Reservei o período da manhã para escrever um artigo para um seminário sobre urbanização de favelas. Acordei cedo, arrumei a cama, escovei os dentes e comecei a preparar um café.
Arrumei a mesa, ajeitei o prato, o copo, os talheres. Ainda sonolento, servi-me de um chocolate quente com torradas. O frio e a preguiça pedem uma comidinha mais aconchegante para acolher e aquecer a alma. Na tentativa de despertar de vez, arrematei com café e bolachas (ou seriam biscoitos?).
Escovei os dentes, lavei o rosto, troquei de roupa. Espreguicei-me e senti as pernas e as escápulas se contorcerem. Estou velho, pensei.
Sentei à mesa, liguei o computador e, enquanto esperava ele ligar, observei que sob os meus pés estava uma camada generosa de pó e poeira. Senti o meu nariz coçar. Não dá pra escrever assim, pensei. Eu tenho rinite, logo logo ela ataca e acabará com toda a minha concentração.
Levantei-me, fui até a área de serviço, comecei a montar o aspirador. Tocou o celular e eu fui atender. Não era uma ligação, era alarme. Voltei para a mesa do computador e abri os emails. Eram duzentos não lidos. Li alguns, respondi poucos, sobraram muitos.
Lembrei-me que precisava marcar entrevistas para o mestrado e comecei a articular isso. Entrei no website do seminário, copiei a estrutura requerida para o artigo, colei no word e, de repente, atchim!!!
A maldita rinite chegou, lembrei-me de que não limpei a casa. Levantei, vi a louça na pia e resolvi lavar. Mas, para lavar a louça, é preciso antes guardar a que estava esperando no escorredor. Senti a perna direita vibrar. Achei que era uma nova mensagem no celular. Eram trezentas.
Sentei no sofá e li todas. Respondi poucas. Entrei na internet e li as notícias importantíssimas sobre atualidades. Vi que Michael Phelps passou a maior barra, que uma cantora nova, ou pelo menos nova pra mim, estava lançando uma música à capela, assisti ao clipe dessa tal música nova. Achei tudo meio repetitivo e mais um talento desperdiçado...
E ai veio outro espirro.
Outra vez, esqueci-me de aspirar a casa. Achei melhor varrer. Varri, como sempre, cantarolando na cabeça “diga onde você vai, que eu vou varrendo! vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo...”
Já logo pensei: lê Hanna Arendt mas gosta de pagode. Quem nunca?
Quando fui guardar a vassoura, senti um cheirinho de comida vindo do meu vizinho, bateu fome. Esquentei a comida. Comi, lavei louça, guardei louça. Fui escovar os dentes e, pela primeira vez no dia, olhei-me no espelho.
Por Deus, que cara é essa? Toda inchada, mal dormida, acabada... Resolvi fazer a barba para diminuir a cara de cansaço. Cortei-me várias vezes. Ficou uma coisa meio Fred Krugger. Pensei em colocar uma camiseta listrada pra fazer um cosplay mais apropriado, mas ela estava pra lavar, vou trabalhar com uma lisa mesmo.
Já são quase 13 horas e eu preciso ir para o trabalho.
Desisti de escrever o artigo, por hoje, e resolvi escrever essa crônica. Quem sabe escrevendo sobre qualquer outra coisa eu não me animo de escrever sobre o que eu realmente preciso.
Vocês devem ter percebido que esta crônica não terá revisão – porque não tenho tempo – então perdoem qualquer coisa.
Resolvi postá-la porque, né, não quero sofrer sozinho desse mal.
Aos cúmplices de todas as horas procrastinadas, uni-vos! Estou certo de que não sou único. E nem de que estas foram as últimas horas procrastinadas de minha vida.
nota
NE – Esta crônica foi publicada originalmente no Facebook.
sobre o autor
Felipe Moreira é arquiteto (FAU Mackenzie), mestrando em Habitat na FAU USP e membro da equipe de urbanismo do Instituto Pólis. Foi co-fundador do escritório modelo MoSaIco e trabalhou como consultor desenvolvendo Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS) e de regularização fundiária em diversos municípios do estado de São Paulo.