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architexts ISSN 1809-6298


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Alexandre Emilio Lipai e Ana Elena Salvi, discutem a relação entre cinema e arquitetura a partir da análise da filmografia de Ugo Giorgetti, que tem como cenário a cidade de São Paulo, explorando as representações ficcionais da metrópole paulistana


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LIPAI, Alexandre Emílio; SALVI, Ana Elena. A cidade de São Paulo e o imaginário urbano: ficção e realidade no cinema de Ugo Giorgetti. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 098.02, Vitruvius, jul. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.098/125>.

“Meu principal objetivo era realizar um filme em um espaço no qual ninguém desejasse estar. Nenhuma pessoa, ali queria nada com a outra, todas viviam em mundos completamente diferentes. É o que acontece na cidade...” (Ugo Giorgetti, filme “Sábado”, 1995) (2)

Ficção e Realidade: a linha tênue entre Memória e Imaginário

O foco da análise do fenômeno metropolitano que se pretende discutir requer, em sua essência, a transdisciplinaridade. O cinema, por sua especificidade, permite múltiplos olhares e pode oferecer para a pesquisa nas áreas de ciências humanas e sociais uma contribuição importante ao universo da Arquitetura e do Urbanismo.

Há mais de um século, o cinema descobriu sua vocação de não ser apenas uma arte para distrair as massas, porém e, principalmente, uma arte para difundir idéias, induzir novos comportamentos e provocar desejos de novos estilos de vida. O mundo inteiro começou a fumar em larga escala quando viu seus ídolos favoritos fazendo isso na tela!  Talvez, possamos considerar este fato como uma das primeiras manifestações do poder do cinema como estratégia de dominação do planeta.

Cinema, arquitetura e cidade mantêm caminhos que se entrecruzam desde as primeiras décadas do século 20. Ora a cidade real fornece elementos espaciais e imagens para simulações em cenários realizados para o cinema; ora este passa a ser o laboratório experimental e espacial para a arquitetura que se construirá posteriormente, como é o caso do cinema expressionista da Alemanha no primeiro pós-guerra. Habilitadas desde então para servir de suporte ao drama íntimo dos personagens urbanos, arquitetura e cidade transformam-se, principalmente a partir dos anos 1980, em personagens reais e fundamentais para muitas narrações cinematográficas de ficção. “A bem da verdade, quando se fala sobre personagens de ficção, pode-se usar uma linguagem que seria mais perigosa se utilizada sobre figuras reais (ficando para nossos próprios contemporâneos a ocasião de reverter o processo e argumentar - ou descobrir – que falar sobre personagens reais e situações históricas, de qualquer maneira, não é muito diferente do que falar sobre personagens fictícias)”.(3)

As possibilidades que o cinema propõe de compressão, expansão e ritmo do tempo não são imitáveis no espaço concreto da arquitetura ou da cidade, mas a experiência cinematográfica pode ser considerada similar à experiência mental do indivíduo, em que espaço e tempo não têm dimensões físicas determinadas. Os filmes, como experiências físico-sensoriais, estimulam e alimentam nossa memória que pode ser definida como uma parte do corpo que armazena recordações dos sentidos.

O imaginário em cada um de nós atua com características semelhantes à estruturação de um filme, construindo qualidade e dimensões próprias sobre os objetos e elementos que nos cercam, no qual o “tempo” ganha a maleabilidade de alternâncias e a velocidade de mudanças.

A obra cinematográfica envolve e atua de fato como um instrumento catártico na criação espontânea do imaginário do espectador o que explica a incontestável empatia que a maioria das pessoas têm com o cinema.

O ‘tempo’, na realidade da arquitetura e na ‘ficção’ do cinema, configura diferenças estruturais básicas no modo de atuar do arquiteto e do cineasta. Para o arquiteto a dimensão tempo é linear e rígida, enquanto para o cineasta, o tempo é ágil e proporciona flexibilidade para experimentar facilmente mudanças do passado para o futuro, ou vice-versa.

