É repouso, o fundo do mar.
Na Antiguidade, as coisas eram arremessadas ao mar para serem esquecidas. Também o capitão de uma embarcação que naufragasse, para ser esquecido, tinha, por obrigação – e era honroso fazê-lo –, deixar-se afundar com o navio. Curiosidades dessa relação do homem com o mar.
O mar de Laura Gorski é negro e pertence ao mundo do interior, do invisível e do oculto, e esse mundo do subjetivo não é nada fácil de ser compreendido. Mas, por outra via, não é necessário discorrer sobre a história da arte e suas teorias para compreender a instalação Repouso, que provoca sensações, emoções e questionamentos apenas com a contemplação.
É pelas emoções e sensações, portanto, que vamos buscar as “chaves” dadas pela artista para adentrar sua instalação.
Em um primeiro olhar, é apenas uma sala com o chão coberto por forração escura e paredes pintadas de preto em três alturas, onde aparecem alguns elementos bastante reconhecíveis. São três: as pedras, os troncos secos de árvores e um barco pousado nesse chão preto. Estão distribuídos em três salas, em três situações distintas e que se conformam em uma só paisagem. A artista constrói um desenho tridimensional em que se pode entrar e caminhar de um lugar a outro.
Predomina o fundo preto para as linhas que contornam a paisagem. A artista cria um ambiente para nos falar daquilo que é visível e daquilo que não o é, abrigando o público em seu interior. O invisível e o oculto estão ali, juntos. O invisível é o visível que está encoberto, pintado de preto. O oculto, sabemos que está ali, mas não se deixa ver; ele é subjacente a tudo e a todas as coisas do mundo. Está relacionado à existência. É o que não tocamos, o que não sentimos e o que não vemos. É o mistério que rege a vida.
Temos uma necessidade humana de querer entender essas coisas que nos são postas e que são misteriosas. Sem conseguir nos inteirar do todo, somos atraídos por aquilo que vemos e não vemos, pelo palpável e não palpável.
A instalação Repouso, apresentada no Centro Cultural São Paulo, lá está como quando nos colocamos de frente para o mar, que nos atrai misteriosamente para suas “profundezas”. Parece nos chamar, como as sereias que, quando cantam, levam os marinheiros seduzidos por suas vozes para o fundo do mar. Da mesma maneira, quando nos deparamos com a entrada da instalação, ela nos seduz de imediato, e nos convida a fazer o percurso proposto pela artista. Parece nos puxar para o fundo da sala que, por sua vez, nos leva para a segunda e, depois, para a terceira, e é assim que nos dá a sensação de afundarmos no abismo proposto por Laura Gorski.
Abismo é palavra com sentido assustador para um acidente geográfico majestoso e insondável. Pode ser tenebroso, em certas situações. Pode ser sugerido na opacidade da cor preta. Não se conhece o fundo; ou mesmo, se tem fundo, o abismo do preto.
É arriscado usá-lo como metáfora para descrever um mundo escuro, o caminho derradeiro para o inferno, na descrição de Dante na Divina comédia, sobre o abismo.
O risco é irmos muito além do que nos propõe Laura Gorski, com a instalação Repouso, pois a palavra pode dar sentido também ao mar negro abissal desenhado na instalação, onde nenhuma luz atravessa sua escuridão.
Afundar, silenciar, submergir, entrar em contato com o oculto, morrer. A instalação faz lembrar algumas mortes causadas por afogamento, que se tornaram célebres ao buscar a proteção, o silêncio e o repouso das profundezas das águas.
A morte de Ofélia, imortalizada na tela do inglês John Everett Millais (1829-1896), de 1852, que se encontra na Tate Britain, em Londres, é clássica, e uma das mais lindas retratadas. A jovem Ofélia morreu ao cair em um riacho, depois de ter colhido flores. A jovem dependurou-se, sobre o riacho, em um galho de árvore que cedeu. Caiu n’água e afogou-se, aparentemente sem se debater, é assim que nos conta Shakespeare, em Hamlet. As flores se espalharam ao seu redor enquanto a morta, já serena, era levada lentamente pelas águas.
