“Sempre que passo em frente ao edifício do convite digo aos companheiros de ocasião: que belo edifício moderno. Não sabia que a autoria era do pai do Nelson. Ignorância e... quanta. Mas o juízo estético ainda funciona”.
A frase acima é do arquiteto Alessandro Castroviejo, respondendo por email ao convite para o lançamento do livro João Kon, arquiteto (1). Avisou que não poderia ir, nos desejou “merda”, como é de praxe nessas ocasiões, mas o que chama a atenção em sua mensagem é que sua notável honestidade intelectual denuncia um completo desconhecimento da obra e do arquiteto homenageado pela publicação.
O Albatroz – o edifício referido por Castroviejo – fica encarapitado no final da encosta da rua General Jardim, na transição de bairros da Vila Buarque para Higienópolis. A enorme lâmina, alta e horizontal disposta ao longo da rua Veridiana, destaca-se na paisagem urbana da região pelo porte e graça, com suas esquadrias, estrutura e balcões expostos conformando requintada composição geométrica.
Muito próximo dali, na rua Martinico Prado, o edifício Juriti, com sua face menor voltada para a rua, recebe os pedestres com uma marquise generosa e se abre lateralmente para belo jardim no térreo, uma das características mais marcantes dos edifícios de João Kon, que contou com a colaboração de paisagistas notáveis ao longo da carreira, casos de Waldemar Cordeiro e Rosa Kliass. Ainda em Higienópolis, o edifício Condor abriga em seu térreo um belíssimo painel de Gershon Knispel, fato corriqueiro na trajetória do arquiteto, sempre propenso a dispor um suporte para instalar obras de arte e cumprir a agenda vigente de síntese das artes.
Diversos outros edifícios, sofisticados no projeto e na execução – outras qualidades sempre presentes –, se espalham por Higienópolis, Jardim Paulista, Morumbi e outros bairros da cidade. Não passam desapercebidos – durante o lançamento do livro, foram inúmeros os depoimentos das pessoas presentes que já conheciam um ou mais edifícios presentes na publicação –, mas era quase unânime a constatação de que não conheciam o autor das obras que admiravam.
São sintomáticos os depoimentos de José Armênio Brito Cruz, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/SP, e Gilberto Belleza, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU/SP: o primeiro conviveu na infância e adolescência com familiares e amigos que moravam em edifícios de João Kon, enquanto o segundo fez a reforma, há alguns anos, da residência Waldemar Zaclis, no Pacaembu. Ambos ignoravam que se tratavam de obras de João Kon e o arquiteto Gilberto Belleza mencionou que a certeza de se tratar de excelente obra de arquitetura o levou a preservar ao máximo o projeto original.
Assim, temos convivido cotidianamente com esse desconhecimento desde que decidimos, há alguns anos, realizar a aventura editorial. Nelson Kon, fotógrafo de arquitetura e nosso parceiro há décadas em tantas edições, nos propôs – a mim e a Silvana Romano Santos – a realização do livro do seu pai, arquiteto com mais de duzentos edifícios realizados em São Paulo. Se a quantidade impõe respeito, a qualidade da obra impressiona ainda mais.
Ao comentarmos sobre a obra e sobre o arquiteto, a resposta padrão do interlocutor era de grande surpresa e – por que esconder? – de desconfiança com a evidente questão familiar envolvida. A ignorância só não era completa graças ao artigo de Fernando Serapião na revista Projeto Design no já distante ano de 2006, cujo título era emblemático: “Silêncio e anonimato” (2). Assim, afora alguns poucos colegas que tinham registrado a presença dos edifícios de Kon nessa matéria isolada, o que reinava era o mais completo desconhecimento.
Se é certo que João Kon esteve mais ocupado em projetar e construir durante sua longa carreira, e pouco preocupado em divulgá-la na mídia especializada, por outro lado é sintomático que esta não tenha se interessado por ela durante o período de apogeu, os anos 1960 e 1970. Curioso notar que a revista Acrópole, extinta em 1971, não publicou uma matéria sequer sobre edifícios de Kon, mas é possível encontrar em suas páginas publicidade de esquadrias que usa edifício de sua autoria como “modelo”.
