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architexts ISSN 1809-6298


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Leia o artigo de Marina Bay Frydberg, que pretende analisar a construção de um imaginário de Porto Alegre através do estudo de vinte e nove músicas de diversos compositores que falam, direta ou indiretamente, da cidade


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FRYDBERG, Marina Bay. “Porto Alegre é demais”. Um estudo da construção do imaginário da cidade de Porto Alegre através da música. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 098.06, Vitruvius, jul. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.098/129>.

Cantar uma música pode levar as pessoas para outros lugares, vivenciar outras experiências e viver outra vida. Tocar uma música pode fazer as pessoas entenderem mais os outros e suas diferenças e, muitas vezes, compreender melhor a si mesmo. Ouvir uma música pode fazer as pessoas lembrarem do passado, imaginar o futuro e, sem dúvida, embalar o presente. A música é um ótimo veículo para viajar no tempo e no espaço. Ela possui a capacidade de diminuir distâncias temporais e espaciais.

Acreditando em todo este potencial que a música pode ter é que este trabalho se propõe a analisá-la como um meio capaz de produzir um imaginário e de reafirmá-lo cada vez que a música é cantada. Para relembrar a nossa história, seja ela pessoal ou coletiva, através da música basta que esta tenha sido feita a partir de elementos que tenham significado para nós, ou seja, que sejam para nós instituídos de sentido.

A música pode ser, assim, um veículo importante para o estudo do imaginário e da memória coletiva. O presente trabalho pretende analisar a construção de um imaginário de Porto Alegre através do estudo de vinte e nove músicas de diversos compositores que falam, direta ou indiretamente, da cidade. Estas músicas e seus compositores são distintos temporalmente, espacialmente e dentro da estrutura social na cidade. Elas representam uma visão de Porto Alegre, ou pelo menos do imaginário da cidade, em diferentes épocas, vista de lugares diferentes e por pessoas que vivem/viveram a cidade de forma distinta. São representações do imaginário não de uma única cidade, mas de várias cidades cantadas em letra e música.

Proponho-me a estudar a cidade não em sua forma ou função, mas na maneira como as pessoas que nela vivem a compreendem e principalmente a representam. Entendo a música como um veículo privilegiado de estudo das representações sociais da cidade e também da construção de um imaginário coletivo sobre a cidade. Pretendo identificar quais os elementos, lugares, imagens e modos de viver a cidade que estão expressos nas músicas que falam de Porto Alegre ou que cantam em Porto Alegre.

Esta distinção identifica dois tipos de música. Um primeiro que seriam músicas feitas para a cidade e outro que seriam músicas feitas na cidade. O primeiro grupo é de músicas feita para a cidade e que homenageiam seus lugares mais expressivos, que estão presentes no imaginário coletivo como representação de Porto Alegre. O segundo grupo utiliza a cidade e os seus espaços como lugares onde se dão encontros e desencontros; onde se trabalha e se ama; enfim, onde se vive.

A música tem, assim, a capacidade de identificar elementos que fazem parte do imaginário coletivo da cidade, utilizá-los e reafirmá-los. Mas também de criar novos lugares representativos nesta mesma cidade. Não que esses lugares não existam, ou que só existam para o autor da música que a compôs. Estes lugares não fazem parte, pelo menos oficialmente, do imaginário coletivo. Crio outras duas distinções entre as músicas, as que cantam uma Porto Alegre que se queira ver e que se queira lembrar. Enfim, um imaginário coletivo oficial: do pôr-do-sol, do Guaíba – estuário conhecido popularmente como rio que banha a cidade – e da Redenção – nome popular para o maior parque existente em Porto Alegre, o Parque Farroupilha. E outras músicas que cantam uma Porto Alegre esquecida, ou pelo menos pouco lembrada, na suas diversas formas de representar a cidade. Esta visão que denomino de um imaginário coletivo marginal: da periferia, dos becos, das vilas e das pessoas que nelas vivem.

