O que outorga mérito de preservação a determinadas realizações da arquitetura moderna?
Antes de responder à pergunta talvez fosse importante e necessário precisar os termos em que ela se coloca, os significados que ela evoca, de maneira a determinar não apenas os critérios de preservação, mas também, como podem ser construídos e efetivados.
Preservação, patrimônio, memória, identidade: invenções da modernidade
Preservar, tombar e construir o patrimônio arquitetônico são ações conexas à vontade de construção de uma “identidade nacional” que surgem na Europa dos séculos 18 e 19 e passam a ser adotadas no Brasil na primeira metade do século 20 – embora com focos e resultados distintos. O conceito de preservação de realizações arquitetônicas inaugura uma atitude distinta do simples ato de sua observação, medição e desenho documental (atividades que já vinham ocorrendo desde pelo menos o Renascimento). A preservação visava não apenas conhecer e estudar tais obras, mas implementar ações com vistas a impedir que desaparecessem, que fossem desbaratadas, que suas partes fossem usadas em outras novas construções, que em seus sítios outras novas edificações fossem aleatoriamente erguidas. Preservar significava não apenas o ato de conhecer, mas a intenção de pôr em ação medidas concretas visando manter a integridade de tais arquiteturas, de maneira a conservar e perenizar os testemunhos do passado. Além disso, o nascimento da idéia de preservação não se limitava apenas ao desejo de conservar tais obras, mas surge, naquele momento da realidade européia, impelido pela invenção do conceito moderno de patrimônio “nacional”.
O impulso de preservação não nasceu apenas porque as obras eram antigas e urgia conservá-las para que não se perdessem, mas igualmente por seu valor e lugar relativo no seio de uma narrativa mais ampla: a da invenção da “identidade nacional” de um povo, nação ou estado, servindo de apoio e suporte para confirmar e corroborar as bases de seus mitos fundacionais. Com essa expectativa, as obras não são preservadas apenas por si mesmas, mas também por serem signos de outras coisas; não basta que falem do passado, mas devem testemunhar a favor de uma construção conceitual do presente, fazendo sentido dentro de um discurso essencialmente contemporâneo. Por isso algumas vezes convinha reverter seu estado ruinoso, recuperando ou revivendo aquele sempre glorioso passado – mesmo que para isso fosse necessário inventá-lo mais ou menos. Mais do que um ato de conservação passiva, a preservação nasce atrelada a uma atitude de projeto, de vontade de construir um futuro que se deseja. E como em qualquer projeto, sua concretização não envolverá apenas decisões objetivas ou técnicas, mas estará sempre e inevitavelmente permeada por decisões subjetivas. E por último, mas não menos importante, para que a preservação se concretize e dure, é preciso que a esses testemunhos do passado se atribua algum valor de uso no presente, até para que o esforço de conservação não se perca, assegurando à obra preservada os meios adequados para sua gestão e permanência.
A preservação de bens finitos, particulares e circunstanciais, sejam arquiteturas ou objetos artísticos nasce associada à questão do patrimônio “coletivo”, representativo de certo grupo humano, alinhado a narrativas de construção mítica dos seus respectivos passados. Entretanto, a interação entre os dois domínios – o particular e o geral, o pessoal e o coletivo – nunca foi tranqüila. Em nome de um interesse coletivo, afirmado a partir da vontade de autonomia política de certo grupo humano, situado em certo sítio geográfico (mesmo se parcialmente representado – em geral por sua elite aristocrática, plutocrática ou burocrática), vai-se passo a passo regulamentando a permissão e a condição de usufruto de determinadas obras (algumas delas de domínio pessoal e privado) com o fito de garantir seu aproveitamento coletivo, efetiva ou simbolicamente. Essa perda parcial da posse particular em prol de um benefício “público” é imposta e gradualmente regulamentada pelo aparato estatal, sempre alegando razões aparentemente boas: porque tais bens foram guindados à categoria de ícones representativos, comemorativos ou corroborativos de um ou mais mitos fundacionais de uma dada nação ou estado.
