paraíba, o caminho do Tietê, litoral sul, litoral norte, S. Paulo e arredores. Como viajar? Ficou resolvido que de trem é perder tempo imenso e fugir de coisas importantes. É principalmente nos vilejos (sic) e no meio dos caminhos que a gente encontra em S. Paulo coisas valiosas sob dois pontos de vista que mais nos interessam, história e arte. A viagem, onde o automóvel alcança tem de ser feita de automóvel que matará num dia várias cidades e vilas” (3).
O nascente Serviço do Patrimônio funcionava precariamente e quase sem recursos, não dispondo de veículos para os serviços gerais e nem para que Mario de Andrade pudesse cumprir com sua primeira função no Sphan de São Paulo, “recensear e depois tombar” o patrimônio histórico e artístico do Estado. A solução foi conseguir o empréstimo de automóveis da prefeitura de São Paulo, assim com dos “amigos endinheirados” e de empresas, empréstimos facilitados pelo fato de Mario Andrade ocupar a diretoria do Departamento de Cultura municipal. Em carta de 12 de junho de 1937 a Rodrigo M. F. de Andrade, Mario de Andrade escreve:
“hoje segunda viagem de reconhecimento que faço, paguei 21$000 por 15 litros de gasolina, não pagando o automóvel que a prefeitura cedeu grátis. Como devo prestar contas desses 21$000? Todo e qualquer recibo tem de ser apresentado em três vias, todas três seladas? As notas, como a citada de gasolina, podem ser apenas escritas por mim e apresentadas nominalmente à pessoa que assinar o recibo da verba aí mandada? Também em três vias?” (4)
E em 11 de novembro do mesmo ano, acrescenta:
“Na sexta de manhã partimos já atrasados em busca da Bertioga. O automóvel cedido gentilmente para essas pesquisas do Paulo (5), pela Ford demorou, o meu, cedido pela Prefeitura estava na hora certa, mas partimos só depois do almoço. [...] chegamos na Bertioga quase tempestade e isso às 19 horas. Não pretendíamos ficar lá, mas no Indaiá, 14 km de praia, mas com o mau tempo, e mesmo sem ele era impossível ir. O transporte único do local são dois caminhões. Um estava escangalhado e o outro estava no Indaiá, 14 quilômetros, e lá pernoitaria esperando os lances de rede da manhã seguinte” (6).
Como é possível constatar, a denominação de “fase heroica”, atribuída ao período inicial de trabalho do Sphan, não é gratuita ou ufanista. Enfrentando dificuldades de toda ordem, em menos de um ano de atividades esta pequena equipe, sob a batuta do Mário de Andrade, realizou uma série de viagens por estradas difíceis, quase intransitáveis, contando apenas com veículos emprestados, para no final conseguir enviar para a diretoria do Sphan no Rio de Janeiro o “1° Relatório de Trabalho da Sexta Região do Sphan” (7), documento onde foram apresentadas sugestões para tombamento de mais de 40 bens considerando valores históricos e artísticos, resultado de pesquisas documentais preliminares, mas principalmente de trabalho de campo, das descobertas feitas durante as viagens.
Engatando a 2ª marcha
Em julho de 1938, Luís Saia, que neste mesmo ano sucedera Mario de Andrade como Assistente Técnico do Sphan, escreve: “S. Paulo-VII-1939. Caro Mario. Abraço. [...] agora que as constantes viagens me obrigam comprar um fordeco (nome Galatea). Falando na Galatea me lembrei da caetana (o relógio) que morreu” (8).
No Caderno de obras da Capela de São Miguel, aparece em uma fotografia datada de 14 de dezembro de 1939, um segundo automóvel mais moderno do que o Fordeco Galatea, provavelmente um outro veiculo de marca Ford ou Chevrolet, também muito provavelmente emprestado ou pela municipalidade paulistana ou até mesmo por algum “amigo endinheirado” do patrimônio. Não foram encontrados documentos ou anotações sobre este veículo, na fotografia posicionado bem em frente à capela de São Miguel em obras.
Interessante observar com que frequência os automóveis “em serviço” aparecem nas fotografias de registro do trabalho, fotos que depois iriam compor relatórios e Cadernos de Obras das intervenções de restauro; hoje, ao contrário, durante os trabalhos de vistoria técnica da Regional do Iphan, a preocupação é afastar os veículos do campo da foto, para que não interfiram no registro.
