O presente texto tem como objeto de análise o concurso realizado em 1957 pela Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Nova Capital Federal para a escolha do Plano Piloto de Brasília, do qual saiu vencedor o projeto elaborado pelo urbanista Lucio Costa. Parto da hipótese operatória de que, além da sensibilidade urbanística, técnica ou estética disposta nos dados apresentados pela proposta de número 22, para a inscrição no referido concurso, o que garantiu sua vitória foi a capacidade de persuasão do projeto, expressa em seus esboços, mas, principalmente, em seu relatório justificativo. Seu caráter eminentemente retórico (2) garantiu-lhe a vitória ao definir o horizonte de expectativa mais conveniente para o julgamento dos candidatos (o contexto cultural e econômico que fomentou a construção de Brasília) e mobilizar as atenções da comissão julgadora para os valores éticos, estéticos e principalmente históricos que norteavam a concepção de Lucio Costa para a nova capital do País.
O Relatório Lucio Costa
A fusão, num mesmo campo de experiência, de nacionalismo (inseridas no ideal nacional-desenvolvimentista), modernismo (CIAM) e mecenato estatal (necessidade do Estado para a realização das grandes intervenções urbanas) constituiu a tríade conceitual sob a qual Lucio Costa produziu sua proposta para a nova capital do Brasil na década de 1950. Através dele, seu relatório expressará um desejo de informar e formar o seu auditório (neste caso a comissão julgadora) para que o mesmo se atentasse para este campo de experiência e para o horizonte de expectativa que lhe era devedor.
A historiografia especializada sobre a construção de Brasília situa o concurso para o Plano Piloto da nova capital do Brasil como um evento que primava seu julgamento exclusivamente em função da análise das idéias para a nova cidade. Bruand (3), por exemplo, ao examinar os planos para a nova capital federal e indicar a proximidade da maioria dos inscritos com as propostas modernistas elaboradas pelos CIAM e por Le Corbusier, insiste na idéia de que “a sorte de Lucio Costa (...) foi precisamente ter encontrado jurados de espírito aberto, pouco inclinados a deter-se em detalhes e que estimaram (...) que, nesse estágio, o concurso era, antes de mais nada, um concurso de idéias”. Para Holston (4) “o programa solicitava idéias de ‘design’ e não detalhes organizacionais”.
A origem desse tipo de interpretação sobre o concurso está baseada, segundo penso, num equivoco criado pelo próprio ambiente produzido pela repercussão da decisão do Júri e não dos documentos fornecidos aos concorrentes para o desenvolvimento de seus respectivos planos – basicamente o Edital do Concurso para o Plano Piloto da Nova Capital e a Carta de Esclarecimentos.
É preciso lembrar que o relatório justificativo do projeto era uma das exigências contidas no edital para o Plano Piloto. Além dele, os candidatos poderiam apresentar outros tipos de elementos que possibilitassem uma melhor explicação de suas propostas tais como esquemas cartográficos e de desenvolvimento da cidade, previsões e cálculos das redes de abastecimento, das redes de transporte, do desenvolvimento econômico da região, elementos técnicos para a utilização dos recursos naturais da região, distribuição da população urbana e das zonas de produção agrícola etc. Entretanto em nenhum dos dois documentos fornecidos há qualquer menção sobre os critérios de julgamento. O caráter eminentemente técnico e superficial daqueles dois documentos poderia gerar as mais diferentes interpretações acerca dos critérios de julgamento. Mas, de maneira alguma, que o concurso teria como critério apenas as idéias elaboradas pelos candidatos: os termos idéia, desing, ou qualquer sentido semelhante não são citados em nenhuma parte. Da mesma maneira, em seu enunciado, o referido Edital fixa a perspectiva de que o concurso seria realizado para a escolha do “Plano Piloto da Nova Capital do Brasil”, mesmo que, após a escolha, o “trabalho premiado [e não a idéia premiada] passará a ser propriedade da Cia. Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, (...) podendo dele fazer o uso que achar conveniente” conforme indicado em seu 17º tópico. É apenas a partir da divulgação das observações do júri do concurso que podemos vislumbrar os critérios utilizados para o julgamento (5).