Uma investigação mais atenta destes fenômenos na pesquisa contemporânea brasileira encontra uma importante fonte de referência na filmografía do cineasta paulista Ugo Giorgetti. O cineasta utiliza a metrópole de São Paulo como palco de sua dramaturgia, e concentra seu cinema-síntese sobre temas que envolvem a ficção e a realidade do habitante na vida urbana. Sua crítica mordaz encontra na ironia seu espaço mais confortável como uma de suas características de linguagem influenciada pelo cinema europeu, em especial pela obra do cienasta italiano Dino Risi.

Assim ‘Ficção e Realidade’ são construídas por Ugo Giorgetti tecendo uma visão crítica e histórico-cultural do imaginário da cidade “paulistana”. Os documentários: “Campos Elíseos” (1973), “Edifício Martinelli” (1975), “Uma outra cidade” (2000) e “Pizza” (2005) que antes de se tornarem testemunhos de importância histórica para a memória da cidade de São Paulo, são fontes permanentes de inspiração para seus próprios filmes de ficção.

Campos Elíseos, de 1973, retrata as transformações ocorridas desde que se tornou “o primeiro bairro elegante e exclusivamente residencial de São Paulo” até a sua triste decadência quando se fica conhecido como “boca do lixo”. Outro retrato decadente de um ícone da cidade foi registrado no documentário “Edifício Martinelli”, com a retirada de seus ocupantes na gestão do então prefeito Olavo Setúbal para, após reforma, servir de sede de órgãos da administração municipal e que posteriormente inspira o filme “Sábado” (1994-95). “Uma outra cidade” (2000), documentário produzido para a TV-Cultura, reúne memórias de lugares e fatos documentais através das visões poéticas de Cláudio Willer, Jorge Mautner, Roberto Piva, Rodrigo de Haro e Antonio de Franceschi, provável inspiração do filme O Príncipe (2002) em que a perda da memória e identidade, de lugares que sofrem transformações físicas, se refletem na perda de identidade de seus habitantes, no jogo do poder que transforma objetos e pessoas em mercadorias e principalmente os sonhos, os ideais, as amizades traduzidas por frustrações e conformismos.

A Transgressão na construção da cidade e de sua História

Um bom exemplo desta ponte entre realidade e ficção ocorre entre o documentário “Edifício Martinelli” (1975) e o filme Sábado (1994-95) no qual realismo e ficção confundem-se de forma ímpar ao abordar temas como memória, tradição, conflito social, transgressão de normas de construção e utilização do espaço público ou privado, que historicamente materializam grande parte da cidade.

O edifício Martinelli é o primeiro arranha-céu da cidade de São Paulo, considerado o mais alto da América Latina, na época de sua construção, década de 1920. O imigrante italiano Giuseppe Martinelli, entusiasmado pela possibilidade de projeção pessoal e pelo poder simbólico do arranha-céu, construiu vários andares sem um projeto aprovado pela prefeitura (4). Esse edifício, referência histórica construída a partir da “transgressão”, marcou a mudança do modelo europeu de arquitetura e de urbanismo para o norte-americano.

Ugo Giorgetti trata com maestria a dimensão do tempo que tudo corrói: explora e confronta a arquitetura e as sociedades urbanas que, no plano ficcional da memória e do imaginário, apresentam situações que expõem os embates das principais forças sociais na metrópole de São Paulo. Inspirado pela realidade observada no edifício Martinelli, cria a ficção “Sábado” (1994-95), no qual o passado glamouroso do imponente edifício “Argentelli” localizado no centro antigo da cidade, ambos já decadentes, estabelecem o suporte para a narrativa. Nesse filme, introduz personagens de uma equipe de produção e filmagem. Em um sábado, rodam um anúncio publicitário no saguão do referido edifício, com o intuito de aproveitar um antigo elevador que oferecia um toque sofisticado ao produto a ser lançado. Giorgetti argumenta que a cidade se constrói pelos detalhes e neste filme, com poucos elementos do roteiro, dispõe-se a discorrer sobre temas como: Memória e Patrimônio – mobilidade social,  esvaziamento da vida dos grandes centros históricos em metrópoles - medo das pessoas de irem ao centro decadente criado por preconceito e diferenças de classes sociais - situações de convivência forçada entre indivíduos de diferentes níveis sociais que adaptam seu espaço pessoal para evitar os espaços indesejáveis frente ao dos outros indivíduos - espaços de confinamento, tal como ocorre em um elevador antigo que se quebra no filme Sábado. A espera de que alguém o conserte deixa muito clara a fragilidade do habitante de classe média que aguarda pacientemente por tudo, na ilusão e confiança de que os problemas serão solucionados, quase magicamente, pela Tecnologia! Um tema simples, mas denso ao reproduzir, na ficção, uma hipótese de microcosmo social presente em quase todas as situações de relacionamento nas cidades, além da vulnerabilidade dos habitantes nos espaços de qualquer metrópole.