Incluir os automóveis nas fotografias de trabalho, registros das obras de restauração do Iphan, talvez fosse uma maneira de provar aos generosos parceiros que providenciavam empréstimos e doações de veículos, que estes de fato estavam em serviço. Mas não deixa de ser interessante notar a similaridade destas fotografias com aquelas de registro da arquitetura moderna durante os anos 1930/1940, em que automóveis em primeiro plano situavam as obras num contexto de funcionalismo, velocidade, industrialização e da estética de um mundo novo para o qual se propunha uma nova arquitetura. Le Corbusier gostava de se fazer fotografar com seu carro na frente das suas realizações posicionando as “máquinas de rodar” diante das “máquinas de morar” (9).
Engatando a 3ª marcha
Nenhuma documentação foi encontrada sobre esse automóvel que substituiu o Galatea em serviço, a não ser algumas imagens no caderno de obras do Sítio Santo Antônio e algumas informações a partir do depoimento do colega José Saia Neto, que informou se tratar de veículo “muito complicado”, que incendiava com frequência e a cada vez era necessário desmontá-lo inteiro para se proceder aos reparos necessários. O primeiro veículo “Chapa Branca” do Patrimônio em São Paulo, conforme o depoimento, foi doado para a Escola Técnica Federal de São Paulo, atual Instituto Federal de São Paulo, para ser desmontado e montado no curso para mecânicos.
Engatando a 4ª marcha
O Land Rover do Iphan de São Paulo teria sido recebido como doação, parte do lote mencionado acima, doado em 1952 ao Brasil pelo Reino Unido como agradecimento pela participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra, junto aos exércitos aliados. Não foi encontrada nos arquivos do Iphan nenhuma documentação que confirmasse esses fatos, que são de domínio comum entre os técnicos.
Esse jipe teria operado durante as décadas de 1950/1960 e até meados da década de 1970. Foi muito útil no transporte dos operários das obras e no transporte de material, em um período em que Iphan em São Paulo mantinha vários canteiros de obra em andamento. Mas, apesar de ter sido doado para “uso exclusivo em serviço”, o hoje já lendário Land Rover do Iphan/SP participou de importantes missões clandestinas durante a ditadura militar. Durante este período, o arquiteto Luís Saia, chefe do Serviço em São Paulo, organizou algumas viagens ao Paraguai com o objetivo principal de estudar as Missões Jesuíticas naquele país; na época, o Iphan com sede em São Paulo era responsável pelo patrimônio nacional de toda a Região Sul, incluindo território das Missões Jesuíticas dos Guaranis, o Sítio Histórico São Miguel Arcanjo no Rio Grande do Sul. Dessas viagens participava o biólogo e compositor Paulo Vanzolini (10), que estaria encarregado de estudar os calangos da região e aproveitava para fazer a coleta e de músicas e toadas do cancioneiro popular (11). O arquiteto carioca Renato Soeiro, que entre os anos 1967 a 1979 esteve à frente do Iphan, estava a par dessas viagens, confirmando que elas ocorriam com o consentimento da direção do órgão. Soeiro foi ofuscado na história oficial do Iphan pelas luzes lançadas sobre seu antecessor Rodrigo de Mello Franco e seu sucessor Aloísio Magalhães. Discreto e silencioso, Soeiro teve um papel vital na nossa história recente (12).
É importante assinalar o consentimento da Direção do Iphan nestas viagens técnicas porque o verdadeiro objetivo dos deslocamentos era levar perseguidos políticos ameaçados pela ditadura militar clandestinamente para o exilio. Acomodados na parte traseira, e cobertos pela lona do jipe, eles atravessavam a fronteira sem problemas, constando como carga e bagagem de funcionários do governo federal; os policiais de fronteira não ousavam fazer revista em um veículo oficial em Missão Oficial. Sobre o episódio, José Saia Neto, filho de Luís Saia, confirma: “sobre esta história do Paulo Vanzolini, só sei que havia um grupo (Prof. Eurípides, Paulo Vanzolini, Aziz Ab-Saber, Luis Saia e Renato Soeiro) que salvaram a pele de muita gente, tirando ou trazendo para o Brasil perseguidos. O velho não era de entrar em detalhe sobre as estratégias utilizadas” (13).