Examinando este documento podemos constatar que, além das qualidades técnicas e urbanísticas do desenho de Lucio Costa, identificadas no início deste trabalho, outras cinco características fazem dele o vencedor: a proposta de cidade, entendida como civitas e não simplesmente como urbs, a forma com que o autor caracteriza e sustenta todo o projeto da cidade a partir de sua identidade fundadora (a capital administrativa do Brasil), a clareza e simplicidade do projeto que o tornava facilmente compreensível, sua atualidade e por último, a força de sua exposição.
Mas a diferença entre o relatório de Lucio Costa e os outros relatórios justificativos está para além dos compromissos formais expostos na ata de julgamento. Foi através de sua capacidade retórica, que o relatório conseguiu galvanizar todos os elementos históricos, estéticos e sócio-econômicos que se encontravam no imaginário sócio-político nacional do período. Um dos membros do júri, sir William Holford (6) revela o impacto que o relatório Lucio Costa causou na comissão julgadora: “Na primeira leitura daquele relatório, percebia-se a presença de um pensador, de um urbanista de primeira ordem. (...) Mesmo para mim, que não sou um scholar em língua portuguesa, a versão original mostrava-se de imediato lírica e impactante”.
Os critérios estabelecidos para o julgamento dos projetos inscritos para o concurso foram divulgados juntamente com o relatório sobre o projeto vencedor do concurso. É somente a partir de sua divulgação que se torna possível vislumbrar explicitamente, a recepção esperada ou construída e que deu a vitória ao projeto de Lucio Costa. Em primeiro lugar, a nova capital federal deveria “expressar a grandeza de uma vontade nacional”, ou seja, deveria incorporar uma determinada idéia de nacionalidade, baseando-se principalmente nas expectativas projetadas para o futuro do Brasil enquanto Nação. Deveria também conter certa especificidade que a destacasse no interior das grandes cidades do período: “diferenciar-se de qualquer cidade de 500.000 habitantes”. Além disso, à nova capital federal era esperada uma ordenação funcional, segundo os princípios modernos do planejamento urbano, girando em torno de quatro aspectos principais: consideração dos dados topográficos; relação entre extensão e densidade demográfica; grau de integração dos elementos; ligação orgânica entre a cidade e os arredores. Era esperado ainda que o projeto contemplado possuísse uma expressão arquitetural própria a partir da relação entre dois aspectos: a composição geral e a expressão específica da sede do Governo. Por último, um importante requisito referia-se à hierarquização das funções dessa cidade. A ata do júri reforça a importância do caráter governamental que deveria assumir o projeto da nova capital, dirigindo e orientando as outras funções (7).
Desses critérios, apenas dois foram relativamente explicitados nos documentos iniciais para a abertura do concurso: sua característica fundadora (sede do Governo Federal) e a consideração dos dados topográficos e de densidade demográfica. Os outros três reforçam a mesma linha de julgamento anteriormente expostas nas considerações do júri sobre o trabalho de Lucio Costa.
Ora, se não existem indícios anteriores ao julgamento sobre os critérios que pesariam sobre a escolha do projeto vencedor, é necessário verificar como estes critérios posteriores nasceram e como foram explicitados pelos outros concorrentes. A análise de alguns dos relatórios apresentados ao concurso pode nos fornecer a resposta a essas perguntas:
a) Relatório para o Plano Piloto da Nova Capital, de Pedro Paulo de Melo Saraiva e Julio José Franco Neves (nº 16):
Duas são as razões que podem ser invocadas para justificar a mudança da capital no Brasil. A primeira é função da necessidade de dinamizar o interior, para ele atraindo a população que se encontra desde seus primeiros tempos, colocada à orla marítima, relegando ao abandono uma imensa vastidão de terras ricas e férteis. A segunda razão é a de estar o atual Distrito Federal, seja por seu clima, seja por seu desordenado crescimento ou pela heterogeneidade de sua composição demográfica, criando condições de vida difíceis para seus habitantes e permitindo um trabalho de baixo rendimento, principalmente aos órgãos governamentais.