As forças interessadas na preservação de alguma maneira não atuam simplesmente movidas pelo valor histórico ou artístico do bem em si, mas vinculam a ação de preservação a narrativas de afirmação de identidade. Mas as razões concretas que levam à seleção deste ou daquele bem ou arquitetura, para lhe “outorgar” mérito e valor suficiente que justifique sua seleção entre os bens a serem preservados, variam e se ajustam às circunstâncias. Nesse sentido, não há diferença de intenção, apenas de objeto, entre o desejo de preservar as catedrais góticas francesas, os palácios italianos do renascimento, os monólitos de Stonehenge, o edifício do Ministério da Educação e Saúde do Rio de Janeiro, os sobrados do Pelourinho de Salvador, as casas bandeiristas de São Paulo ou uma infinidade de outros exemplos. Em quaisquer casos, atribui-se valor artístico ou histórico ou afetivo ou cultural a determinados edifícios ou conjuntos de edifícios, mas também porque “representam” mais do que apenas a si mesmos, sendo transformados em instrumentos de ativação de uma “memória” que se quer “coletiva”. A memória, no caso, não é lembrança individual, mas celebração grupal; e embora seja um constructo, não deixa de ser bastante real. A contraparte da memória é o esquecimento, sua condição entrópica contra a qual, a cada momento, ela deve lutar para subsistir: não haverá “memória” se não for concomitantemente feito um esforço para nos “educarmos” a todos, geração após geração, de maneira a sabermos reconhecer os laços que unem esses edifícios a essas intenções, a preservação à construção do patrimônio. Assim, a construção do patrimônio foi sendo, também, a invenção da memória, e não apenas sua preservação.
Dito assim de maneira breve, o desnudamento da construção conceitual da idéia de patrimônio, preservação e memória, pode parecer apontar para sua fragilidade racional, ao se revelar seus fundamentos “míticos”. Mas não se trata de um processo desprovido de sentido: as necessidades simbólicas podem não ser frutos da racionalidade ou da lógica, mas não deixam de ser manifestações humanas das mais relevantes. A vida humana não é possível na ausência total de fundamentos ou na subtração completa dos valores de pertencimento. Assim, o objetivo desta breve argumentação não é o de desmontar a validade ou a necessidade de se preservar, de se constituir um patrimônio, de arregimentar argumentos para a construção de identidades e consolidação de memórias; mas apenas relembrar que os parâmetros de seleção e julgamento, no âmbito da preservação e do patrimônio, são intrinsecamente relativos: são fruto de projetos, são historicamente determinados, não são absolutos a priori.
Assim, embora essa maneira de encarar preservação, patrimônio e memória tenha raízes históricas importantes, e tenha construído na prática instâncias operacionais que pautam sua conduta nesses fundamentos, talvez fosse possível, nesta primeira década do século 21, nos perguntarmos novamente se desejamos que a questão do patrimônio, no que tange ao caso dos edifícios modernos, siga sendo tratada da mesma maneira, com os mesmos mecanismos e instrumentos, com os mesmos procedimentos e finalidades que marcaram a criação do conceito do preservação nos séculos anteriores. Pois, assim como a modernidade re-inaugurou os conceitos de patrimônio, preservação e memória, ao mesmo tempo questiona a cada passo toda e qualquer autoridade, todo e qualquer valor fixo e imutável. Ressalve-se porém que a vontade de repensar alguns termos da questão do patrimônio não significa um descaso em relação à tradição estabelecida, nem a vontade de denegri-la ou de negá-la. Apenas, ventila o desejo, talvez até conservador, de colaborar para que tudo mude para que tudo siga igual.
Preservar não é tombar, mas terminou sendo, mas poderia não ser?
