"A política da moradia popular do franquismo acrescentou às cidades, construindo milhares de habitações, verdadeiros e gigantescos Planos de Extenção."
Uma análise, na década de 70, das construções habitacionais obsoletas localizadas nos bairros periféricos das cidades, isoladas do contexto urbano, habitualmente com ligações difíceis, sem referências de identidade, conduziu a uma reflexão sobre a produção da habitação social. Esta tendência foi marcada com a publicação do livro "A arquitetura da cidade", de Aldo Rossi, uma revisão crítica dos princípios do Movimento Moderno, e também pelas novas teorias ditadas pela "Operação Bolonha", que introduziu diretrizes para a recuperação do patrimônio edificado.
Na Espanha, após a ditadura, com os novos governos democráticos, conjuntamente com as discussões arquitetônicas do momento, se propiciaram modificações nas estratégias no planejamento da habitação social.
Em Sevilha foi criada uma política global de intervenções. Aproximar a habitação social ao tecido urbano, nos limites e vazios do centro histórico e a readaptação de edifícios de interesse arquitetônico foram objetivos da chamada revitalização urbana que utilizou uma revisão nas Leis do Solo Urbano e Planos Parciais, com a finalidade de melhorar a qualidade das edificações.
Historicamente o traçado urbano de Sevilha vem da época dos fenícios, passando pelos romanos, pela fase islâmica, iniciada no ano 712, chegando à reconquista cristã em 1248. Vive o seu apogeu no século XVI com o descobrimento da América, devido a sua posição geográfica controla o comércio com as novas terras, chegando a ser capital social, política e comercial. A cidade passa por crescimentos concêntricos, com construções de diferentes muralhas, sendo a última do século XI e permanecerá quase intacta até metade do século XIX. O traçado das grandes quadras, ainda em funcionamento, vem da época da cidade islâmica. Após a reconquista, estas foram cedidas à entidades religiosas e posteriormente ocupadas por grandes mosteiros, com jardins e hortas, cercados por altos muros.
Em 1837, uma desapropriação de parte dos bens da igreja, realizada pelo governo, liberou grandes superfícies destes terrenos religiosos, provocando uma mudança funcional, e portanto a fragmentação destes, em lotes menores. Fato que permitiu o crescimento da cidade dentro do seu interior amuralhado, adensando o próprio centro.
As construções que caracterizam hoje este centro são praticamente do final do século XVIII e século XIX, salvo os monumentos históricos. A predominância sempre foi o uso residencial e as grandes quadras se definiram por uma ocupação periférica de habitações unifamiliares que seguiram a transformação da tipologia da "casa-palácio", com dois andares e um generoso pátio central porticado de uso unifamiliar.
A moradia social se resolveu de forma espontânea em duas tipologias específicas: as "casas de vecinos", transformação das casas-palácios, subdividindo-se em habitação coletiva; e uma tipologia específica que veio solucionar os centros das grandes quadras, "los corrales", uma ocupação periférica destes miolos, por pequenos comodos dando à uma galeria, criando pátios interiores de grandes dimensões e com estreitos acessos à rua. As infra-estruturas eram coletivas (comparável às dos cortiços paulistas).
Surgem vazios urbanos na cidade, que foram frutos de demolições de edifícios abandonados, fenômeno que se deu em determinada época que a classe média-alta se desloca do centro antigo, devido ao seu estado deteriorado, para um primeiro anel de expansão em urbanizações privilegiadas. Estas casas se transformam em ruínas ou outras vezes foram sub-alugadas, favorecendo o processo de encortiçamento. Fazendo uma comparação, poderíamos citar o caso Campos Elisios – Higienópolis na cidade de São Paulo.
Diferentes atuações se realizam em Sevilha, consolidando-se no ano 1982 com operações no setor norte da cidade, intervenções reflexo das novas estratégias propostas para a habitação social dentro do centro histórico. Estas revitalizações causaram uma revalorização das áreas e a modo de reflexo, despertaram interesse e ativação imobiliária. Hoje, cada dia se torna mais difícil para os organismos públicos proporem programas de habitação nestas zonas. Ademais existe uma grande resistência, dos pensamentos conservadores, à uma arquitetura que possa conciliar o momento atual e revelar-se como uma obra intrínseca desta época.
Atualmente superada as influências do contexto histórico, que teve o seu ponto positivo na compreensão do lugar, mas que algumas vezes deixou marcas profundas na cidade, podemos falar de arquiteturas singulares, sem necessariamente recorrer aos signos historicistas da arquitetura "sevilhana".
Em busca da superação dos condicionantes anteriormente citados, o escritório de Carrascal / Fernandez de la Puente, realizou nos últimos anos, para o Governo Autônomo de Andaluzia, um projeto para habitação social no centro antigo se Sevilha. Buscaram solucionar os problemas a eles surgidos: enfrentar uma rígida normativa de habitação social, bastante ajustada em orçamento e superfícies e responder corretamente as limitações impostas pela comissão do Patrimônio que exigiu o reconhecimento dos diferentes terrenos unificados no projeto. Estas dificuldades definiram o partido do projeto, com um resultado de formalismos e gestos discretos de uma arquitetura branca, marcada por suaves relevos e por passarelas vermelho sangue em busca de melhores comunicações. Uma arquitetura atual, para o centro histórico da cidade, respeitando o seu entorno sem negar o momento em que vivemos.
