A arquitetura brasileira perdeu um dos seus maestros. O modernismo no Rio Grande do Sul um dos seus principais protagonistas. Cláudio Luís Gomes de Araújo (1931-2016) nasceu em Pelotas RS, filho de Luís Teixeira de Araújo, natural da mesma cidade, e Antonina Gomes de Araújo, natural de Santana do Livramento-RS. Realizou, em Pelotas, o primário, no Colégio de freiras São José (1936-1943), admissão (1943), ginásio (1944-1947) e científico (1948-1950) no Colégio Gonzaga, dos Irmãos lassalistas, quando na volta das aulas, acompanhava interessado a pintura da catedral São Francisco de Paula, realizada por Aldo Locatelli e Emilio Sessa, dos quais o jovem Claudio ficou amigo. Seu pai tinha atividades ligadas ao comércio de carnes, junto com seu avô, marchante, intermediando compras e vendas entre abatedouros, frigoríficos e casas de carnes. Seu Luís tinha estabelecimento comercial próprio, antes de, junto com sócio amigo, montarem empreiteira para serviços na construção civil. Com a sociedade, começaram a construir para a Viação Férrea do Rio Grande do Sul – VFRGS, onde Cláudio ainda criança, iria trabalhar na construção do ramal de Dom Pedrito como auxiliar da construção e depois, ele próprio fazer serviços de construção. Experiência que iria marcá-lo profundamente e determinar suas futuras escolhas.
Araújo entrou na UFRGS em 1950, no Curso de Arquitetura da Escola de Engenharia, pouco antes da fusão, quando foi criada a Faculdade de Arquitetura conjugada com o Curso de Arquitetura do Belas Artes. No início as aulas eram conjuntas com todas as demais engenharias, no prédio antigo da Faculdade e o Curso de Arquitetura orientado pelo austríaco Eugene Steinhof. Naquele ano, a primeira turma de engenheiros-arquitetos se formou com Plínio Almeida, Frederico Mentz e Dirceu Fontoura. Quando se deu a integração entre os cursos de arquitetura da Engenharia e do Belas Artes, Araújo estava no segundo ano, passando a ter aulas no prédio do “Castelinho”, próximo ao observatório. No seu entender, pelo lado do Belas Artes, o ensino preparou melhor sua formação nos aspectos relacionados à teoria, reflexão conceitual e consciência política e, pelo lado da engenharia, nas questões técnicas, mas o projeto de arquitetura e o fazer veio da vivência e convivência com veteranos que exerciam o ofício – como Carlos Alberto de Holanda Mendonça (1920- 1956), que teve formação no Rio de Janeiro, com quem ele jovem trabalhou – e da troca com os colegas, perambulando pelos escritórios. Recorda que, desde estudantes, todos circulavam, participando de trabalhos, nos escritórios de Veronese, Vera Fabrício e Emil Bered, que tinha escritório importante na Rua da Praia, onde trabalhavam seus amigos Moojen e Mancuso.
Araújo realizou a tradicional viagem à Europa, praxe acadêmica na época, com os colegas da Engenharia, seu curso original, já que o grupo de viagem se formava desde o início para angariar fundos. Na Engenharia, diferente da Arquitetura, a viagem era realizada no penúltimo ano, saindo em dezembro e retornando no final de março, sendo que nesta oportunidade (1954), apenas Araújo e Pasquali eram do Curso de Arquitetura, o restante dos estudantes eram de várias áreas da engenharia. Mesmo assim, o roteiro incluía projetos de interesse comum, como obras de Nervi, Gio Ponti e Le Corbusier, além das fábricas da Mercedes Benz e indústria pesada na Alemanha, Olivetti e Fiat, na Itália e outras empresas que envolviam design e patrocinavam as visitas.