Há vinte anos, Carlos Nelson Ferreira dos Santos publicava mais uma de suas lúcidas e arrasadoras análises, certamente muito pouco palatável à época e ainda hoje bastante transgressora – embora suas palavras pareçam ficar mais oportunas a cada dia. Correndo o risco de citá-las fora de contexto, pode-se relembrar aqui um trecho:
“Quando se pensa em preservar, alguém logo aparece falando em patrimônio e tombamentos. Também se consagrou a crença de que cabia ao governo resguardar o que valia à pena. Como? Através de especialistas que teriam o direito (o poder-saber) de analisar edifícios e pronunciar veredictos [... atribuindo] caráter distintivo a um determinado edifício. [...] Do jeito que vem sendo praticada, a preservação é um estatuto que consegue desagradar a todos: o governo fica responsável por bens que não pode ou não quer conservar; os proprietários se irritam contra as proibições, nos seus termos, injustas, de uso pleno de um direito; o público porque, com enorme bom senso, não consegue entender a manutenção de alguns pardieiros, enquanto assiste à demolição inexorável e pouco inteligente de conjuntos inteiros de ambientes significativos”. (2)
Se algo mudou nos últimos vinte anos, é que, apesar de aparentemente ninguém ficar satisfeito com isso, o “tombamento” – que já vinha sendo praticado como recurso quase exclusivo para promover a preservação – se tornou uma reivindicação das mais populares, tanto para governos como para o público em geral. Em texto de 1994, Cêça de Guimaraens já apontava essa tendência de consolidação do tombamento tanto como “um must do imaginário do movimento popular organizado”, e como uma “tábua de salvação para os municípios como contrapartida à escassez de verbas para obras” (3). Essa autora constatava então que a conexão entre preservação, tombamento e construção simbólica da memória/identidade havia deixado de ser fruto dileto de um projeto de modernidade, assumido e liderado por elites intelectuais, trabalhando sob a égide de governos modernizantes, para se tornar um embate entre jogos de interesses os mais variados, e nem sempre os mais adequados: “quando o IBPC e suas congêneres fazem acordos e desfazem desacordos (e vice versa) na tentativa de tornar consistente a tarefa de revelar aos cidadãos o poder simbólico dos bens artísticos, históricos, arqueológicos e imateriais. Constata-se: não há mais aceitação “naturalmente” simbólica. Há, sim, jogo de pesos pesados” (4). E termina o texto afirmando que “tombar ainda é preciso”.
Isso segue sendo indiscutível. Mas talvez se devesse, de uma vez e para sempre, se desvincular o preservar do tombar. Ou ao menos, talvez se pudesse evitar a promoção de novas ações que, sem maior reflexão, sigam perpetuando essa relação, desavisadamente reforçando esse vínculo, como se fosse automático. Inclusive, quando se buscar responder à pergunta inicial: “o que outorga mérito de preservação a determinadas realizações da arquitetura moderna?”
Mas, além do tombamento, que outras ações, instâncias, propostas e realizações existirão, que trabalhem no sentido da preservação de bens arquitetônicos? Hoje, muito poucas, ou quase nada. Assim, embora preservar não seja tombar, se a única maneira de preservar for tombar, o deslinde desse nó se torna problemático. Não havendo diferenciação entre ambos conceitos, a pressão para o tombamento indiscriminado (ou seja, sem critérios definidos e explícitos), como recurso exclusivo para a preservação seguirá sendo avassaladora. Até porque, se não existirem outros mecanismos, o não tombamento pode ser, afinal de contas, a não preservação. E nesse caso, os critérios para definir a preservação ficarão muito mais à mercê das pressões e “jogos de pesos-pesados” ou até dos jogos, não menos poderoso, dos “pesos-pena” – representados pelos aguerridos movimentos organizados populares (ou nem tanto).
Talvez então conviesse fatiar a pergunta inicial em duas: Quais realizações da arquitetura moderna devem ser preservadas e tombadas? E quais devem ser preservadas, mas não necessariamente tombadas? Mas a segunda pergunta só fará sentido se houver qualquer coisa de permeio entre o tombamento e a perda do bem – caso contrário, volta-se ao ponto morto.
