Em 1964, o autor afro-americano Ralph Ellison escrevia: “a arte – os blues, os spirituals, o jazz, a dança – era o que tínhamos como espaço de liberdade” (1). Nessas palavras estão contidas toda a violência da diáspora africana e, ao mesmo tempo, a riqueza das linguagens, da arte e das músicas criadas pelo contato entre as culturas africana e euro-americana, desde o século 16 até hoje. Sincretismos entre músicas negras, filhas da África, e brancas, de tradição europeia, nasceram dos dois lados do Atlântico. Se nas Américas e no Caribe é evidente a mistura entre materiais africanos e ocidentais – é só pensar no calypso de Trindad, no mento jamaicano, beguine das Antilhas, no son cubano, no choro e no baião no Brasil, no próprio jazz de New Orleans –, também temos que ressaltar a forte influência que esses mesmos híbridos afro-americanos tiveram nos gêneros populares africanos nascidos ao longo do século passado: soukous no Congo, com influências da rumba cubana, ou afrobeat de Fela Kuti, onde as rítmicas do funk e as melodias do jazz se sobrepõem à música tradicional nigeriana (2). Podemos pensar então no Atlântico como um grande espaço habitado por músicas que, mesmo sendo extremamente diferentes entre si, compartilham tratos semelhantes, que têm origem na própria essência do som: a música foi realmente a forma que os negros encontraram para reconquistar aquela identidade que por longo tempo lhes foi negada. Sem dúvida, entender o poder que carrega essa história pode nos ensinar muito.
Gostaria de me concentrar especificamente sobre o ritmo, elemento fortemente africano, que derivou e evoluiu em formas diversas, mas sempre presentes nas músicas “transatlânticas”, desde os cantos yoruba até o hip-hop. Léopold Sedar Sénghor, um dos maiores intelectuais africanos do século 20, escreveu: “O ritmo negro encontra-se em todas as artes. Com procedimentos diferentes, combinando o paralelismo e a assimetria, a acentuação e a atonalidade, os tempos fortes com os fracos, introduzindo a variedade – ou seja, a quebrada –; na repetição, o ritmo nasce, se fortalece, ganha uma função dominante, expressando assim a tensão do ser em seu ato de produzir algo essencial. O ritmo é, incontestavelmente, a marca da negritude” (3). Para o poeta do Senegal, o ritmo é representativo do ser africano: mais especificamente, tem raízes na própria linguagem, pois a semântica é baseada – em várias línguas da África Ocidental analisadas por Sénghor – na alternância dos acentos rítmicos ou tonais, em poesia frequentemente acompanhada por instrumentos de percussão. “As virtudes sensuais da palavra – timbres, tons, ritmos – fortalecem o sentido, não o signo” (4). A palavra se refere – em sua dimensão sonora – a um objeto, um valor concreto, com tanta força que Sénghor a chama de palavra-imagem. A batida do tambor nada mais é do que a transposição musical dessa materialidade: o ritmo africano não é unitário, nem monótono, nem milimétrico, ao contrário brinca com a presença simultânea de corpos que, tocando juntos, se sobrepõem por acordo ou por contraste, conversam, construindo uma arquitetura sonora, onde o corpo se manifesta em seu aspecto motor mais evidente.
A polirritmia africana sobreviveu nas músicas “transatlânticas”. O comportamento irregular da percussão – o célebre ritmo sincopado da linguagem musical ocidental, onde é enfatizado o tempo fraco, posicionando naquele momento um evento sonoro – se estendeu aos outros instrumentos: podemos observar este fenômeno nos improvisos de Charlie Parker ou no pianoforte guajeo que define a música cubana. É importante lembrar que a música africana foi longamente transmitida, de geração a geração, por meio da tradição oral: talvez seja justamente por isso que tudo que ecoa pelo continente africano tem pouco a ver com o som do relógio e tudo com o pulsar do corpo. Esta ausência da escritura como dispositivo de reprodução e de transmissão de uma composição musical é muito evidente no jazz: a estética do improviso funde no mesmo instante os momentos de composição, criação e execução. Tocar significa portanto responder a uma lógica processual in fieri e não a uma fiel reprodução de um pentagrama, marca da autoridade do compositor. Isso cria um vinculo entre música e o fluir da tradição oral, onde os músicos – coletivamente – participam da criação da música. Evidenciar a ligação entre as palavras oral e coletividade tem enorme importância, pois o diálogo entre os corpos é impossível na solidão.