Memorial explicativo (1)
O projeto está localizado na parte mais alta da cidade, bairro que desde o inicio acolheu o principal núcleo da população, fato que foi comprovado pelas escavações arqueológicas realizadas no terreno, se encontraram restos romanos, medievais, de uma antiga tinturaria, e fundações dos antigos "corrales" (edificações habitacionais comparáveis com as tipologias originais dos cortiços brasileiros); estes serviram para situar os limites das edificações assim como o terreno da Rua Virgenes, agregado ao projeto.
Quando o encargo se efetua e por primeira vez se visita o local, as construções estão quase todas demolidas, com exceção dos restos de uma antiga edificação na Rua Conde de Ibarra. Se trata de um terreno, centro de quadra com 2.724,34m2, com apenas 9,20m de fachada à rua Conde de Ibarra, 17,85m de fachada à rua Vigenes, e uma passagem de pedestre de 1,8m de largura, também nesta última rua. Apresentava um complexo perímetro, resultado das demolições das edificações que compartilhavam paredes, e muitas vezes com a presença de "servidumbre de luces", vãos que dão ao terreno alheio, que deveriam de ser conservados segundo a lei de construção para o centro antigo da cidade.
A comissão do Patrimônio Histórico à que estão submetidas todas intervenções na cidade, recomendava para o projeto o reconhecimento dos antigos terrenos e também a ocupação periférica destes, o que veio a determinar os cheios e vazios da futura construção.
Negadas as tentações de uma nova ordem, indiferente ao perímetro, parecia desejável que o projeto se entendesse como unitário. A própria aplicação da legislação, permitiu que os salas das habitações ventilem para o lote ao qual pertencem e os dormitórios e cozinhas ventilassem ao terreno vizinho, aproveitando uma ambigüidade da lei e criando "servidumbre de luces", o que foi possível por pertencer todos os terrenos ao mesmo proprietário. Desaparecem assim os muros divisórios que fariam ato de presença para delimitar os diferentes terrenos, transformando-se em autênticas fachadas mesmo que as vezes estas quisessem recordar aos outros com a criação de edifícios entre limite e fachada.
O percurso, especialmente cuidado, causa surpresa, produz equívocos dimensionais, e através de labirintos se faz mutável e nova a percepção dos espaços. Uma comunicação por pontes permite reduzir o número de escadas e agilizar os percursos, unindo térreos, galerias e coberturas; estas pontes conduzem aos balcões registrando espacialmente o outro terreno.
A tipologia oscila em função das diferentes construções das parcelas com limites complexos e com programas ajustados próprios das habitações sociais promovidas pelo governo. Construções que por um lado se igualam ao unificar-se pela cor e pelos materiais de acabamento. Destacam entre eles ademais das paredes rebocadas e pintadas de branco, os tramos de fachada de concreto pré-fabricado, G.R.C. (projeção de concreto e fibra de vidro). Estes produzem uma vibração nas fachadas nos casos de invasões dos pátios por edificações anexas para marcar a diferença de altura de algum corpo, ou em fachadas enfrentadas com tratamento tipológico diferente. Nestes casos o sistema de escurecimento se realizam por venezianas metálicas com o mesmo perfil dos paramentos. O dia e a noite fazem que a fachada se feche e abra com múltiplos olhos, como na vigília e no sonho.
notas
1
Fernando Carrascal Calle / José Maria Fernandéz de la Puente Irigoyen. Arquitetos e autores do projeto.
ficha técnica
Obra
63 habitações no Corrales Virgenes-Tromperos
Localização
Calle Virgenes 9, 17 e 19 e Calle Conde Ibarra 5, Sevilha
Cliente
Direção Geral de Arquitetura e Habitação. Conselho de Obras Públicas e Transportes. Junta da Andaluzia
Arquitetos
Fernando Carrascal Calle e José Maria Fernandez de la Puente Irigoyen
Tecnólogos de edificação
José Manuel Rodriguez Cayuela e Rafael Rivera Blancas
Colaboradores
Mabel Regidor, Rafael Rivera e Javier Valdivieso (arquitetos); Javier Hernandez (estruturas); Etinsa (instalações)
Fotos
Duccio Malagamba
Superfícies
Superfície do terreno: 2724,34m2
Superfície construída uso habitações: 5.083,98m2
Superfície construída uso estacionamento: 1.555,85m2
Total superfície construída: 6.639,83m2
sobre o autor
Silvana Rodrigues de Oliveira é arquiteta formada pela Faculdade Belas Artes de São Paulo em 1987. Atualmente realiza doutorado na Escola de Arquitetura da Universidade de Sevilha.