Paradoxos da construção de critérios
Assumindo-se como necessária (mesmo que ainda hipotética) a possibilidade da preservação, diferenciada da atitude do tombamento, ainda assim a questão dos critérios não está solucionada. E sem ela, não é possível responder à pergunta inicial: o que outorga mérito de preservação a determinadas realizações da arquitetura moderna?
Talvez aquilo que dificulte a solução para a pergunta seja algo melhor visto virando-se o pano do avesso. Na medida em que forem melhor definidos os critérios para validar a outorga de mérito de preservação a certas obras, isso implicará no estabelecimento de algum grau de escolha – e, portanto, de exclusão. O recorte ilumina e seleciona, deixando o restante do panorama na sombra. A questão mais complexa talvez não seja definir o que merece ser preservado – mas o que não o merece. Ademais, na condição contemporânea, todo e qualquer critério tende a se tornar relativo, e a cada passo é possível questionar critérios consolidados, demonstrando sua insuficiência ou anacronismo. Um panorama assim instável e abrangente torna a tarefa da construção de critérios escorregadia e complexa, nunca definitiva, eternamente sob suspeita, perenemente necessitando reavaliar-se. No entanto, segue sendo tarefa das mais urgentes, desejável e necessária. Pois do contrário, a preservação correrá o risco (que já se avizinha e assombra) de ser banalizada por excesso – risco ainda mais presente enquanto preservar e tombar seguirem sendo, na prática, a mesma coisa.
Um critério possível seria a preservação “por demanda” – ou seja, a partir da iniciativa e pressão de variados grupos de interesse, com diversos objetivos e intenções. De fato, essa é a realidade cada vez mais presente, e vem crescendo na medida em que a preservação segue atrelada a discursos de identidade já raramente nacionais e sim cada vez mais pulverizados. Mas por essa via corre-se o risco de se ter uma resposta simplória e empírica: preservam-se aquelas obras que alguém, por alguma razão, mais ou menos explícita, solicita e pressiona para que o sejam.
Para o olhar desavisado pode até parecer ser uma tendência benéfica, já que a “preservação” parece se tornar algo mais “popular”, parece abandonar o ar de coisa contrária ao “progresso” para se tornar algo desejável – mesmo que seja, apenas como mercadoria de troca em um jogo amplo, tanto econômico, como de prestígios. Se assim for, mesmo que o rol de obras “preservadas” aumente daqui a algum tempo pode-se descobrir que se deixou, desavisadamente, de se preservar o que de fato era mais importante, simplesmente por não ter havido até então interessados ativos. Se ademais, não houverem quaisquer critérios técnicos e racionais de seleção e outorga de valor de preservação, sua ocorrência em função exclusivamente do atendimento às (justificadas ou não) ânsias de identidade ou de prestígio de quaisquer grupos organizados, apoiados quase sempre apenas em discursos retóricos e persuasivos, pode nem sequer ser benéfica ao destino final dos bens assim “preservados”. Pois sendo meros peões numa luta de gigantes talvez nem tenham qualquer interesse por si mesmos, mas apenas, como mercadoria de troca.
Por outro lado, quem iria se interessar pelo caso da arquitetura moderna? Haverá alguma identificação direta ou indireta dos usuários para que a demanda por sua preservação ocorra, por assim dizer, “espontaneamente”? Não parecer ser o caso. Embora nós arquitetos não apreciemos muito nos recordarmos disso, as boas intenções das vanguardas modernas nem sempre (ou quase nunca) foram plenamente aceitas ou compreendidas. Raramente as arquiteturas modernas apresentam, entre suas qualidades mais distintivas, o de também serem comunicativas e/ou de fácil identificação com o público em geral. É freqüente os usuários “não reconhecerem” o valor artístico de uma realização arquitetônica moderna – inclusive porque, por sua natureza, ela tenderá a ser transgressora, a distender os limites do possível e do permissível, a sair do comum para enfrentar o novo. Logo, não pode esperar ser aceita simplesmente e sem estranheza.