b) Relatório do Plano Piloto da Nova Capital, de Carlos Cascaldi, João Vilanova Artigas e equipe (nº 1):
No seu aspecto exógeno, Brasília será a espinha política da Nação. Acima das diferenças regionais e sobrepujando as limitações das áreas de influências econômicas, turísticas ou culturais dos outros centros urbanos do País, a NOVA CAPITAL deverá reorganizar à sua volta toda a rede de comunicações e transporte entre os centros políticos da Nação. Enquanto que o Rio de Janeiro, voltado para o mar, por suas condições de ordem históricas, desenvolveu essa rede na orla oceânica (...) a nova sede do Governo tenderá a estabelecer outro sistema de comunicações, baseando-se em vias aéreas e terrestres. (...) Nação voltada, desde os velhos tempos, para os países de além mar, Brasília deverá criar uma nova orientação do pensamento nacional, agora preocupado mais com o Sertão do que com o Litoral, como deverá representar um esforço de rompimento com as características coloniais da sua economia, elevando as condições de vida da população do interior, criando mercados internos e aproximando pontos externos do País. (...) Deslocar uma capital é reorganizar todo o equilíbrio entre os vários centros urbanos do País.
c) Relatório do Plano Piloto da Nova Capital, de Henrique Mindlin e Giancarlo Palanti (nº 24):
Cumpre salientar que se trata de um grande sonho a caminho da realidade – um dos grandes sonhos de nossa história de povo independente – não cabe, portanto, opor-lhe obstáculos, insistindo em debates de ordem secundária. O que cabe aos realmente interessados na solução do problema é apenas esclarecer todos os seus pormenores, afim de que não só os conceitos fundamentais e planos propostos, como também as responsabilidades de execução se harmonizem, levando o empreendimento à meta desejada.
O que se pretende é, evidentemente, uma cidade modelo que, funcione com amenidade e eficiência e que se caracterize plasticamente como capital político-administrativa de uma grande nação moderna consciente em busca de um destino melhor.
Dos relatórios escolhidos podemos destacar uma série de argumentos utilizados para justificar a necessidade de construção de uma nova capital para o Brasil, assim como a sua função no interior da sociedade brasileira. Dentre eles a necessidade de integração econômica e demográfica nacional, a inexistência de uma infra-estrutura mínima para comportar uma capital moderna no Rio de Janeiro, a necessidade de desenvolvimento econômico das regiões interioranas, a necessidade de construção de uma cidade moderna e cuja identidade seja essencialmente político-administrativa e por último, o argumento determinista e genealógico: a história da Nação. Eles também estão presentes na argumentação do relatório justificativo produzido por Lucio Costa, mas sob um tom completamente diferente. É impossível não notar a estrutura profundamente lírica da narrativa composta por Lucio Costa (8). Para Holston (9), por exemplo, “Costa usa de artifícios retóricos como naturalização, universalização, idealização, reiteração e bricolage para imbuir com um sentido orgânico, lógico, eternamente válido, ideal e mítico a origem de Brasília”. Essa mitificação da origem, entretanto, não me parece ser a essência da composição retórica do relatório de Lucio Costa. Sua força está nos elementos performáticos utilizados para estabelecer os critérios de julgamento de seu projeto. Gumbrecht (10) descobriu que certos tipos de composição retórica têm a capacidade de mobilizar as expectativas dos ouvintes e causar uma mudança na postura do receptor. Foi um tipo de composição retórica semelhante que definiu os critérios de escolha e, portanto, a escolha do projeto nº 22 como vencedor. Nela podemos identificar dois elementos fortemente relacionados: o texto e os desenhos explicativos que o acompanham. De sua relação Lucio Costa esperava criar uma determinada comunidade de interesse (auditório) entre sua perspectiva sobre a nova capital e o olhar da comissão julgadora sobre o seu projeto (11).