Tudo indica que o Edifício Martinelli pode ser considerado emblemático da forma de produção do espaço a partir de uma cultura da transgressão. Não faltam exemplos na cidade de São Paulo.

Mobilidade Social, “vazios urbanos” e decadência

Em meus filmes está sempre presente o universo do jogo”. Ugo Giorgetti (5)

Os espaços centrais de São Paulo possuem semelhanças em suas histórias de ocupação e mobilidade social. O centro historicamente consolidado é ocupado por uma elite dominante que se inspirou em princípio no modelo europeu. Passou a reproduzi-lo em outros pontos da cidade e para estes se desloca quando se viu pressionada pelo dinamismo do modelo norte-americano cujo ícone de referência é o arranha-céu que implanta símbolos de progresso e desenvolvimento. O início destes deslocamentos na cidade de São Paulo ocorreu com a criação do “primeiro bairro elegante e exclusivamente residencial” de São Paulo: Campos Elíseos, oriundo de Champs Elyseés!  A vocação habitacional do centro abandonada pela elite provocou grande transformação dessa área ao substituir e/ou acentuar usos de serviços e a criação de centros financeiros que, em um segundo momento, também se deslocam determinando sua ulterior deterioração e decadência.

Iniciou-se, assim, o processo de criação de “vazios urbanos” no momento em que a elite se retirou por completo do centro e de Campos Elíseos, sendo substituída por outras classes sociais menos influentes (Campos Elíseos, 1973). Esses “vazios” apresentam diversas formas de desocupação de espaços urbanos: edifícios vagos e sem uso, terrenos cujos imóveis foram demolidos para serem transformados em estacionamentos enquanto esperam a valorização de um empreendimento imobiliário ou simplesmente terrenos vagos.

A diversidade de culturas miscigenadas na história da cidade a fez cosmopolita tanto nos usos e costumes quanto na configuração espacial e na arquitetura. O fenômeno da mobilidade resultou para Ugo Giorgetti em três personagens centrais do filme “Jogo Duro” (1985) em que uma residência de luxo abandonada, no bairro Pacaembu, é ocupada por habitantes marginalizados - um vigia de rua, uma mulher com a filha sem ter onde morar e um desocupado contratado temporariamente por um corretor imobiliário para tentar vender uma das inúmeras mansões vazias. No momento crítico do filme uma importante disputa de decisão de campeonato entre equipes de futebol ocorre no estádio Paulo Machado de Carvalho (o Pacaembu), concomitante a uma grande disputa de posse de uma mesma mulher, em uma das mansões abandonadas. Em ambas as situações: um duro jogo (o do futebol e o da vida). O Pacaembu foi observado em sua realidade, pelo cineasta, como “um bairro que parece estar sempre à venda” e o discurso imobiliário de comercialização e venda da cidade em todos os seus níveis fica intensificado pelas circunstâncias criadas no filme, que pretende vender espaços da cidade alimentados pela ilusão do sonho de inclusão, mas que em sua essência é vazio.

Giorgetti torna a ficção e a realidade tão próximas, quase impossíveis de se desligarem ao conferir o que ele denomina: todo filme deve ter um endereço. Sua postura crítica está presente no seu olhar e é uma das características constantes em seu trabalho. Ao escolher e manter referências reais de lugares e de personagens da cidade para nomear a ficção, possibilita um futuro registro documental de transformação da área da cidade!