Formou-se em 1955 e retornou como professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, em 1959, exercendo a docência na cadeira de Composição Decorativa, quando junto com Moojen, em 1968, abandou a universidade diante dos descalabros do regime militar. Voltou a docência vinte e dois anos depois no Trabalho Final de Graduação da Faculdade de Arquitetura do Centro Universitário UniRitter, onde atuou de 1990 a 2009 e conjuntamente com Sergio Marques e a Coordenação do Curso criou o Núcleo de Projetos. Dentre as inúmeras atividades de ensino, pesquisa e extensão em que Cláudio se envolveu, se destacam a Pesquisa Arquitetura de Concursos no Rio Grande do Sul, realizada com Maturino Luz e Sergio Marques e mais de vinte viagens de estudos com estudantes e professores, para diversas cidades latino americanas, onde Araújo, face sua habilidade em dar consistência e tornar todas suas ações especiais, oferecia a todos preciosas lições de como enfrentar e desfrutar a vida diante de qualquer adversidade. Seu refinamento e gosto pela experiência, acompanhados de sua capacidade de poupar energia, faziam que Claudio, apesar da idade, superasse os estudantes em todas atividades e aventuras, muitas vezes “desmaterializando” em um lugar e surpreendentemente “materializando” em outro, sempre animado, exercendo uma suave porém rigorosa liderança. O que lhe valeu a alcunha carinhosa de “El Capitán”.
Dentre as atividades de classe, destaca-se a presidência do IAB/RS, de 1966 a 1967, a primeira gestão que ocupou a nova sede, projetada por Fayet, e um das mais ativos períodos do IAB/RS desde o ponto de vista cultural, período que, entre muitas realizações, foi organizado o célebre IV Salão de Arquitetura do Rio Grande do Sul, na Rua da Praia (quando alegres e ébrios arquitetos saíram pelo centro histórico em passeata pela arquitetura moderna), e criada a galeria de arte do IAB, dirigida por Chico Stockinger, a mais importante da cidade em seu tempo.
Mas dentre suas múltiplas atividades, sempre desempenhadas com rigor e requinte, se destacam seus projetos arquitetônicos, que levou a arquitetura moderna no sul a constituir produção de prestigio internacional, inserindo-se no cenário da arquitetura brasileira com certa abstração e identidade regional simultaneamente, distinta do centro do país. Pode-se facilmente por em evidência diversas arquiteturas de interiores entre os anos 1950 e 1960 (conjuntamente com Carlos Mancuso ou Carlos Eduardo Comas), incluindo desenho de mobiliários que deram o start no design e na arquitetura de interiores moderna no sul; a Refinaria Alberto Pasqualini – REFAP/SUPRO, em Canoas – RS, de 1962-1968 (em equipe com Carlos M. Fayet, Moacyr Moojen Marques e Miguel Alves Pereira,) e o Terminal Almirante Soares Dutra – TEDUT, em Osório – RS, de 1962-1968 (em equipe com Carlos M. Fayet e Moacyr Moojen Marques), obras inaugurais da pré-fabricação em concreto no Brasil e construção industrial com atenção ao meio ambiente, sem precedentes na arquitetura internacional; a Casa Kopstein, em Porto Alegre, de 1965 (em equipe com Carlos Eduardo Comas); o Edifício FAM, em Porto Alegre, de 1967 (em equipe com Carlos M. Fayet e Moacyr Moojen Marques), obra emblemática da arquitetura moderna brasileira no sul; a Casa Heinz Agte em Porto Alegre, de 1970; o Abrigo da Fronteira para o Ministério da Fazenda em Porto Lucena, de 1970; a Agência da Receita Federal para o Ministério da Fazenda, em Bagé, de 1973; a Ceasa em Porto Alegre, de 1974 (em equipe com Carlos M. Fayet, Carlos Eduardo Comas, Eng. Eládio Dieste e Eng. Eugênio Montañez), que introduziu a cerâmica armada no Brasil e inaugurou a produção de mais de um milhão de metros quadrados construídos pela empresa Dieste e Montañez em território brasileiro; a Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre (em equipe com Cláudia Obino Corrêa), de 1975; a Indústria de Cosméticos Memphis (em equipe com Claudia Obino Correa e Eládio Dieste) de 1976; o edifício Politécnico (em equipe com Claudia Obino Correa) em Porto Alegre, de 1978; a Copesul, em Triunfo (em equipe com Carlos Maximiliano Fayet, Luiz Izidoro Boeira), em 1980; o Condomínio Residencial Loteamento Parque Primavera e o Condomínio Residencial Loteamento Algarve Vila São Carlos na região metropolitana de Porto Alegre, de 1982-1983 (em equipe com José Artur Frota e Guilherme L. Silva), uma experiência bem sucedida de habitação social moderna; a residência Paulo Bayard em Bagé, de 1988, sinalizando as experiências pós modernas dos integrantes desta geração, feita com muito requinte e sofisticação no caso de Cláudio; o Parque da Estação Férrea, em Carlos Barbosa (com Carlos M. Fayet e Sergio M. Marques), de 1988, classificado em primeiro lugar em concurso; diversas fábricas para as Indústrias Tramontina, na década de 1990 e 2000 (em equipe com Carlos M. Fayet e a Equipe de Arquitetos, com a colaboração de Sandra Boeira), o auditório do UniRitter (em equipe com Daniel Pitta Fischmann, Marcel Gregory Trescastro, André Luís Pereira Nunes, Lourenço Carlos Henrique Neves e Rodrigo Conceição), de 2000, entre outras.