Assim, como esboços a primeira vista pouco precisos, esses desenhos devem ser considerados como uma seqüência de pensamento que se desenvolve conjuntivamente, na medida em que a narrativa de Lucio Costa é tecida. São, portanto, componentes fundamentais para se pensar o Plano Lucio Costa como um trabalho que transcende a técnica. Daí o deliberado e intencional caráter de esboço dos quinze desenhos que apresentou: é que um fenômeno fundamentalmente estético não pode estar submetido à razão instrumental – apesar do intenso processo de elaboração e reelaboração pelo qual passou todo o desenho do plano-piloto de Brasília antes de sua apresentação ao júri (12).
Ao apresentar-se como um simples maquisard do urbanismo – um militante engajado em torno de um ideal, tal como o termo sugere – Lucio Costa promove outra partição entre o seu discurso. Através de um auto-elogio explícito, o urbanista declara os interesses que movem o seu trabalho e que, em certo sentido, o diferencia dos concorrentes. É também um auto-elogio porque relaciona um compromisso ético-político, “a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de UMA CERTA DIGNIDADE E NOBREZA DE INTENÇÃO”, com a monumentalidade e dignidade que deveria ser expressa pelo plano piloto da nova capital: “Monumental, não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa” (13). É dessa concepção de cidade – mas também do idealizador da cidade – que literalmente teria surgido aquela idéia “intensamente pensada e refletida”.
Outra grande partição que pode ser observada entre o relatório de Lucio Costa e os outros concorrentes é a forma pragmática que interpreta não somente a intenção da realização daquele concurso, mas também de construção de uma nova capital para o Brasil. Por um lado, o autor inverte o sentido do que, segundo os elementos fornecidos pelo Edital e a Carta de Esclarecimentos, poderia ser tomado como critério de julgamento: ao detalhamento apurado na apresentação dos projetos que poderiam ser utilizados para esconder uma visão frágil sobre a nova capital, seu relatório contrapõe uma ordem pratica interpretando como cerne do concurso “a concepção urbanística da cidade propriamente dita”. Neste caso, a força de sua racionalidade retórica permitiu “passar da adesão – efetiva ou pressuposta – a certas teses, à adesão a outras teses que se trata de promover” (14). Isto porque a concepção de cidade inserida no projeto “não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele; a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região” (15). Por outro lado, seu memorial impôs ao Júri a forma como deveria ser julgado não só o seu trabalho, mas também todos os outros, ao definir o significado da fundação de uma cidade no interior do país: “trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como, no entender de cada concorrente, uma tal cidade deve ser concebida” (16).
É a partir deste ponto, portanto, que Lucio Costa “ganha” o concurso. Mobilizando o contexto histórico-político que envolve o processo de transferência da capital federal, com vistas a sintetizá-lo com a força, dignidade e beleza plástica que era necessária à fundação de uma cidade no interior de uma vasta planície semi-explorada. Daí a recorrência ao gesto desbravador de tomar posse do território. Ao referir-se ao espírito da tradição colonial de desbravamento do sertão à caça das riquezas ali escondidas, o autor procura relacionar presente e passado, valorizando-o, através de uma comunhão de pensamento, ação e sentido. Nesse sentido, a retórica de Lucio Costa procura instituir uma nova relação entre passado e presente, tratando-os como se fosse um só, e articulando-os dentro de uma mesma experiência de tempo.