Eterna espera: a promessa (impossível) de Inclusão

A promessa alimenta o desejo e o desejo move o mundo! O american way of life como instrumento da ideologia capitalista adquiriu características que enfatizam diferenças, distanciam desejos, criam a consciência cada vez mais presente no mundo todo: a da exclusão, alimentada pela mídia com uma promessa, impossível, de inclusão! Esta parece ser a equação que institui o conflito e o desequilíbrio de classes sociais e que alcançam graus preocupantes no que se refere à qualidade de vida nas metrópoles.

O tema da exclusão social com a promessa de inclusão é tratado por Ugo Giorgetti no filme Festa, 1989. O cineasta coloca-se em uma posição na qual a análise e a tomada de partido são deixadas para o espectador a partir de reflexões apresentadas sobre formas de organização da sociedade contemporânea. O melhor momento de discussão deste tema é colocado com sutileza a partir da reprodução de um microcosmo social “global” (entenda-se Rede Globo). No filme, um grupo de personagens: um músico, dois jogadores de sinuca e um famoso ator de televisão “global” são  contratados para entreter os convidados em uma festa promovida por alguém da elite,  em uma residência de luxo situada em um bairro nobre de São Paulo, cujo endereço não mencionado, é sugerido ao imaginário do espectador.

Um único cenário: um fragmento da luxuosa mansão reproduz o salão de jogos no piso inferior; dois acessos - um para um jardim, vislumbrado a partir da porta aberta do salão, e uma escada que conduz ao piso superior onde acontece a festa. Esta escada simboliza para todos, incluindo o espectador, a promessa de participar da animada festa.

O único personagem que exerce admiração e poder sobre todos os demais do grupo é o famoso ator que representa o “mito da celebridade”, personagem emblemático do mundo contemporâneo.  É conduzido sem demoras e festejado ao entrar no recinto da festa, enquanto todos permanecem à espera no salão de jogos no piso inferior, incluindo o espectador.  Ugo Giorgetti insinua a promessa de inclusão fazendo surgir a crença de que a condição de espectador criará uma exceção, mas, o cineasta não faz essa concessão e nem esse é incluído na Festa!

Perda da memória e “pasteurização da imagem da cidade”

O Príncipe (2002) também pode ter começado com aquela sensação de que era necessário fazer um balanço sobre aquilo em que nos transformamos.” Ugo Giorgetti (6)

Em princípio, as metrópoles em qualquer que seja sua geografia no mundo, iniciam um processo de perda de caracterização cultural própria por um lado e ganho, por outro, de características semelhantes. É o que podemos denominar de “pasteurização da imagem da cidade”. Quadras inteiras que darão lugar a novos edifícios produzidos por interesse de construtores que em geral assumem a figura abstrata do incorporador imobiliário deixam uma sensação de vazio que não é físico, porém emocional. É um dos aspectos tratados intensamente no filme por meio do personagem apelidado de “príncipe” pelos antigos amigos da universidade, e que ausente por muito tempo no exterior (Paris), retorna a São Paulo e não encontra mais os lugares tão familiares onde viveu. Os amigos transformaram-se, assim como os espaços da cidade com os quais se identificava. Encontra na verdade “uma outra cidade”. (7)

O fenômeno da perda de memória que se traduz para o habitante de qualquer metrópole em nostalgia, tristeza, decepção e um profundo vazio da alma foi apresentado por cineastas de diferentes culturas, em momentos cronologicamente distintos: Jacques Tati (Playtime, 1967), Win Wenders (Asas do Desejo, 1987), Sadek Djermoune (Chacun cherche son Chat, 1998). Playtime (1967) pode ser considerado uma representação emblemática deste fenômeno no cinema de Jaques Tati como crítica ao modernismo originado na Bauhaus, Le Corbusier e Mies van der Rohe. Os espaços urbanos modernos materializaram-se por uma rígida ortogonalidade da geometria espacial na forma dos edifícios e na presença contínua do aço e do vidro como matéria construtiva. “Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. É também inimigo da propriedade”. (8).