Com isso, não quero dizer que as músicas de descendência africana sejam estilos onde a casualidade tenha um papel preponderante. Nas muitas possibilidades é o corpo que reage aos impulsos do Outro, decidindo qual caminho seguir, desfrutando também da memória muscular guardada nos membros do corpo. É uma educação pelos acidentes, aprender a acolher a alteridade, não apenas intelectualmente, mas fisicamente.
Vocês vão reparar que na minha seleção musical (5) quis incluir também o hip-hop e algumas faixas de música eletrônica baseadas na coleta de fragmentos musicais. Pode parecer estranho que estilos musicais que fazem grande uso de máquinas e computadores para a produção do ritmo tenham uma relação com que o discutimos acima. Mas vejam bem: em primeiro lugar, o pilar que sustenta a criação do hip-hop (e, sucessivamente, alguns outros gêneros contemporâneos), o sampling (utilizar, cortar, reorganizar música do passado para criar algo novo), perpetua e enriquece a fusão intercultural que permitiu o nascimento das músicas que iremos ouvir; em segundo lugar, muitos produtores e músicos desses gêneros tentaram, estimulados pelos limites impostos pelas máquinas que usavam, criar música onde fosse possível sentir as vibrações do corpo.
O metrônomo do corpo é portanto o sujeito desta seleção: a música será mais eloquente e precisa do que eu.
notas
NE – texto curatorial da audição de música “Jazz Contemporâneo”, espaço Marieta, 24 agosto de 2016, às 19h.
1
No original em inglês: “the art – the blues, the spirituals, the jazz, the dance – was what we had in place of freedom”.
2
O jazz é sem dúvida o gênero que mais influenciou a música africana: muitos grupos a partir dos anos 1960 utilizaram a palavra jazz no próprio nome, mesmo tocando músicas muito diferentes: Bembeya Jazz National (Guinea), Ry-Co Jazz (Congo-Brazzaville), Le Grand Kallé et l'African Jazz (Congo), Prince Nico Mbarga and Rocafil Jazz (Nigeria), TPOK Jazz (Congo).
3
Discurso De la négritude, pronunciado na Universidade de Lovanio, Congo Kinshasa, em 1969. Nesse texto Sénghor cita uma relevante poesia de Langston Hughes, autor norte-americano do movimento Harlem Reinassance:
All the tom-toms of the jungle beat in my blood.
And all the wild hot moons of the jungles shine in my soul
I am afraid of this civilization —
So hard,
So strong,
So cold.
4
SÉNGHOR, Léopold Sedar (1952). L’apport de la poésie nègre au Demi-Siècle. In SÉNGHOR, Léopold Sedar. Liberté 1: Négritude et humanisme. Paris, Stock, 1964.
5
Para outras seleções musicais, ver: mixcloud.com/defe; soundcloud.com/defe.
sobre o autor
Federico de Felice (1990) nasceu e vive em Bolonha, Itália. Estudou na Universitá di Bologna e Université Paris-Est, onde se formou em culturas literárias europeias, com uma tese comparativa entre a improvisação do jazz e a literatura potencial do coletivo OuLiPo. Mesmo tendo desistido da carreira de trompetista ainda jovem, a música mantém uma posição importante em seus interesses: coleciona discos e organiza audições em Bolonha. Como jornalista musical escreve para as revistas BLOGmag e, atualmente, Noisey.