Por último, é preciso destacar as referências implícitas e explícitas de seu relatório, que funcionaram como âncoras de sua composição narrativa. Elas estão reunidas em três núcleos elementares. Primeiro, sua relação com a proposta desenvolvimentista estatal, através da sistemática alusão à indústria automobilística – uma das vitrines do processo de industrialização estabelecido como uma das metas do programa de governo de Kubtscheck – e ao automóvel. Neste caso, além de ser uma capital planejada para o automóvel particular (há apenas uma breve menção ao transporte coletivo) é também para a família que tenha poder aquisitivo suficiente para adquiri-lo: “não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família” (17). Em segundo lugar, a associação de seu projeto às principais composições urbanísticas internacionais: “O Mall dos ingleses”, o Picadilly Circus, o Times Square, o Champs Elyséses, as vielas venezianas – além de uma referência nacional recorrente no imaginário social brasileiro: a rua do Ouvidor. Essa associação era facilmente realizável em função do grau de imaginabilidade que existe no projeto e correspondia ainda às expectativas de uma comissão julgadora consciente do valor cultural de cada uma daquelas realizações (18).
Finalmente, a reafirmação da história como princípio motor do ideal nacionalista de construção de uma nova capital no interior do País foi uma estratégia decisiva que garantiu a vitória de Lucio Costa. Essa associação era realizada através da insistência na localização temporal da origem da idéia de transferência da capital, via mitificação de determinadas representações sócio-políticas (José Bonifácio e o processo de expansão territorial realizado pelo movimento bandeirante). Esta talvez seja a principal âncora de sua composição retórica, visto que é utilizada como epígrafe, no início de seu relatório, e como oração-síntese de encerramento: “Brasília, capital aérea e rodoviária, cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca” (19). Nesse sentido, o argumento genealógico foi aprofundado ao recorrer a um tipo de relação causal com a intenção de conformar o passado com o presente, justificando as prerrogativas modernas – capital aérea e rodoviária – da nova capital e o contexto histórico-ideológico que cerca seu nascimento (20), garantindo assim, a vitória de sua proposta.
Considerações finais
Indícios acerca dos elementos obscuros do concurso para a escolha do Plano Piloto de Brasília, não faltam a quem se dispõe a investigar o tema, conforme demonstrou Tavares (21). Estes elementos, sem dúvida alguma, colocam em dúvida a legitimidade da escolha feita pela comissão julgadora daquele concurso e, portanto, sobre os próprios critérios adotados para aquela tomada de decisão. Entretanto, ao invés de reforçar essa estrutura de análise baseada numa desconfiança indiciária, procurei, ao longo deste texto, reconstruir, através das fontes históricas produzidas ao logo do processo de julgamento dos projetos, um critério de julgamento que, apesar de não ter sido explicitado pela comissão julgadora, parece ter tido um peso decisivo em sua escolha.
O conceito de legibilidade, criado por Kevin Lynch (22) para definir a qualidade essencial que possui uma composição urbana, ou seja, “a facilidade com que as várias partes da cidade podem ser visualmente apreendidas, reconhecias e organizadas segundo um esquema coerente” e de imaginabilidade, definida como a qualidade de um objeto físico que “lhe dá uma grande probabilidade de evocar uma imagem forte num dado observador” (23), quando pensado em função dos desenhos desenvolvidos por Lucio Costa nos dá uma primeira noção da força evocativa de seu projeto.