No caso da arquitetura moderna, tanto a construção de critérios que graduem e dêem parâmetros a este debate, quanto a iniciativa, como grupo de pressão, pela sua preservação, parece finalmente caber a nós arquitetos, profissionais supostamente interessados e preparados para essa tarefa. Mas talvez fosse importante compreender que essa construção de critérios, de um lado, e essa organização de grupo de interesse, de outro, jamais chegará a ter legitimidade absoluta se estiver isolada: ao contrario, deve aprender a se colocar como uma das forças em jogo, como um dos parceiros num amplo diálogo diplomático, onde o que vale não é a imposição, por bem ou à força, de nosso suposto saber. Nesse sentido, quaisquer ilusões quanto à possibilidade de que a construção de critérios técnicos venha, em algum momento, a ter força plena, podendo chegar a substituir o jogo político conformado pelo embate entre grupos de interesse a favor (ou contrários) à preservação, é ilusória, prepotente e anacrônica. Não vai ser possível ressuscitarmos nossa instância de poder preservativo, que supostamente teria existido no passado, que idealmente teria agido sem mesquinhos interesses, e pelo bem de todos – uma imagem que também denuncia o desejo da construção de um passado mítico. A construção de critérios de cunho técnico é imprescindível; mas será apenas – e talvez, poderosamente – uma das forças em jogo de um debate mais amplo. E nunca mais, a única responsável por todo o processo.
Por outro lado, a definição de critérios não pode ser decidida subitamente, mas convém que seja paulatinamente construída, progressivamente testada, revisada e melhorada – e essa não será tarefa simples nem rápida, até porque tampouco os arquitetos somos um grupo coeso e uníssono, e não poucas dissensões e diferenças de opiniões internas terão de ser diplomaticamente superadas. Para que o esforço não se esgote em um punhado de interessados, sua continuidade também dependerá da nossa capacidade, como grupo coletivo interessado na preservação do patrimônio moderno, em promover uma melhor educação para atuais e futuros arquitetos, de maneira a corretamente reconhecerem e respeitarem, em seus futuros projetos de conservação e reciclagem, as qualidades e características intrínsecas das obras da arquitetura moderna. Finalmente, é urgente e imprescindível buscar maneiras de estender esse esforço educativo a todos os cidadãos: se formos o único grupo interessado, e nosso interesse não tiver sem qualquer ressonância no corpo social, a meta da preservação não será atingida: mesmo se pudesse ser imposta, não vingaria.
Cabe também ao coletivo dos arquitetos interessados na preservação de obras modernas aprender a compreender os argumentos de outras forças presentes no jogo diplomático, e até mesmo, no limite, aprender a dialogar usando para cada qual, seu próprio jargão. Por exemplo, examinando e/ou propondo alternativas financeiramente viáveis; desmontando argumentos pretensamente econômicos com contra-argumentos a favor da viabilidade financeira da preservação; insistindo na compreensão da arquitetura como fato de cultura; fazendo ver o absurdo de não haver uma educação urbana e arquitetônica presente em todos os níveis escolares; e mais ainda, quão absurdo é a ausência quase total de um debate qualificado sobre arquitetura em quase todos os meios de comunicação de massas. Mesmo sendo as edificações bens de alto custo, cuja construção ou preservação envolve interesses financeiros de não pouca monta, nem sempre os clientes são convencidos apenas por argumentos de custos, nem são imunes aos argumentos enfatizando a qualidade; mais provável é que a meta seja atingida buscando-se um adequado balanço de ambas as coisas, já que é possível fazer ver que soluções mais caras , poderão eventualmente ser as melhores se, a seu favor, pesarem benefícios concretos e/ou simbólicos a serem auferidos a médio e longo prazo. O que importa, no caso, é que nos disponhamos a argumentar, a convencer, a debater – não como quem manda e pontifica, mas como quem educa e aprende.
Se esse for o panorama, as oportunidades de debate deverão passar a ser encaradas de maneira positiva, como chances excelentes, a serem reforçadas ao máximo, por seu valor potencialmente educativo. Nesse sentido, talvez importe menos que sejam estes ou aqueles os critérios a serem adotados para outorgar mérito de preservação a determinadas realizações modernas; e mais, o fato de serem esses critérios explicitamente declarados e amplamente debatidos, sempre – tanto no coletivo de arquitetos como no coletivo de usuários diretos e indiretos, e finalmente, a quaisquer interessados.