Há também músicas que cantam dois tipos de lugares: lugares de memória e lugares de saudade. Os primeiros são lugares que já não existem mais na cidade ou que não possuem mais as suas mesmas funções. Estas músicas que cantam o passado falam de lugares de memória. Os lugares de saudade são cantados como espaços que não são mais vistos, pois, geralmente, o cantor está longe da cidade. Mais do que cantar lugares, as músicas tratam da saudade dos seus compositores. Saudade, esta, ligada à cidade, seus espaços e pessoas. Estas músicas que cantam os lugares de saudade geralmente ligam a cidade ao lugar de felicidade. A saudade de Porto Alegre está, assim, ligada ao único lugar em que seus compositores são/foram realmente felizes.

Existem, ainda, as músicas que cantam não especificamente os lugares da cidade, mas os tipos de pessoas características que vivem neste lugar. Estes compositores constroem ou representam, através das suas músicas, a identidade das pessoas que habitam certos lugares da cidade e também dos próprios lugares. A música trabalha, nestes casos, mais do que como forma de representação do imaginário coletivo, como meio de afirmar e reafirmar identidades urbanas. Identidade que nas músicas estudadas está vinculada à boemia, à malandragem, à noite; é uma identidade notívaga.

Mas a construção da identidade não esta somente vinculada a espaços ou modos de viver a cidade. A identidade cantada nas músicas também fala da relação entre a cidade e o campo. Sendo as músicas sobre Porto Alegre, esta relação é ainda mais importante na medida em que esta cidade é a capital de um estado que tem sua identidade baseada no meio rural. A identidade gaúcha oficial, como defende Oliven (1) é uma identidade vinculada a características da vida campeira e dos habitantes do campo. Mas as músicas que falam de Porto Alegre não trazem uma relação de contradição e oposição entre o campo e a cidade. Elas se apropriam do campo e o trazem para dentro da cidade, é a cidade englobando o campo. Isso se dá através da apropriação e resignificação do vocabulário, modo de agir e valores do campo para um ambiente urbano.

Há, ainda, uma outra forma de cantar a cidade. Alguns compositores falam de Porto Alegre quando falam de outras cidades, misturam a sua cidade a outras. Outras músicas mesmo quando não falam de Porto Alegre sempre estão olhando para as outras cidades sob seu prisma. Estas estão sempre falando de Porto Alegre, vêem as outras cidades a partir dos significados apreendidos na sua cidade e nas suas vivências. Ambas as formas de falar da cidade se fazem possível através da apreensão, do que chamarei uma leitura porto-alegrense, ou seja, um modo de ler a cidade a partir das referências de Porto Alegre.

 Estas classificações são modelos teóricos que sistematizei como forma de melhor compreender um universo musical tão dispare como o proposto por este trabalho. Mas como modelos eles não são encontrados de forma pura nas músicas analisadas porque seus compositores são seres que vivem em sociedade e que sofrem diferentes tipos de influência. Desta forma, algumas músicas possuem mais de uma dessas classificações, algumas aparentemente opostas, mas que explicitam a complexidade da sociedade e de suas representações.

“Anoiteceu em Porto Alegre”: O imaginário coletivo oficial

Não há música que melhor expresse o imaginário coletivo oficial do que o hino da cidade chamado “Porto Alegre Valorosa”. Nesta música de autoria de Breno Outeiral a imagem de Porto Alegre começa a ser construída a partir da relação entre lugares específicos da cidade e as qualidades das pessoas habitam esta cidade.

Porto Alegre "Valorosa"
Com teu céu de puro azul
És a jóia mais preciosa
Do meu Rio Grande do Sul

Tuas mulheres são belas
Têm a doçura e a graça
Das águas, espelho delas,
Do Guaíba que te abraça
E quem viu teu sol poente
Não esquece tal visão
Quem viveu com tua gente
Deixa aqui teu coração.

As imagens de lugares que a música traz referem-se aos presentes no imaginário coletivo oficial, ou seja, as belezas naturais representadas pelo rio, céu, sol e, conseqüentemente, a combinação destes, o pôr-do-sol no rio. A qualidade das pessoas fica implícita na última parte do hino quando o autor diz que quem viveu em Porto Alegre com as pessoas que vivem na cidade deixa nela seu coração. Este trecho pode ser lido de diversas maneiras, a leitura que faço é das qualidades das pessoas que vivem em Porto Alegre que faz com que as pessoas que as conhecem se apaixonem não só por elas, mas pela cidade. Já a outra parte do hino fala especificamente das mulheres que vivem em Porto Alegre e mais especificamente da sua beleza, doçura e graça. Este trecho reforça o imaginário coletivo oficial não só da cidade de Porto Alegre como do próprio estado do Rio Grande do Sul, que se baseia na crença, não só no estado como em todo país, da existência de um grande número de mulheres bonitas devido a influência da colonização alemã e italiana no estado.