Ponto Morto – parada obrigatória
Único sobrevivente e último veículo da fase heroica do Iphan em São Paulo, o bravo Land Rover terminou seus dias aposentado no interior, estacionado em um dos mais significativos bens tombados pelo Iphan em São Paulo. Seu britânico carburador deu o último suspiro durante a restauração da Fazenda Pau d’Alho na década de 1970 e desde então lá permaneceu bem guardado pelos majestosos muros da fazenda, na esperança de que possa ser tomada alguma providência para sua recuperação. O fato de ter sido, ele próprio, condenado à clandestinidade e considerado como sucata, fez com que sobrevivesse até mesmo ao desmonte institucional e ao leilão de veículos públicos promovido durante a governo Collor, quando todos os carros do Iphan foram alienados e vendidos.
Se resolvemos contar esta longa história, que recupera aspectos importantes do trabalho do Iphan nem sempre do interesse dos pesquisadores, é porque ela explica o nosso especial apreço, dos servidores mais antigos, por este veículo de coleção. E porque acreditamos que assim estaremos justificando a recuperação do nosso velho e heroico Land Rover como bem cultural, parte importante da memória da Iphan em São Paulo.
notas
NA – A pesquisa para esse artigo contou com a inestimável colaboração dos arquitetos Cecília Rodrigues dos Santos, Victor Hugo Mori e Tânia Miotto, e do historiador Rafael Araújo de Oliveira.
1
UOL. Defender morre após 68 anos como ícone 4x4; relembre história. São Paulo, Uol, 29 jan. 2016 <http://carros.uol.com.br/noticias/redacao/2016/01/29/land-rover-defender-morre-apos-68-anos-como-icone-4x4-relembre-historia.htm#fotoNav=5>. Acesso em 28 jun 2016.
2
ANDRADE, Mário de. Mario de Andrade: cartas de trabalho. Brasília, MEC/Secretaria do Patrimônio Histórioco e Artistico Nacional/Fundação Nacional Pró-Memória, 1981, p. 80.
3
Idem, ibidem, p. 67. Destaque nosso.
4
Idem, ibidem, p. 70 e 71.
5
Refere-se a Paulo Duarte, fazendo pesquisas análogas para o Departamento de Cultura do Município de São Paulo.
6
ANDRADE, Mário de (op. cit.), p. 110.
7
“Exmo. Sr. Dr. Rodrigo M. F. de Andrade, Diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Como Assistente Técnico do Sphan para esta Sexta Região, venho apresentar para V. Exª. O relatório das primeiras pesquisas, realizadas no Estado de S. Paulo, a respeito de monumentos arquitetônicos de valor histórico ou artístico, dignos a meu ver, de tombamento federal Para este relatório, ou milhor (sic), para o Serviço, já foram realizadas viagens para São Roque, Cotia, Itaquaquecetuba, Mboy, Vuturuna, Santo Amaro, São Miguel, Itu, Porto Feliz, Sorocaba, São Luiz do Paraitinga, Ubatuba, Parnaíba, Pirapora, Barueri, Cabriúva, Atibaia, Perdões e Biacica”. (16 de outubro de 1937), In: ANDRADE, Mário de (op. cit.), p. 79-106.
8
Carta da Correspondência particular entre Luiz Saia (em São Paulo) e Mario de Andrade (no Rio de Janeiro) cujo original me foi gentilmente cedido para consulta para este artigo pelo colega de Iphan, José Saia Neto.
9
Ver: CYCLE SPACE. An invitation to further your architectural education and save the world. Cycle Space International Pty. Ltd., 13 dez. 2012 <http://cycle-space.com/an-invitation-to-further-your-architectural-education-and-save-the-world/>.
10
Cf. depoimento de Paulo Vanzolini no filme “Um homem de moral”, direção de Ricardo Dias, 2009 <https://filmow.com/um-homem-de-moral-t32321/>.
11
Paulo Vanzolini conta no filme a origem da música “Cuitelinho”, coletada nas barrancas do rio Paraná.
12
Ver: ORMINDO, Paulo. Homenagem do Conselho Consultivo do Iphan a Renato Soeiro. Rio de Janeiro, Iphan, 11 ago. 2005 <http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/Homenagem_a_Renato_Soeiro.pdf>.
13
José Saia Neto, depoimento ao autor.
sobre o autor
Mauro Bondi é arquiteto do Iphan-SP.