Não é o que vem ocorrendo. O debate acontece, de parte a parte, como confronto de auto-afirmadas “autoridades” exibindo seus galões, mais do que seus argumentos. Devemos nos armar de humildade para admitir que tampouco nós, os arquitetos interessados no tema, escapamos desse não-diálogo de surdos. Se há debate, este se limita ao detalhamento do status de “autoridade” de cada um, indicando-se com certo estardalhaço a fama da obra. ou do autor, ou do parecerista; insistindo-se na opinião favorável (ou contrária) desta ou daquela figura pública apenas porque é gente famosa, e não porque esteja contribuindo com justificativas técnicas, artísticas, culturais, etc.. Por mais valiosa e autorizada que seja uma opinião “oficial” – seja de autoridades, seja dos órgãos de preservação – deve vir sempre acompanhada de argumentos explícitos e fundamentados, ser detalhada em linguagem técnica, mas não tão intrincada que não seja acessível a leigos interessados. Se assim não for, não haverá dialogo e construção coletiva, mas somente jogos de pressão entre os vários interesses contrários. Enquanto os debates se limitarem a ataques cegos, a indignações e indignidades, sem argumentos claros de parte a parte, com nenhum dos lados fazendo o mínimo esforço de compreender as razões e motivações dos outros lados, não haverá negociação, nem diplomacia, nem debate – só jogo de forças mais ou menos brutas e surdas que não contribuem para a consolidação a longo prazo de um conceito contemporâneo de preservação.
Do reconhecimento do valor artístico
Até o momento, o assunto tratado ainda não abrangeu os critérios para a preservação de realizações da arquitetura moderna, mas apenas, as razões para sua oportunidade e as bases em que possivelmente se deveriam estabelecer. Como foi dito acima, a tarefa de construção dos critérios não é simples, nem rápida, nem definitiva. Mas pode-se começar a tentar começar a responder à pergunta, buscando apontar uma resposta algo singela, de maneira a tentar vislumbrar algumas de suas implicações.
Retomemos a pergunta. O que outorga mérito de preservação a determinadas realizações da arquitetura moderna? Novamente, a resposta parece ser muito simples – embora sua compreensão, detalhamento e aplicação venham a ser extremamente complexas. Deve-se outorgar mérito de preservação pelo menos àquelas realizações da arquitetura moderna que apresentarem valor artístico seja excepcional, ou de alto nível.
Caso seja aceita, essa resposta cria imediatamente outros dois problemas: quem outorga tal valor? Ou seja, quem está qualificado para reconhecer e validar o valor artístico excepcional de uma realização da arquitetura moderna? E mais: em que consiste um valor artístico excepcional?
Se uma árvore cai na floresta e ninguém está lá para ver, será que ela caiu mesmo? Esse conhecido paradoxo parece fácil de superar quando o fato (não) observado pertence ao campo dos fenômenos naturais nos quais a presença humana não é necessária, ou sequer relevante, para garantir seu estatuto existencial. Mas, e quando se tratam de fatos da cultura? Se uma obra de arte excepcional não é reconhecida como tal, será que ela o é mesmo? Onde está o valor artístico: na obra, no autor, ou no observador?
Esse tema já foi sobejamente tratado por Duchamp e outros artistas das vanguardas do começo do século 20 ao questionarem os sistemas oficiais de outorga de valor artístico, por seu conservadorismo cristalizador, complacência auto-referente e patológica incapacidade de perceber o valor do novo e do inaudito. Mas se assim for, a quem caberá atribuir valor artístico? E como garantir que esse processo seja aceitável pelo coletivo dos interessados? E finalmente, como essas questões podem ser aplicadas na arquitetura – arte permeada por seu valor de uso e tensionada por seu valor de troca?