Outra música que trabalha com esses mesmos elementos que o hino da cidade remete é de autoria de Kleiton e Kledir intitulada “Beira Rio”. Ela traz, novamente, o imaginário coletivo oficial do rio, do sol e, da combinação dos dois, o pôr-do-sol no rio.

Arde uma cidade
Como um sol de fim de tarde
Quando abraça e beija a beira de um rio
Cio de um céu em brasa
Pura eletricidade

Ela explicita a relação entre o sol e o rio de forma amorosa quase humana, personificando os dois elementos. No fim de tarde o sol, pessoa, abraça e beija o rio, também pessoa. Outra música que não personifica os elementos naturais, mas que também trabalha com eles de forma forte e figurativa é a música “Anoiteceu em Porto Alegre” composta por Humberto Gessinger e conhecida através do grupo Engenheiros do Hawaii.

Na zona sul existe um rio
Nesse rio mergulha o sol
E arde fins de tarde
De luz vermelha
De dor vermelha
Vermelho anil

Há músicas que falam do pôr-do-sol não de forma figurativa nem personificada, mas como característica importante do imaginário de Porto Alegre. Normalmente é uma das primeiras características acerca da cidade que são lembradas nas letras das músicas. Exemplos deste uso estão nas músicas “Horizontes” de Flávio Bicca Rocha e “Porto City” de Cigano, ambas transcritas abaixo.

E que no entanto
Me traz encantos
E um pôr-do-sol me
Traduz em versos
A minha terra
Tem um rio e um pôr-do-sol
Rua da Praia tão sem praia

Esta música “Porto City” traz outro elemento importante no imaginário coletivo oficial da cidade, os lugares propriamente da cidade, do urbano. Estes lugares são normalmente vinculados à área central, primeiro povoamento da cidade. Esta música ainda descreve um outro ponto importante e que foi muito bem trabalhado por Luís Fernando Veríssimo (2) em uma de suas crônicas. As confusões que existem em Porto Alegre entre os nomes das ruas oficiais e os nomes pelos quais são chamados, fatos muitas vezes decorrentes das modificações urbanas da cidade. A música “Porto Alegre, Porto Alegre” de Luiz Coronel e Hermes Aquino caracteriza muito bem estes outros lugares urbanos.

Chalé, Rua da Praia,
Parque da Redenção
Pelas avenidas, bandeiras
Rubras e azuis, incontida paixão
Churrasco na s brasas
Mate, vinho, violão
Namorados se abraçam
Morro da televisão
A banca de frutas, a fila, a lotação
E o Guaíba é um espelho
Quando o sol vermelho mergulha
De mansinho na imensidão
Por parques e ruas
A manhã nascendo da cerração
Porto Alegre, Porto Alegre
A beira do rio
E em meu coração

Este trecho da música trabalha com todos os elementos até aqui analisados – rio, sol, lugares do centro da cidade – e ainda traz novos lugares ou equipamentos urbanos com as bancas de frutas, as lotações e o parque da Redenção. Entre os lugares da cidade este é um dos mais lembrados nas músicas aqui estudadas. Músicas como “Pronta-entrega” de Nei Lisboa e “Porto Alegre é demais” de José Fogaça.

Sou das manhãs dessa cidade
Na meia estação
E em plena liberdade
Reluzindo a Redenção
Nas manhãs de domingo
Esperando o Grenal
Passear pelo Brique
Num alto astral

Esta última música ainda mostra elementos da prática cotidiana da cidade e que fazem parte do imaginário coletivo oficial como: passear na Redenção, comer churrasco e assistir ao Grenal – jogo entre os dois maiores times da cidade o Sport Club Internacional e o Grêmio Footbol Porto-Alegrense. Estes elementos são tão importantes que recorrentemente aparecem em música como na “Porto City” de Cigano e “Beira Rio” de Kleiton e Kledir.