Este, entretanto, foi apenas um dos instrumentos utilizados pelo urbanista para mobilizar o horizonte de expectativa de seu auditório. Na retórica de Lucio Costa existe uma proposta de fusão entre o passado e o presente, muito próxima daquela que o próprio Kubistschek realizada em seus discursos defendendo a necessidade de mudança da capital (24). O exemplo mais claro disso se encontra no culto à figura de José Bonifácio de Andrada. Ao evocar o patriarca da independência como ícone de sua proposta, Lucio Costa procura trazer para o presente aquela autoridade do passado, sob a forma de um dos mais célebres defensores do estado brasileiro e da própria transferência da capital. Na frase de encerramento de seu memorial, “BRASÍLIA: Capital aérea e rodoviária, Cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca” (25), estão sintetizados os principais conceitos que indicam essa fusão de horizontes. Passado, presente e futuro estão dispostos dentro de um mesmo universo argumentativo. À referência ao forte processo de industrialização por que passava o País (duas referências que estavam diretamente relacionadas ao presidente, a indústria automobilística e o transporte aéreo que fascinava o presidente e garantiu não só as constantes visitas de Juscelino a Brasília, quando ainda despachava no Catete, como também permitiu o acompanhamento das obras da nova capital através da aquisição de um helicóptero) impõe-se a atualização de uma esperança coletiva, da Nação.
Lucio Costa conseguiu, assim, representar, transmitir, persuadir e, o mais importante, mobilizar todo o campo de experiência do presente (modernismo, desenvolvimentismo, nacionalismo e centralismo político), convencendo jurados e o próprio presidente da república, de que a sua proposta era a única possível de representar o momento histórico pelo qual passava o País. Levando-o, portanto, à vitória.
notas
1
Este texto é uma versão resumida e adaptada do capítulo 6 de minha tese de doutorado, defendida junto ao PPGH-UFMG, intitulada “Projeções Urbanas: um estudo sobre as formas de mobilização do tempo na construção das cidades de Belo Horizonte, Goiânia e Brasília”, em 2008.
2
O conceito de retórica aqui desenvolvido procura articular o caráter orientador e autocompreensivo de seu estatuto narrativo (CARR, D. Time, narrative, and history. Indiana, EUA: Indiana University Press, 1991) aos modelos de argumentação que tem como objetivo gerar consenso. Neste caso, o conceito de retórica expressa um tipo de racionalidade que se manifesta “na deliberação e na argumentação; não vincula verdades intemporais umas às outras, mas permite passar da adesão – efetiva ou pressuposta – a certas teses, à adesão a outras teses que se trata de promover” (PESSANHA, “Teoria da argumentação ou a nova retórica”. In: CARVALHO, M. C. M. Paradigmas filosóficos da atualidade. Campinas, SP: Papirus, 1989). Ela deve ser situada como um dos elementos produtores da realidade, através de seu elemento performativo. (GANTUS, M. J. “História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares”. In.: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, nº 50. Fereveiro, 2005).
3
BRUAND, Y. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981, p.360.
4
HOLSTON, J. A cidade modernista: uma crítica a Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 69.
5
Nº 22: Resume: Assumption: A “civitas” not an “urbs” (…). Advantages: 1 – The only plan that is for an administrative capital for Brazil. 2 – The elements of the plan can be seen at once: it is clear, direct and fundamemntally simple, eg. Pompei, Nancy, Wren’s London, Louis XV Paris. (…) 5 – One center leads to another so that the plan can be easily comprehended. (…) 8 – The embassies are well placed, in a changing landscape setting. (…) One must proceed from the general to the particular, nor vice versa. The general can be exprewssed simply and shortly; but it is easier to write a long leter than a shorter one. Here we have many projects which could be described as over statements, nº 22, by contrary, as an understatement. But in fact it explain all one needs know at this stage; and omits everything irrelevant. REVISTA MÓDULO. nº 8, Julho de 1957, p. 22.
6
HOLSTON, J., Op. Cit., p. 70.
7
COSTA, L. Relatório do Plano Piloto de Brasília. (mimeo.) 1957, p. 01.