Araújo, em sua trajetória, pareceu colecionar, desde a infância, experiências que, assim como seus atos, foram objeto de reflexão e incorporação em sua formação pessoal com certa profundidade. O teor comedido, rigoroso e por vezes obsessivo com aspectos aparentemente menos importantes de seus projetos, de alguma maneira, refletem este panorama biográfico no qual determinados acontecimentos e episódios foram valorizados sobremaneira, no sentido de alicerçar decisões e explicar ações, tanto pessoais como arquitetônicas. Esta atitude, de profunda reflexão, antecipação planejada de escolhas e condução pacienciosa das ações pensadas para atingir determinados objetivos, nem sempre visíveis “a olho nu”, se encobria por uma postura suave, aparentemente desatenta em algumas ocasiões, na verdade acompanhadas de um olhar extremamente perspicaz e objetivo em relação aos aspectos essenciais dos contextos e circunstâncias, assim como especial capacidade de síntese e percepção dos detalhes. Esta natureza, visível tanto em sua vida particular, quanto em sua arquitetura, se traduzia em atitudes e projetos que buscavam sempre a qualidade, o especial, o diferenciado, que normalmente se traduziam em parâmetros de austeridade, discrição, rigor, sofisticação e particularidade. Agregar valor a qualquer ação pessoal ou arquitetônica parecia ser uma meta, normalmente com horizontes largos, objetivando mais o teor qualitativo e a sofisticação do que a dimensão e a popularidade do proposto. Este funcionamento somado ao rigor ético no exercício profissional, característico de sua geração, bem como um caráter pessoal espirituoso e positivo em direção da qualidade, armaram uma equação bem sucedida em termos profissionais, que em todos os segmentos por onde transitou, seja UFRGS, IAB, Equipe de Arquitetos, UniRitter, seja no ensino, nas atividades de classe ou no exercício do ofício, deixou em cada parte da história que viveu algo especial, pérolas arquitetônicas ou eventos singulares, sempre com a sabedoria de quem controla o tempo a seu favor e regula os valores de acordo com seus objetivos.
Foi um segundo pai para mim.
notas
NA – Sobre Cláudio Araújo, ver:
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Arquitetura gaúcha: história de família, história de uma escola. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 176.04, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/16.176/6148>.
Fayet, Araújo & Moojen – Arquitetura Moderna Brasileira no Sul: 1950/70, vídeo de Sergio M. <www.youtube.com/watch?v=rs1koPlBks0>.
MARQUES, Sergio Moacir. Cláudio Araújo e os primórdios do design moderno no Sul. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 194.04, Vitruvius, jul. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.194/6125>.
MARQUES, Sergio Moacir. Fayet, Araújo & Moojen: arquitetura moderna brasileira no sul – 1950/1970. Tese de doutorado. Orientadores Carlos Eduardo Dias Comas e Helio Piñón Pallares. Porto Alegre, PPPGA FA UFRGS, 2012 <www.lume.ufrgs.br/handle/10183/65665>.
MARQUES, Sergio Moacir. Plugg-and-play. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 086.03, Vitruvius, jul. 2007 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.086/230>.
sobre o autor
Sergio M. Marques é coordenador do Núcleo de Projetos/TFG UniRitter, professor do Mestrado UniRitter/Mackenzie e da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, arquiteto do escritório MooMAA, ex-colaborador da Equipe de Arquitetos, ex-morador do Edifício FAM, 3° “filho” de Cláudio Araújo.