Na sociedade de massas o homem individual é um ser invisível, mas a massa não! Fica claro no filme de Tati o modo como essa arquitetura torna a massa visível, obstruindo hegemonicamente qualquer vestígio da cultura do lugar (Paris). O consumismo desenfreado que não se interessa pela “especificidade do lugar” exclui deliberadamente a fruição da Arquitetura como uma experiência estética. O interesse é, sim, pela posse do objeto desejado que é independente deste e o extenso ritual de atividades humanas mecanizadas, ocorre em qualquer local definido pelo antropólogo Marc Augé como um “não-lugar” (9). Giorgetti, em quase todos seus filmes, constrói o espaço com fragmentos-síntese de cenários que operam como fortes estímulos ao imaginário do espectador, e não necessita, em sua maior parte, de montagens complexas como foram as deTati. “O Príncipe” busca nos espaços da cidade-laboratório-real a matéria-prima com que constrói sua narrativa.

Apesar do cuidado com todos os detalhes da produção a maior força do cinema de Giorgetti reside nos diálogos construídos com o rigor de um artesão que brotam de sua observação atenta da realidade da cidade.

O aumento gradual da banalização da violência urbana que descobre uma forma de sublimar o horror quotidiano transformando-o em “obras de arte”; o futuro promissor e idealizado que não se cumpriu em cada um dos amigos, – as relações de intercâmbio contemporâneas referenciadas à cultura que adquiriu seu status máximo de mercadoria, de produto que se negocia politicamente com as palavras do momento: “evento” e “empreendedor cultural”, – são algumas das questões principais discutidas pelo cineasta que destaca pontos para reflexão, caminhos aparentemente “sem saída” para alguns, saídas radicais para poucos e conformistas para muitos.

Uma nova cultura?

…“Eu gosto de olhar as coisas. Não passo pela cidade com indiferença, infelizmente.” Ugo Giorgetti (10)

Ugo Giorgetti empresta da cultura gastronômica quotidiana um dos pratos mais popularizados: a pizza. E investiga tudo sobre a rotina de sua produção e consumo: onde é realizada, quem a elabora, como é feita, quanto custa, quem a entrega e a consome. Sua câmera precisa, ao percorrer os diferentes espaços da cidade, disseca as variadas características ambientais da metrópole: do centro à periferia, de norte a sul, leste a oeste, apresenta imagens contundentes. Aparecem as formas indistintas, os espaços produzidos por todo tipo de transgressão, os guetos, as entranhas e a descrição do interior das pizzarias: sua relação com o espaço do bairro, sua história e seus habitantes.

O olhar contemporâneo de Pizza (2005) explica características contraditórias da identidade cultural da metrópole de São Paulo que, a partir da imigração italiana presente no documentário “Edifício Martinelli”, encerra o ciclo antropofágico que essa imigração teve na cidade e ajudou a criar uma nova cultura, híbrida e pasteurizada, em seus diferentes campos de expressão.

Nesse percurso Ugo Giorgetti articula o global e o particular: todos comem pizza, desde os presos de uma penitenciária até o próprio espectador. A homogeneização do consumo articula-se e dialoga com os hábitos específicos e tradicionais de cada local em que a pizzaria funciona. “O capitalismo padroniza os indivíduos, reduzindo o singular ao universal, mas simultaneamente vende a cada indivíduo a ilusão narcisista de que sua singularidade é universal.” (11).

A “tradição do fazer” segue caminhos diversos que vão desde a preservação irrestrita às origens (no bairro Brás, e algumas pizzarias na zona oeste) como as variações mais extravagantes surgidas da invenção de pizzaiolos que por sua vez também foram inventados pela metrópole. O pizzaiolo é alguém proveniente do nordeste, que chegou jovem a São Paulo. Nunca havia comido uma pizza em sua terra natal. Aqui, além de experimentá-la e de ter gostado, aprende a prepará-la com eficiência. A mesa de preparo transforma-se em um laboratório de experimentos, quase alquímicos, em que o resultado é a pizza com cobertura de tudo! Em Heliópolis, uma das maiores ‘favelas’ da cidade de São Paulo, construída a partir da invasão de áreas ribeirinhas ao Rio Tamanduateí, na periferia violenta do Jardim Ângela, ou  no Edifício Copan, um marco moderno e metropolitano de Oscar Niemeyer, ocorre o processo de antropofagia e miscigenação cultural da qual a cidade se alimenta.