Mais ainda, faz lembrar uma outra, em especial. E é uma das cenas de morte mais “sublimes” que o cinema nos proporcionou. A da escritora Virginia Woolf, para quem a morte seria a única experiência que ela própria jamais poderia descrever. No filme As horas, a atriz australiana Nicole Kidman, que faz o papel da escritora, sai de sua casa em direção a um riacho nos fundos de sua propriedade. Ao caminhar entre os arbustos, enche os bolsos de pedras à margem do rio. Segue firme e ereta, sem expressar nenhuma emoção. Nem medo, nem tristeza, nem choro, nem felicidade pela decisão corajosa tomada: a do suicídio. Nada, nenhuma expressão, a não ser a tenacidade em procurar o melhor caminho para se afogar. Caminha apenas em direção ao rio, levemente encurvada, como se carregasse um peso enorme sobre as costas.
Os primeiros a submergir foram seus sapatos; depois suas pernas, o vestido com a água batendo à cintura, depois o peito, o pescoço, a cabeça e, por fim, rapidamente, os cabelos presos atrás da cabeça a desaparecer no brilho da luz do dia, refletidos na água que corre rapidamente no leito do rio.
Aqui, novamente, outra passagem, agora literária. A instalação faz lembrar a descrição de Sidarta no livro homônimo de Herman Hesse, quando o personagem contempla um rio a partir de uma de suas margens. O rio segue seu curso (sua alma) para sempre, pensa Sidarta.
As correntes marítimas também fazem cursos à deriva nos oceanos. No vaivém, levam, para suas profundezas, o que era visível. O que era luz, na superfície, vira sombra, no fundo do oceano. A claridade transforma-se em escuridão.
O transparente da água vira preto e opaco, nessa mimetização do mar, na instalação de Laura Gorski. Esse negrume questiona a ambiguidade do mundo: vivemos entre o preto e o branco, entre a luz e as trevas, entre a vida e a morte. “Há uma dúvida que pertence à claridade” (1). Há outra dúvida que pertence à escuridão. O que não vemos na claridade e o que vemos na escuridão.
É essa dicotomia que a artista propõe unir nas salas de exposição do Centro Cultural São Paulo.
Busco, ainda, outra obra literária para descrever mais uma emoção (paisagem) diante daquilo que expõe Laura Gorski. Fala de submergir, em uma paisagem, e retornar depois à superfície, para se deparar com a desolação do mundo.
Passa das sete horas da manhã quando se ouvem crianças que caminham e brincam em uma estrada.
“O sol brilha. Eles escondem suas coisas embaixo de uma canforeira imponente; precisam tomar banho nus para chegarem secos à escola, e depois é sempre mais divertido. Chegaram às 7h20, a aula é às 8h30. Mergulham na bacia de água clara e sobem sem se cansar… Kinoko acaba de voltar para a areia já quente. Corre para a canforeira para se vestir; Akira mergulha, pela última vez. Kinoko levanta maquinalmente a cabeça: o sol bate na colina ao pé da qual eles se encontram; o pequeno caminho serpenteia, a alguns metros acima da enseada e, desviando-se dele, seriamente alcatroada e gravemente retilínea, encontra-se a estrada principal. Akira volta à superfície a 3 metros da margem, voltando-se para a irmã como sempre, e, enquanto Kinoko se abaixa para calçar a segunda meia, a silhueta tristemente familiar da diretora se delineia na estrada… São 8h13… a diretora os viu… Akira tem uma ideia ainda mais absurda: mergulha novamente. Devem ser 8h14. Ele sabe que pode ficar no fundo durante longos minutos; segura-se em pedras musgosas e frias, em algas ásperas; a água está gélida…
É precisamente neste momento que o clarão nada habitual, de um azul muito bonito, bate na areia do fundo. Akira não se mexe mais. Depois sufoca. Um estrondo surdo, como que vindo das profundezas da Terra, varre toda a superfície da água. Akira sobe e fica de pé. Não entende. Nem percebe, de início que Kinoko não está mais lá. Toda a paisagem mudou, como num sonho”. (2)
“A nuvem de Hiroshima é uma nuvem muito particular, uma nuvem que poucos homens viram antes, lá longe, numa zona militar do Novo México, uma nuvem prolongada até o chão, com o pedúnculo esguio, uma nuvem assentada sobre uma base, como um cogumelo grotesco. Akira parou sobre a colina. Lentamente, a nuvem nova começa a perder sua base, derivando lentamente como um dirigível alemão sem piloto. Depois, a nuvem se tornou negra, de uma negritude como nunca mais se viu, perfeita, profunda como um abismo, a nuvem de Hiroshima fechou progressivamente todo o horizonte, faz quase noite em Hiroshima por volta do meio-dia, enquanto, se dermos as costas para a cidade, brilha um verdadeiro sol de verão. A nuvem ainda se estendeu até o ponto em que pareceu não mais se manter, e começou a chover; no entanto, a chuva era preta, inteiramente preta, e devolve a poeira dos corpos à terra. Choverá assim todas as noites, durante semanas” (3). Cobrindo tudo de preto. A água, inclusive, dos rios e do mar. Tão preta que deu a tudo a aparência de um mangue afundado no óleo viscoso de fósseis. Como se o tempo tivesse acelerado milhões de anos. Milhões de anos em uma fração de segundos. Tudo se tornou uma só paisagem silenciosa e assustadora, naquele dia, para os olhos do menino.