A primeira possibilidade é que o valor artístico esteja embebido na própria materialidade da coisa. Obras que não eram reconhecidas como de alta qualidade freqüentemente passam a sê-lo após anos, décadas ou séculos. Nesse caso, o valor já ali jazia oculto, ou foi posteriormente atribuído? Em um caso ou noutro, estivesse ou não presente, há que se reconhecer que o valor excepcional só causa efeitos no mundo quando passa a ser reconhecido, e só será reconhecido na medida em que o observador exercitar a capacidade de ler e interpretar aquela obra. É possível que o valor resida na coisa em si, mas se assim for, isso ocorre de forma inefável e incognoscível, exceto quando se viabilizam maneiras para desentranhá-lo e reconhecê-lo.
Por outro lado, considerando-se que as arquiteturas não ocorrem espontaneamente, mas são criadas pelo esforço humano, a segunda possibilidade é atribuir ao(s) criador(es) a tarefa de outorgar à criatura o reconhecimento do valor artístico excepcional. Mas se assim for, o problema não está sendo resolvido apenas dando-se um passo atrás, pois então haveria que se validar o valor artístico excepcional dos arquitetos(as), em vez das obras – tarefa de dificuldade igual ou maior. Mesmo assim, há que se notar que, na tradição brasileira recente esse tem sido, freqüentemente, quase o único critério explicitado (e mesmo alardeado) quando se pretendem definir, como merecedoras de preservação, certas realizações da nossa arquitetura moderna. Tal saída não deixa de ser paradoxal, pois mesmo um criador excepcional não necessariamente produz obras excepcionais o tempo todo; nem o reconhecimento de sua excepcionalidade como criador se dá espontaneamente, mas lhe foi outorgado ao longo do tempo, por terceiros.
Assim, sem negar que uma obra possa ter valor excepcional em si mesma, e/ou que o(s) criador(es) dessa obra possam também ser artistas excepcionalmente criativos em si mesmos, a outorga de valor artístico excepcional a uma determinada realização da arquitetura moderna, com vistas a que ela possa adquirir status e mérito de preservação, só pode ser consistentemente efetuada por terceiros – usufrutuários diretos e indiretos; até porque, é necessário haver algum grau de consenso ou de entendimento coletivo para que o valor artístico excepcional de uma obra/criador seja reconhecida. E isso só pode ocorrer no plural: não basta que uma voz isolada se pronuncie (por mais verdadeira e iluminada que seja), mas carecerá haver certa movimentação coletiva, um entendimento razoavelmente consensual em um grupo amplo e representativo, dentro do ambiente conformado pelos vários grupos de interesse envolvidos nos processos de conformação de patrimônio pela preservação e construção da memória.
Na preservação de uma obra de arquitetura moderna, quem é a comunidade interessada que deverá se pronunciar, validando o valor artístico excepcional de determinada obra? Em primeiro lugar , certamente, os próprios arquitetos – na medida em que nossa capacitação profissional nos prepara tanto para projetar como para reconhecer a qualidade, na arquitetura em geral, moderna em particular, a partir do conhecimento profundo da nossa tradição disciplinar. Em segundo lugar os usuários diretos e indiretos, sem cuja manifestação o processo se torna obscuro e deficiente. O ato da preservação (resulte ou não em tombamento), que de alguma maneira tenderá a subtrair parte dos direitos de usufruto dos proprietários, não lhe pode ser imposto sem que haja razoável aceitação e entendimento do coletivo social, sob pena de ser visto como um instrumento autoritário e tecnocrático, contra o qual o meio social no qual é implantado tenderá a se rebelar. Para que a preservação não seja uma luta inglória ou apenas um ato administrativo sem efeitos práticos, uma comunidade relativamente ampla de pessoas precisará também identificar aquela obra como merecedora de proteção especial, por seu alto valor artístico, histórico, cultural, etc. Um aliado nessa luta pela necessidade de preservação de alguma arquitetura moderna (ou não), será, então, um bom projeto – que possa revitalizar sua construção, eventualmente adaptá-la a novos usos sem perda de suas qualidades intrínsecas, ou mesmo revalorizando-as. Um projeto de qualidade, tão excepcional ou mais do que a obra a ser preservada, é um instrumento indispensável ao processo de preservação, e como tal, deve ser enfatizado e divulgado.