O motivo principal desse interdito é a postura ideológica que privilegiava o engajamento político, resultando que programas arquitetônicos como escolas, hospitais, universidades, fóruns e equipamentos públicos em geral mereciam mais atenção do que os edifícios de apartamentos (a residência unifamiliar, curiosamente, recebe uma ampla cobertura, provavelmente por sua enorme incidência e por também registrar experimentos novos que posteriormente serão usados em edifícios de maior porte e com programa mais nobre).
Há alguns anos, quando ainda era possível vivenciar no meio arquitetônico um resquício desse quadro ideológico, nos deparamos com a abissal desproporção entre a qualidade da obra de Rino Levi e o reconhecimento que merecia da crítica e da historiografia – e creio que não seria exagerado que Hugo Segawa e Guilherme Mazza Dourado compartilharam da mesma experiência quando pesquisaram a obra de Oswaldo Bratke. Os livros resultantes, que colocaram os dois mestres da arquitetura em seus devidos lugares (3), contribuíram para um certo arrefecimento dos juízos mais severos, mas suas publicações asseveram que os tempos haviam mudado e a qualidade arquitetônica passava a ser avaliada sem as restrições externas ao ofício.
Novos tempos que possibilitaram uma série de pesquisas acadêmicas e alguns livros, que ampliaram o espectro de profissionais e obras presentes em nossa historiografia. Novos tempos que motivaram também a ampla investigação sobre a obra de João Kon, que envolveu os autores dos textos – Fernando Serapião, Jacopo Crivelli Visconti e Luis Espallargas Gimenez – e grupo de pesquisadores – Marcella Áquila, Mariana Tidei e Fernanda Critelli. Os ensaios fotográficos, como não poderia deixar de ser, ficaram com Nelson Kon, o projeto gráfico sob a responsabilidade de Marise De Chiricco, com equipe numerosa e qualificada coordenada por Abilio Guerra e Silvana Romano Santos (4).
O precioso livro resultante foi lançado no dia 6 de agosto de 2016, em evento concorrido que congregou familiares, amigos, arquitetos, professores e alunos de arquitetura na varanda e no jardim do Museu da Casa Brasileira. Em meio a essa audiência previsível, um contingente inesperado: diversos moradores de edifícios de João Kon – dentre eles, a atriz Vera Holtz, festejada pelos presentes – aguardaram pacientemente na fila imensa pelo momento de receber a dedicatória e agradecer ao arquiteto as qualidades aportadas nos edifícios e apartamentos que habitam. Haverá alguma homenagem mais significativa do que esta?
A reunião que se iniciou às 11 horas se estendeu pela tarde, com um fluxo intenso de pessoas; algumas, apressadas, queriam apenas o livro com a dedicatória do arquiteto; outras, mais tranquilas, permaneceram por longo tempo, conversando e apreciando o coquetel; outras, em especial os pais, curtiram o jardim com as crianças, que se divertiram com a equipe do educativo do museu. Muitos disseram que foi um dia memorável, alguém mencionou que uma aura mágica de alegria cobria as cabeças dos convivas.
notas
1
GUERRA, Abilio; SERAPIÃO, Fernando; ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis (Orgs.). João Kon, arquiteto. São Paulo, Romano Guerra, 2016.
2
SERAPIÃO, Fernando. Silêncio e anonimato. Projeto Design, n. 311, 2006, São Paulo, p. 94-97 <https://arcoweb.com.br/projetodesign/artigos/artigo-silencio-e-anonimato-01-09-2003>.
3
ANELLI, Renato; GUERRA, Abílio; KON, Nelson. Rino Levi. Arquitetura e cidade. São Paulo, Romano Guerra, 2001; SEGAWA, Hugo; DOURADO, Guilherme Mazza. Oswaldo Arthur Bratke . São Paulo, ProEditores, 1997.
4
Assistentes editoriais: Fernanda Critelli e Caio Sens; tratamento de imagens: Rafaela Neto; diagramação: Flora Tortorelli Canal; produção gráfica: Jorge Bastos; preparação e revisão de texto: Regina Stocklen; produção gráfica: Jorge Bastos.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.