Eu sou de Porto City
Meu irmão
Tem o Barranco
Carne gorda e coisa e tal

Eu sou de Porto City
Meu amor
Tardes de sol
O Beira-Rio e muita cor
Porto é uma cidade
Que tem personalidade
E é alegre por direito civil
Me liga mais tarde
Vou ficar tomando mate
Lendo a Zero
Enquanto espero o fim do pôr-do-sol
Na beira do rio.

A representação de fenômenos naturais, de lugares urbanos, de pessoas e de práticas sociais pelas músicas até aqui estudadas como indicativas de um imaginário coletivo oficial trazem elementos bem característicos e repetitivos por tantos compositores em épocas tão distantes.

“Bairro de Pobre”: O imaginário coletivo marginal

O imaginário coletivo marginal refere-se a uma visão, ou um ponto de vista da cidade que não é recorrentemente observado. Trata-se de lugares, trajetos, práticas cotidianas e pessoas de uma cidade que não é usualmente parte de uma imagem oficial que se faz da cidade e principalmente da imagem oficial que se vende para fora da cidade. Porto Alegre é pôr-do-sol no rio, Rua da Praia e Redenção. Esta é a cara que os responsáveis, governo e meios de comunicação, por vender a imagem da cidade querem apresentar. Esta imagem não é criada a partir de lugares imaginários, mas ela só mostra um lado da cidade. A imagem criada a partir do imaginário coletivo oficial e que também molda e reafirma este mesmo imaginário é apenas uma das faces da cidade. O imaginário coletivo marginal quer mostrar as outras cidades que existem para além da faceta oficial de Porto Alegre. Estas características se fazem presente em muitas das músicas de Lupicínio Rodrigues, mas especialmente na música intitulada “Bairro Pobre”.

Foi num dia de tristeza
Aonde se afasta a tristeza
Comentando o que se faz
Num centro de lavadeiras
Uma das mais faladeiras
Trouxe meu nome em cartaz
Enquanto algumas meninas
Corriam enchendo as tinas
Para a mãezinha lavar
Foi que saiu a conversa
Que eras a mais perversa
Mulher daquele lugar
Minha curiosidade
Levou-me à realidade
E eu vim a te conhecer
Ficando preso em teus braços
Sabendo ser mais um palhaço
Que as lavadeiras vão ter!

Esta música canta o que poderia chamar do não lugar, a não pessoa e a não vida tidas como características da construção de uma imagem de cidade, ou de uma identidade para a cidade. É a valorização de aspectos não usuais da construção de um imaginário: a precariedade de viver em um lugar, onde o que vale é a simplicidade da vida e, principalmente, os laços de sociabilidade que se criam entre seus habitantes devido as suas práticas cotidianas. A música fala de um tipo específico de prática profissional – lavadeira – e de uma forma de se relacionar vinculadas à profissão e seu lugar na estrutura social e da cidade (profissão pouco reconhecida dentro da hierarquia social em que suas profissionais trabalham na beira do rio).

A ligação de um lugar específico da cidade a um tipo específico de prática social e também de honra, como a música de Lupicínio Rodrigues, se faz presente em muitas músicas recentes e de gêneros musicais tidos como contestadores, por exemplo, o Rap. Elas resignificam este imaginário coletivo marginal que é uma forma de representação das outras cidades. Como a música “Dívida” de Tonho Crocco e Ultramen.

Não é só na Santana, Leopoldina ou Partenon
A honra é coisa muito séria em qualquer região
Aquele safado me deve, deve pra você também
E ainda por cima de tudo acha que tá tudo bem
A sua justificativa é o ensino escolar
Não aprendeu a dividir só quer multiplicar
Amigo chega de conversa já estou passando mal
Resolveremos esse cálculo no distrito policial

Esta música fala de uma forma de viver a cidade muito diferente da cantada pelas músicas que valorizam o pôr-do-sol ou os passeios na Redenção. Ela fala de uma cidade invisível para a maioria dos moradores da própria cidade e mais ainda pra quem não conhece a cidade e só tem uma idéia dela a partir do seu imaginário, normalmente o oficial e não o marginal. Estas vivências diferentes da cidade também estão relacionadas a lugares específicos da cidade: bairros da periferia, vilas, morros.