Cada modo de produção da pizza se diferencia com o tipo de ocupação física e social, ao incorporar não somente alteração nos sabores, mas nos serviços de apoio que se oferecem como características da metrópole.  A presença emblemática da hostess que recebe os clientes é sinal de serviço altamente modernizado e como diz Adorno, “da mesma forma que esta, na realidade, não cuida de nada, não dispõe de nenhum poder para reunir as funções separadas e desprovidas de sentimento, mas limita-se aos gestos de boas-vindas vazios e, quando muito, ao controle de empregados, (...). Sua verdadeira finalidade é zelar para que o cliente que está entrando não escolha sequer, ele mesmo, a mesa, onde se aciona sobre ele a empresa.”. (12)

Histórias instigantes são apresentadas pelos entregadores de pizza. O feliz, o infeliz, o expansivo, o depressivo, o aproveitador da vida e a vítima de si mesmo são alguns dos dramas que acometem essas figuras e que ao percorrerem as ruas, desenham as tipologias urbanas: os bairros-jardins, os labirintos escuros das ‘favelas’, as grandes vias de circulação que podem abrigar as prisões, o centro da cidade, o edifício moderno.

Conclusão

“Há muito tempo eu queria falar sobre a amizade (...) da qual é impossível libertar-se mesmo que você não tenha visto esse amigo há muito tempo.” Ugo Giorgetti (13)

A cidade de São Paulo apresenta diversos padrões que inspiraram os modelos dos espaços em busca de uma identidade que ao final é indefinida. Iniciou pela arquitetura colonial portuguesa, continuou pelo ecletismo das contribuições dos imigrantes de diferentes culturas: italianos, espanhóis, judeus, árabes, alemães, japoneses, entre outros e ajustou assim o modelo europeu (em especial o francês de Haussmann e o inglês das cidades-jardim).

Recebeu os “novos ares do modernismo” de Walter Gropius, Mies van der Rohe e Le Corbusier, com a criatividade de adaptá-los a questões de clima e economia. Filmes como “Sábado”, “Jogo Duro“ e “O Príncipe”mostram, de forma simples, a complexidade das relações humanas com os espaços da cidade paulistana. Uma cidade relacional, como diz Paganelli (14), realizada por infinitos momentos e situações representadas pela arquitetura  construída para e por seus habitantes. Os tempos de glória e beleza do centro se dissipam, os espaços vazios deixados pela elite são ocupados por diferentes classes sociais, entre estas um grande contingente de habitantes que constituem “um imenso Brasil subterrâneo e obscuro que está em toda parte”, como diz um personagem (O Príncipe, 2002). Esses habitantes, sem voz nas decisões das políticas públicas urbanas, vivem em espaços regidos pela transgressão enquanto outros vivem a metáfora de quem participa da grande festa que é a metrópole.

A pizza é democrática e Ugo Giorgetti nos mostra que a sociedade de massa é a organização social dessa metrópole.  O que não se pode dizer é o mesmo para o consumo da arte ou da cultura. A pizza pode ser entregue em qualquer canto da metrópole. Para a cultura, é necessário que o espectador se desloque pela cidade. E aí a impossibilidade de acesso físico e cultural a ela. Em “Jogo Duro”, “Festa”, “Sábado”, “O Príncipe” e “Pizza” não há essa mobilidade das pessoas, somente da mercadoria como uma regra do complexo jogo.

A pizza, no olhar de Giorgetti, representa o objeto-alimento de socialização e do prazer do encontro com a tradição, invenção da cultura e seus infinitos sabores. Semelhante função tem o seu cinema que além do olhar histórico-crítico se vale de todos os recursos que lhe são essência, mas que antes de tudo significam uma arte feita tanto para distrair quanto para refletir.