A paisagem proposta na instalação Repouso é silenciosa. O preto é silencioso, e cobre os pés e os tornozelos quando adentramos a primeira sala. É uma redução das coisas do mundo. O preto é fechado em si, não se expande, não se mexe. O preto apaga e esconde tudo o que está abaixo de sua linha. As pedras sobressaem dessa água negra como ilhas minúsculas, se as imaginarmos assim, ao adentrar a primeira sala, como se nos tornássemos parte dessa paisagem. Seremos aos poucos engolidos por ela, se nos deixarmos levar pelo caminho proposto pela artista.
Depois avistamos troncos de árvores levemente retorcidos. Cena vista em áreas de pesca. Servem para delimitar uma área circular no mar, na lagoa ou na margem de um rio. É instrumento de pesca, mas poderia também servir como medida de profundidade. Parece um cercado “arcaico” construído por pescadores em outras épocas. Nessa sala, a água negra já bate na altura da cintura.
Seguimos adiante e nos deparamos com um barco afundado a sobressair-se da escuridão; é a cena final dessa narrativa. Nessa sala, a paisagem torna-se mais abissal. O negro é ainda mais profundo, estamos quase submersos. A paisagem se reduz ao silêncio, e a linha delineada pelo mar negro é o horizonte.
O gesto da artista, ao construir essa instalação, vem de um desejo de apagamento das coisas, para aguçar outras que se tem dificuldade de enxergar. Indica caminhos para lidar com o todo, fazer a conexão entre o claro e o escuro. A luz e a sombra. Uma descobre; a outra encobre, nessa grande paisagem sem fim que é o mundo. A artista cria dois tempos nessa instalação: o tempo suspenso, parado, e o tempo que é submerso e retrocede, o tempo da memória.
Por fim, aqui ainda cabe a citação a um outro filme. Trata-se de um documentário sobre a cineasta belga Agnès Varda, As praias de Agnès (4).
Agnès Varda começa o filme em uma praia, onde organiza espelhos. É uma instalação onde tudo se reflete para a filmagem daquilo que seria um documentário sobre sua trajetória, dizendo, diante das câmeras, que, se as pessoas fossem literalmente abertas, o que se encontraria dentro delas seriam paisagens. E as paisagens encontradas dentro dela seriam as de praias.
Bela descrição desse corpo formado não por pele, carne, ossos e entranhas, mas por paisagens vivenciadas, inventadas ou não. Aquelas que guardamos na memória. Seriam as paisagens que, quando abertas nossas barrigas e peitos, sairiam para povoar o mundo. Seria um mundo feito com essas visões. Esses deslumbres.
Parece ter sido esse o exercício de Laura Gorski: nos oferecer uma das muitas de suas paisagens internas.
notas
NE – Texto curatorial da exposição Repouso, de Laura Gorski, Centro Cultural São Paulo, São Paulo, de 6 de agosto a 30 de outubro de 2016.
1
NAVAS, Adolfo Montejo. Pedras pensadas – inscrições (1980-2002). Tradução Sérgio Alcides. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002, p. 77. Aforismo de Waltercio Caldas.
2
AUDEGUY, Stéphane. A teoria das nuvens. Rio de Janeiro, Record, 2009.
3
Idem, ibidem.
4
Les Plages d’Agnès, 110 min. França, 2008. Direção: Agnès Varda; roteiro: Agnès Varda.
sobre o autor
Ricardo Resende é curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.