Outro tema que ajuda a formar o imaginário coletivo marginal é a relação dos habitantes da cidade com as reformar urbanas, que identificam a sua relação com os lugares da cidade. Um exemplo disto é a música “Anoiteceu em Porto Alegre” de Humberto Gessinger.

Atrás do muro existe um rio
Que na verdade nunca existiu
Mas arde fins de tarde
De luz vermelha
De dor vermelha
Vermelho anil

Ou ainda as relações dos fatos políticos com a forma como os habitantes da cidade a vêem. Por conseguinte, a forma como em determinada época os moradores de Porto Alegre se relacionavam com a cidade e seus acontecimentos. A música “Horizontes” de Flávio Bicca Rocha expressa esta questão através da visão de Porto Alegre no final da década de 1970 em plena ditadura militar.

Há muito que ando
Nas ruas de um Porto
Não muito Alegre

O imaginário coletivo marginal também tenta desmistificar além das outras cidades existentes dentro da cidade oficial, também a sua relação de superioridade em relação a outras cidades por ser capital do estado e ao mesmo tempo a sua relação com as outras capitais do país, enfim as relações de força e poder existentes entre cidades. Humberto Gessinger e o Grupo Engenheiros do Hawaii cantam esta relação em “Longe demais das capitais”.

Suave é a noite é à noite que eu saio
Pra conhecer a cidade e me perder por aí
Nossa cidade é muito grande e tão pequena
Tão distante do horizonte do país
Nossa cidade é tão pequena e tão ingênua
Tão distante do horizonte do país

Suave é a cidade pra quem gosta da cidade
Pra quem tem necessidade de se esconder
Nossa cidade é tão pequena e tão ingênua
Estamos longe demais das capitais
Nossa cidade é tão pequena e tão ingênua
Estamos longe demais das capitais

“Minha Cidade”: O lugar de saudade

O chamo de lugar da saudade caracteriza-se pela distancia de lugares específicos da cidade ou mesmo ela toda. Normalmente esta saudade advém da distância dos seus compositores com Porto Alegre. Como nas músicas “Deu pra ti” de Kleiton e Kledir e “Porto Alegre é demais” de José Fogaça.

Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau

Quando eu ando assim meio down
Vou pra Porto e... bah!, tri legal
Coisas de magia, sei lá
Paralelo 30

Porto Alegre me faz
Tão sentimental
Porto Alegre me dói
Não diga a ninguém
Porto Alegre me tem
Não leva a mal
A saudade é demais
É lá que eu vivo em paz

Estas duas músicas trazem, ainda, um outro elemento importante para entender a cidade como lugar de saudade, a sua relação com a felicidade. É somente em Porto Alegre que os autores dessas músicas ficam felizes, ou para ser feliz é necessário estar na cidade. A música “Porto City” de Cigano também trata o lugar de saudade por este enfoque.

Para que Paris se está tão longe
E se aqui sou tão feliz
Eu sou de Porto City
Meu amor

Fiz esse country
Só pra falar coisas daqui
É tanta coisa
Pra dizer
Que eu deixo assim
Só sei dizer
Que sou do sul
De Dom Pedrito
Ou de país
Mas só em Porto City
Eu sou feliz

O lugar de saudade é comparado à outra cidade (Paris), mas a cidade do coração (Porto Alegre) ganha, pois só nesta o compositor é feliz. A comparação com outros lugares do mundo também pode se dar na forma de que independente do lugar em que esteja o compositor somente existirá para ele um lar, a sua cidade. A música “Porto é meu porto” de Kleiton Ramil explicita esta característica.

Cerração
Tempo frio
Chimarrão
Alma quente
Em Moscou
No Japão
Onde vou
Não importa
Porto Alegre é meu porto

“Porto dos Casais”: O lugar de memória

O lugar de memória representa a relação espaço e tempo. Caracteriza-se pela relação dos habitantes da cidade com espaços que já não existem mais, que podem representar uma saudade do passado. Mas não fica reduzida somente a relação com o espaço, mas também a práticas cotidianas realizadas ou associadas aos espaços. Como exemplo da relação do espaço de memória com o tempo que já passou temos a música “Porto dos casais” de Jaime Lubianca que ainda traz elementos do mito fundador da cidade, a chegada dos casais de açorianos à Porto Alegre.