O percurso realizado pela filmografia de Giorgetti mostrou diferenças e semelhanças de pontos de vista do cineasta e dos arquitetos e urbanistas sobre São Paulo, uma cidade aparentemente igual a tantas outras. Basta aprofundar um pouco o contato com seu espaço e seus habitantes para perceber que é uma metrópole peculiar. Sua personalidade é cosmopolita, qualidade que a faz compensar certa “feiúra” de sua arquitetura disforme, o “cinza” predominante de sua cor, o “caos que está sempre presente onde sua essência é a desordem” no quotidiano de suas relações, conclui Giorgetti.

Para Ugo Giorgetti o roteiro de um filme representa “o sonho intacto” (15) (...) enquanto ainda está no papel. O mesmo fenômeno ocorre aos arquitetos e urbanistas com um projeto ainda não construído. Cinema e arquitetura têm sua origem em uma produção coletiva que pressupõe opiniões e decisões de um grupo de profissionais muito envolvidos não permitindo que decisões individuais sejam tomadas solitariamente sem compartilhar e confiar no grupo, com risco de fracasso.

Essas relações do fazer coletivo apresentam-se difusas para arquitetos e urbanistas, pois temos muito que aprender com o cinema!

notas

1
Texto apresentado pelos autores como comunicação oral nas IX Jornadas de Imaginários Urbanos promovida pela FADU-Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo / Universidad de Buenos Aires-UBA , Argentina,  maio 2007.


2

Ugo Giorgetti em entrevista a Rosane Pavam, comentando as razões de ter realizado o filme de ficção: Sábado 1995. PAVAM, Rosane. Ugo Giorgetti: o sonho intacto. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p.141. Participou como conferencista convidado nas discussões da I Oficina Interdisciplinar/Diálogos: “Arquiteturas de Cidades Imaginárias”  com o tema: “A cidade no cinema”. Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, Brasil, out. 2006. Filmes discutidos: Campos Elíseos (1973), Edifício Martinelli (1975), Jogo Duro (1986),  Festa (1989),   Sábado (1994-95), O Príncipe  (2002), Pizza (2005). Filmografia completa consultar site: www.spfilmes.com.br.


3

JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p.4.


4

Informações extraídas de relatos do documentário: “Edifício Martinelli” (1975).


5

Entrevista de Ugo Giorgetti (PAVAM, Op. Cit., p.141); a palavra jogo pode conduzir a  interpretações que levam a diferentes significados ambíguos, metafóricos, mas que em sua essência envolvem “disputa” física (Jogo Duro), ou pelo discurso (Festa), (O Príncipe).


6

PAVAM, Op. Cit., p.175.


7

Uma outra cidade: Poesia e Vida em São Paulo nos anos 60”, documentário co-produção SP Filmes e TV-Cultura, 2000.


8

BENJAMIN, apud PULS, Mauricio Mattos. Arquitetura e filosofia. São Paulo: Annablume, 2006, p. 505.


9

AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2005.


10

PAVAM, Op. Cit., p. 79.


11

PULS, Op. Cit., p. 507.


12

ADORNO, apud PULS, Op. Cit., p.513.


13

PAVAM, Op. Cit., p.174.


14

PAGANELLI, Carlo. “Cinema e città”. In: L’Arca. Milano: Arca, n.172, 2002, p. 2-3.


15

Título do livro de Rosane Pavam. PAVAM, Op. Cit..

referências bibliográficas

NAZÁRIO, Luiz (org.). A cidade imaginária. São Paulo: Perspectiva, 2005.


SALVI, Ana Elena. A cidade no cinema: São Paulo, anos 80. São Paulo: Dissertação de Mestrado. FAUUSP, 2001.

sobre os autores

Alexandre Emílio Lipai, mestre e doutor pela FAU-USP; professor-pesquisador na graduação e pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu.

Ana Elena Salvi, mestre e doutora pela FAU-USP; pesquisadora e professora da graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Paulista e Unisantos, coordenadora geral do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Paulista.

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