Apesar da arquitetura moderna nem sempre ter visibilidade e credibilidade junto ao público leigo, a ponto deste interessar-se por sua preservação, talvez essa incomunicabilidade não seja insuperável. O reconhecimento do valor artístico das obras da arquitetura moderna não se efetivará de maneira ampla sem que haja um prévio investimento na criação ou reforço da memória coletiva, e esta por sua vez não se consolida sem um trabalho ativo de educação – assunto do qual os arquitetos temos descuidado, de há muito. Cada vez menos a arquitetura é reconhecida como matéria de cultura, como ocorre com várias outras manifestações da criatividade humana. E isso não se deve apenas pelo predomínio dos interesses comerciais ou financeiros ligados à realização de qualquer obra arquitetônica, pois que interesses semelhantes também ocorrem em outras atividades culturais, como no cinema ou nas artes plásticas, que mesmo sendo parte da indústria cultural e movimentando recursos de ampla monta, têm seu valor cultural reconhecido e debatido por amplo público leigo.
Outra parte do problema do reconhecimento do valor artístico das obras da arquitetura moderna reside no fato de que os próprios arquitetos cada vez menos reconhecem e valorizam sua cultura disciplinar, e aqui o raciocínio pode ser igualmente repetido: não pode haver valorização desse patrimônio cultural sem criação de memória coletiva com base numa educação ativa. Não é novidade que o ensino de projeto de arquitetura segue sendo, na ampla maioria dos casos, imediatista e anti-intelectual, mal se apoiando em uma quantidade mínima de conhecimentos culturais e arquitetônicos amplos. No próprio meio arquitetônico profissional, o reconhecimento da qualidade (mesmo que não excepcional) das obras da arquitetura moderna está grandemente prejudicado porque os parâmetros, tradicionalmente empregados para que isso seja percebido, vêm sendo progressivamente esfacelados pelo ensino deficitário, pela mal disfarçada ignorância, desprezo e/ou indiferença pela cultura disciplinar arquitetônica.
Voltando à pergunta e à resposta proposta: deve-se outorgar mérito de preservação pelo menos àquelas realizações da arquitetura moderna que apresentarem valor artístico excepcional. Mas, para que isso ocorra de maneira fundamentada, é preciso que esse status seja reconhecido por um coletivo relativamente amplo, incluindo tanto arquitetos, como agentes e educadores, como o público em geral, como formadores e rebatedores de uma opinião coletiva que também seja capaz de identificar essa excepcionalidade e a necessidade de preservá-la.
Não é a resposta completa, nem pretende sê-lo. É apenas, talvez, o começo de uma bela amizade, ou de um amplo debate, que só poderá ser construído com a participação de todos.
notas
1
Artigo originalmente apresentado como comunicação no 2º Seminário DOCOMOMO NO-NE, “Desafios da preservação: referencias da arquitetura e do urbanismo modernos no Norte e no Nordeste”, Subtema1: Referenciais para a preservação da obra moderna, Salvador, jun. 2008.
2
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. “Preservar não é tombar, renovar não é por tudo abaixo”. Projeto, n. 86. São Paulo, abr. 1986, p. 60-61.
3
GUIMARAENS. Ceça de. “Tombar, quae será. A boa tradição de preservar e construir”. Projeto, n. 173, São Paulo, abr.1994, p. 73.
4
Idem, ibidem, p. 74.
sobre os autores
Ruth Verde Zein, Arquiteta, FAU-USP 1977, Mestre e Doutora, PROPAR-UFRGS 2000/5, professora e pesquisadora da FAU- Universidade Mackenzie.
Anita Regina Di Marco, Arquiteta, FAU-USP 1976, especialista em Preservação do Patrimônio Cultural, ICCROM-Unesco 1982.