É sempre bom lembrar coisas passadas.
Rever os lampiões, os ancestrais.
Singrando o Guaíba aparecem,
Os velhos fundadores coloniais.
Chegaram tão alegres,
Alegres por demais,
Fundaram este porto dos casais.
É porto Porto Alegre,
Antigo dos casais,
Saudades dos tempos que não vem mais.

A relação com o passado e principalmente a vivência nos lugares de memória também se fazem em outra músicas como “Horizontes” de Flávio Bicca Rocha e “Alto da Bronze” de Paulo Azambuja e Paulo Coelho.

Subir no bonde e
Descer correndo
A boa funda de
Goiabeira
Jogar bolita, pular fogueira

Alto da Bronze
Cabeça quebrada
Praça querida
Sempre lembrada
A Praça Onze da garotada
Praça sem banco
Do rato branco
E do futebol
Da garotada endiabrada
Nas manhãs de sol
És a eterna lembrança
Do tempo feliz em que
Eu era criança
Tempos em que a vida
Era na minha infância
A doce quimera
Hoje é um pobre profano
Me lembro de ti
E dos teus desenganos
Ah, meu Alto da Bronze
Dos meus oitos anos.

Estas músicas falam das práticas cotidianas e lúdicas relacionadas a um espaço específico na cidade e, principalmente, um tempo já passado. É através da música que se constroem os lugares da memória e, também, é através dela que se lembra desses lugares que ajudam na construção de uma identidade para a cidade. Esta ligação entre a cidade e o tempo representa, também, uma relação entre modernidade e tradição. As músicas não tratam desta relação de modo conflitante, apenas indicam os sinais da modernidade e falam dos lugares e práticas tradicionais. Enfim, as músicas cantam os lugares de memória para que com isso eles não sejam esquecidos. Como na música “Minha Cidade” de Lupicínio Rodrigues que chora lembrando dos seus lugares de memória.

Não me censurem por estar chorando
Por contar coisas da minha cidade
É que eu agora estava recordando
Quando estas ruas eram só paz, amor e tranqüilidade
O Rio Guaíba nos deliciando
Nos dando banho de felicidade
E os seresteiros só nos acordando
Quando das musas sentiam saudade
E o cafezinho de cem réis nos bares
Banco nas ruas
Pra se namorar
E o “rato branco” ao nos ver abraçados
Preocupados, os coitados, vinham logo nos cuidar
Tinha retreta na praça aos domingos
Jogo de víspora
Pro tempo passar
Eu recordando,
Cheio de saudade
Como é que querem que eu não vá chorar

“Coração Porto-Alegrense”: As identidades construídas através da música

A música se fez uma importante fonte de mediação entre a cidade e o campo. Através de músicas que falavam do campo, muitos compositores e ouvintes recordavam o passado, re-atualizando o vivido. A relação entre o urbano e o rural pode aparecer primeiro em oposição, com a valoração maior de um dos lugares. Em segundo lugar pode ser identificada como um englobamento de um pelo outro. Nas músicas geralmente a cidade engloba o campo, ou seja, os compositores utilizam elementos ligados ao campo para falar da vida da cidade.

A primeira relação entre urbano e rural, de oposição, fica visível na música “Felicidade” de Lupicínio Rodrigues. Nesta música o compositor compara as mulheres do campo às da cidade e, através desta comparação, a diferença entre os valores destes dois lugares.

Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito
Ainda mora e é por isso que eu gosto
Lá de fora
Por que sei que a falsidade
Não vigora
Lá onde eu moro
Tem muita mulher bonita
Que usa vestido sem cinta
E tem na ponta um coração
Cá na cidade se vê tanta falsidade
Que a mulher faz tatuagem
Até mesmo no feição

A relação de apropriação dos elementos do campo para um ambiente da cidade se faz presente em muitas músicas principalmente do rock gaúcho. Esta forma se apropria principalmente dos valores e do linguajar do campo e o traz para o universo urbano, carente deste tipo de visão de mundo. Exemplo disso é a música “Peleia” em que Tonho Crocco e o grupo Ultramem compõem utilizando trechos de cantos de trovadores populares gaúchos.

