Apaixonei-me muito cedo pelas coleções de fotografia das ruas e edifícios paulistanos do século 19 e do início do século 20, principalmente Militão Augusto de Azevedo, cujo registro das ruas e cenas da cidade nos mostra o que um dia foi a capital paulistana.
São registros de memória de locais que já não existem senão ali, nas fotografias, em notícias antigas de jornal, na literatura. Essa São Paulo existe hoje apenas nas imagens e nas palavras.
Por conta desse interesse fui visitar a exposição Apagamentos, de Thiago Navas, atualmente em cartaz no Caixa Cultural São Paulo (1).
Navas propõe uma intervenção sobre um conjunto das fotografias de Militão, ainda de meados do século 19, na qual o autor apaga, através de técnica de esfolamento de papel, as partes do registro que já não existem mais fisicamente na cidade.
Muito me surpreendeu o incômodo que causou percorrer a exibição. Ora, meu interesse nas fotos de Militão Augusto de Azevedo, especialmente sendo pesquisadora da história do urbanismo da cidade, sempre foi enxergar o que não estava mais lá através desse registro iconográfico.
Em Apagamentos, Navas propositadamente retira a própria memória do registro, deixando-nos à deriva, em busca do lugar.
Singela, a exposição suscita uma série de impressões nostálgicas e contraditórias. Ao retirar a memória da ausência, o autor destaca o que ainda está aqui, instigando tanto um novo interesse na obra: a imagem do que ainda existe enquanto lugar de memória.
Além da exposição em si, um detalhe colocado pela curadoria provocou essa reflexão: o mapa. Ao propor roteiros pelo centro histórico de São Paulo, seguindo o percurso de Militão pela cidade, o curador expõe um mapa da São Paulo do século 19, destacando os nomes originais de suas ruas, largos, travessas.
Conseguimos saber tanto dessa cidade apenas por esses nomes! O largo do Capim, a Rua da Palha, o Largo do Pelourinho, a Estrada do Bom Retiro, o Largo da cadeia...
É claro que já não há capim, nem palha no distrito da República.
O Pelourinho já não teria uso há mais de 100 anos, mas é curioso notar o quão próximo se encontrava do Bexiga, bairro italiano que ora foi quilombo.
A estrada do Bom Retiro leva à lojas de roupas e instalações da indústria do vestuário e não mais às barras do meândrico Tietê, onde o paulistano convalescente se recuperava.
Entretanto esses nomes, se ainda vigentes, guardariam boa parte dessa memória do uso e das imagens do que foram esses lugares, hoje no coração da metrópole paulistana.
Tudo isso para falar da mudança de nome do Elevado Costa e Silva.
Há cerca de duas semanas muitos comemoraram a mudança de nome do Elevado.
Nascido da Costa e Silva, desenhado, projetado e construído exclusivamente para carros, no auge da ditadura militar, serpenteando toneladas de concreto em meio a bairros históricos da cidade, o Elevado passou agora a se chamar João Goulart.
Essa notícia me causou tamanho espanto que consigo reagir apenas agora, depois de passar por Apagamentos e com a ajuda das poéticas ranhuras de Navas, que me fez refletir sobre a memória dos lugares, nas imagens e nas palavras.
Existe uma razão pela qual damos certos nomes a certos lugares.
Em Lisboa, por exemplo, encontramos a Rua do Sol ao Rato, cujo nome um dia me fez morrer de rir ao ouvir o endereço de um amigo. Pois não é que é nessa rua que o sol se põe no Largo do Rato, durante o verão? Sol ao Rato, dito e feito.
Certamente havia capim e palha na São Paulo de meados do século 19. Esquecemo-nos dessa São Paulo provinciana, pois esses nomes – e as imagens que eles carregam – nos foram tiradas, dada a mania obsessiva de mudar as palavras e apagar as lembranças.
Nem todas as lembranças são boas, mas a memória coletiva é um artifício didático, especialmente quando se refere a eventos que devemos lutar para que não se repitam.
O Elevado, uma obra cicatriz na cidade, nasceu homenageando a ditadura através do nome de um de seus presidentes.
A troca do nome, por mais bem-intencionada que tenha sido, apaga o significado autoritário dessa obra e a memória de algo que não deve se repetir.
Há muitos anos o Elevado em si vem sendo ressignificado, o que é um feito extraordinário da população do seu entorno, que mostra que é capaz de reinventar a cidade, mesmo face a adversidades. O paulistano é capaz de transformar sua experiência, seu cotidiano, a apropriação dos espaços, da vida pública, dos lugares.
Essa apropriação é legítima e felizmente crescente, a ponto de hoje discutirmos o fechamento definitivo do Elevado para carros, entretanto não apaga o fato de que esse é um dos símbolos da ditadura.
A memória, esta deve permanecer.
Não devemos apagar os feitos nefastos de épocas não democráticas, nem em seus nomes.
Eles servem para nos lembrar de resistir e lutar, especialmente num momento em que setores ultraconservadores da sociedade empunham, sem nenhum pudor, cartazes pedindo a volta da ditadura.
A memória fica nas imagens e nas palavras.
Um Elevado que nasceu Costa e Silva não deveria nunca ser chamado de Jango.
nota
1
Exposição Apagamentos, de Thiago Navas. Caixa Cultural São Paulo, São Paulo, de 16 de julho a 25 de setembro de 2016.
sobre a autora
Eliana Rosa de Queiroz Barbosa é arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura e Urbanismo (Mackenzie) e mestre em Assentamentos Humanos (KUL).