8
”José Bonifácio, em 1823, propõe a transferência da Capital para Goiás e sugere o nome de BRASÍLIA. Desejo inicialmente desculpar-me perante a direção da Companhia Urbanizadora e a Comissão Julgadora do concurso pela apresentação do partido aqui sugerido para a nova capital, e também justificar-me. Não pretendia competir e, na verdade não concorro — apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta. Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples maquisard do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento da idéia apresentada senão eventualmente, na qualidade de mero consultor. E se procedo assim, candidamente é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório: se a sugestão é válida, estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que apesar da espontaneidade original, ela foi intensamente pensada e resolvida; se não o é, a exclusão se fará mais facilmente, e não terei perdido o meu tempo nem tomado o tempo de ninguém. A liberação do acesso ao concurso reduziu de certo modo a consulta àquilo que de fato importa, ou seja, a concepção urbanística da cidade propriamente dita, porque esta não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como no entender de cada concorrente uma tal cidade deve ser concebida. Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. E, para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de certa dignidade e nobreza de intenção, porquanto dessa atitude fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o desejável caráter monumental. Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa. (...) Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca. COSTA, L. Idem Ibidem.
9
HOLSTON, J., Op. Cit., p. 81.
10
GUMBRECHT, H. U. As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
11
É esse, segundo Perelman, o fundamento da racionalidade argumentativa: “Para que a argumentação retórica possa desenvolver-se é preciso que o orador dê valor à adesão alheia e que aquele que fala tenha a atenção daqueles a quem se dirige: é preciso que aquele que desenvolve sua tese e aquele a quem quer conquistar já formem uma comunidade, e isso pelo próprio fato do compromisso das mentes em interessar-se pelo mesmo problema”. PERELMAN, C. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004 p.70.
12
BARKI, J. “A invenção de Brasília: o ‘risco’ Lúcio Costa”, in.: Anais do X Encontro Nacional da ANPUR. Belo Horizonte: ANPUR, 2003.
13
COSTA, L., Op. Cit., p.03.
14
PERELMAN, C., Op. Cit., p.70.
15
COSTA, L., Op. Cit., p. 02.
16
Idem, ibidem, p. 02.
17
Idem, ibidem, p. 24.
18
BICCA, “Brasília: mitos e realidades”, in.: PAVIANI, A. Brasília: ideologia e realidade, espaço urbano em questão. São Paulo: Projeto,1985.
19
COSTA, L., Op. Cit., p.24.
20
O próprio presidente declararia anos depois essa sintonia de intenções com o projeto de Lucio Costa: “Suas idéias coincidiam, exatamente, com o que eu sentia em relação ao problema.” KUBITSCHECK, J. Porque construí Brasília. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1975, p.63.
21
TAVARES, J. “50 anos do concurso para Brasília – um breve histórico”. In. Arquitextos. www.vitruvius.com.br. Acessado em 06 de abril de 2008.
22
LYNCH, K. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1980, p.13.
23
Idem, ibidem, p.20.
24
ARRAIS, C. P. A. Projeções urbanas: um estudo sobre as formas de mobilização do tempo histórico na construção de Belo Horizonte, Goiânia e Brasília. (Tese de doutorado). Belo Horizonte: UFMG, 2008.
25
COSTA, L., Op. Cit., p. 11.
referências bibliográficas
CARPINTERO, A. C. C. Brasília: prática e teoria urbanística no Brasil: 1956-1998. (Tese de Doutorado). São Paulo: USP, 1998.
CASCALDI, C. ARTIAGAS, J. V. Plano Piloto da Nova Capital Federal. (mimeo.), 1957.
MINDLIN, H. PALANTI, G. Brasília - Plano Piloto. (mimeo.) 1957.
SARAIVA, P. P. M. NEVES, J. J. Plano Piloto da Nova Capital. (Mimeo.), 1957.
SKINNER, Quentin. Fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ZAPATEL, J. “A. Regardin the superquadra: na interview with Lucio Costa”. In.: EL-DAHADAH, F. Lucio Costa: Brasilia superquadra. Nova Iorque, Harvard Design School – Prestel, 2005.
sobre o autor
Cristiano Alencar Arrais é professor de Teoria e Metodologia da História da UFG – Campus Catalão.