Pele-pele-peleia eu não vou fugir desta guerra não. Não vou deixar eles fuderem minha terra não. É mais fácil morrer estar lutando eu nunca vi peão gaúcho se entregando. Macho não é quem bate na mulher. Homem eu vou dizer o que que é. Gaúcho macho do chão farroupilha protege e ama a sua família. Necessidade todo mundo passa qualquer raça qualquer massa
O português, o gringo, o italiano, o alemão, o índio, o africano.
Somos todos irmãos sob esse céu azul nós somos brasileiros do Rio Grande do Sul. Prepare a erva comece a pensar pois a peleia vai começar.

Não podemos se entregar pros ômi de jeito nenhum. Não tá morto quem peleia amigo sob o céu azul. Não podemos se entregar pros ômi de jeito nenhum. Pois somos todos brasileiros do Rio Grande do Sul.

Outra música que se apropria do linguajar do campo e a partir dele resignifica o espaço da cidade e a sua forma de sociabilidade a da Graforréia Xilarmônica intitulada “Amigo Punk”.

Amigo punk, escute este meu desabafo
que esta altura da manhã já não importa o nosso bafo
pega a chinoca, monta no cavalo e desbrava essa coxilha
atravessa a Osvaldo Aranha e entra no Parque Farropilha
Amanhecia e tu chegavas em casa com asa
a tua mãe dá bom dia
e se prepara pra marcar o gado com o ferro em brasa
e não importa se não tem lata de cola
eu quero agora é sestear nos meus pelego
com meu cavalo galopando campo afora
o meu destino é woodstock mas eu chego
aonde eu ouço a voz da cordeona
já escuto o gaiteiro puchando o fole
vai animando a gauderiada no bolicho
enquanto eu sigo detonando o hardcore

Esta música ainda traz novos elementos como a espacialidade, a história da música acontece em uma determinada região da cidade e cria, assim, um tipo de identidade específica: a do punk malandro e boêmio que vive na noite. Esta identidade notívaga está presente em outras canções e á criada a partir da referência a lugares da cidade famosos por sua boemia, como: o bairro Bom Fim, a Rua Osvaldo Aranha, os Ocidente, entre outros. A música “Malandro do Bom Fim” da banda Tequila Baby ilustra estes elementos.

Minha garota vai pra Oswaldo Aranha
E passa o dia inteiro a reclamar de mim
Ela me pede pra mudar o visual
E me tornar um malandro do Bom Fim
Eu quero ser... Yeah Yeah
Vai, vai, vai...
Eu quero ser malandro do Bom Fim
Mas o que foi que eu fiz...
Botei um pingo de solda no nariz
Eu faço tudo que a garota quer
Eu sou punk meu bem, eu sou rocker meu bem
Eu faço tudo que a garota quer
Eu sou grunge meu bem, eu sou heavy meu bem
Mas mesmo assim, não, não, não, eu não sou ninguém

Ou ainda a música “Coração Porto-alegrense” de Sérgio Napp e César Dorfman que mais do que falar de uma identidade notívaga, fala dos percurso que se percorre dentro da cidade como forma de afirmá-la.

Coração Porto-alegrense
De bar em bar a navegar

Anda pelas madrugadas
Vai do Treviso ao Ocidente

“Pegadas”: A cidade implícita

Ítalo Calvino no seu livro As cidades invisíveis (3) diz através do seu personagem Marco Pólo que “todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza” (1990:82). Algumas músicas também trazem esta visão. As outras cidades só podem ser entendidas a partir das referências da sua própria cidade. Então, algumas vezes elas se misturam em músicas, se confundem como na música “Berlin-Bom Fim” de Nei Lisboa e Hique Gomes.

Já vejo casas ocupadas
As portas desenhadas
No vergonhoso muro da Mauá
Os velhos nos cafés
O Bar João em plena Kriegstrasse
A saga violenta desse parque
O cinza da cidade partido verde ao meio
Cheiros peculiares ao recheio
De um bolo de concreto
Repleto de chucrute e rock'n roll
E depois da meia-noite
A fauna ensandecida do Ocidente
Digitando em frente ao Metropol
Berlim, Bom Fim
Berlim, Bom Fim

Outras vezes olhando qualquer outra cidade o compositor acaba vendo Porto Alegre. Ele procura em outras cidades os seus espaços significativos e de referência. Como na música “Cine Avenida” de Nei Lisboa.

E quando veio a noite, eu lembrei
O coração existe pra sonhar que está noutro lugar
E quando veio a noite, eu pensei
Com você tão longe assim
Meu coração não vai voltar pra mim
Passei a manhã distraído
Surdo e comovido
De tarde esperei numa praça
Onde você passa
E fui te buscar na saída
Do Cine Avenida
Mas era ilusão, na verdade
Era outra cidade

Ou, ainda, carregar sempre Porto Alegre junto de si, não importando em que outra cidade do mundo se esteja. Como a música “Pegadas” de Bebeto Alves.

Nas pegadas das minhas botas
Trago as ruas de Porto Alegre
E na cidade de meus versos
O sonho dos meus amigos

“Porto é meu porto”: Considerações finais

O imaginário de Porto Alegre construído a partir das músicas que cantam a cidade trata-se não de um, mas de vários. São múltiplos os imaginários construídos pela música e constantemente reafirmados através dela. Estes imaginários distintos falam de cidades distintas e de diversas cidades. E de formas também diversificadas de se ler Porto Alegre e conseqüentemente representa-la.

Todos as classificações utilizadas neste trabalho serviram para conseguir identificar os diferentes elementos que compõem os imaginários a cerca de Porto Alegre. E assim identificados sermos capazes de compreender eles, o significante e seu significado. Trazendo para o campo das significações os elementos da composição musical, ou melhor, falando de sua letra, espero ter trazido essas vinte nove letras aqui analisadas para o estudo da memória, do imaginário, da história, enfim, do patrimônio cultural.

Concluo, então, este trabalho com uma música que possui todos os elementos aqui estudos. Ela fala da cidade e na cidade. Ela utiliza elementos do imaginário coletivo oficial e marginal. Ela fala de lugares de saudade e de memória. E ela também afirma a uma identidade porto-alegrense vinculada aos seus lugares. A música tão completa em signos é “Ramilonga” de Vítor Ramil.

Chove na tarde fria de Porto Alegre
Trago sozinho o verde do chimarrão
Olho o cotidiano, sei que vou embora
Nunca mais, nunca mais

Chega em ondas a música da cidade
Também eu me tranformo numa canção
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

Sobrevôo os telhados da Bela Vista
Na Chácara das Pedras vou me perder
Noites no Rio Branco, tardes no Bom Fim
Nunca mais, nunca mais

O trânsito em transe intenso antecipa a noite
Riscando estrelas no bronze do temporal
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

O tango dos guarda-chuvas na Praça XV
Confere elegância ao passo da multidão
Triste lambe-lambe, aquém e além do tempo
Nunca mais, nunca mais

Do alto da torre a água do rio é limpa
Guaíba deserto, barcos que não estão
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

Ruas molhadas, ruas da flor lilás
Ruas de um anarquista noturno
Ruas do Armando, Ruas do Quintana
Nunca mais, nunca mais
Do alto da bronze eu vou pra cidade baixa
Depois as estradas, praias e morros
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

Vaga visão, viajo e antevejo a inveja
De quem descobrir a forma com que me fui
Ares de milonga sobre Porto Alegre
Nada mais, nada mais.

notas

1
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil-nação. Petrópolis: Vozes, 1992.


2

VERÍSSIMO, Luis Fernando. “A mal entendida”. In: VERÍSSIMO, Luis Fernando; FONSECA, Joaquim da. Traçando Porto Alegre. Porto Alegre: Artes e Ofícios Ed., 1994.


3

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

sobre o autor

Marina Bay Frydberg, Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Patrimônio Cultural pela mesma Universidade. Mestre em Antropologia Social e doutoranda na mesma área pela UFRGS.

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