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architexts ISSN 1809-6298


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GUERRA, Abilio. A medida de todas as coisas humanas (editorial). Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 008.00, Vitruvius, jan. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.008/925>.

Quando o ano estava prestes a se acabar – e com ele, também o século e o milênio, apesar de algumas controvérsias intelectuais e desprezo do grande público que preferiu comemorar a memorável data no ano anterior – enviamos uma mensagem de ano novo para nossos leitores. Como está insuportavelmente batida a mensagem Feliz Natal e Próspero Ano Novo e suas diversas variações, cometemos o desatino de tentar inovar. Certos que todos entenderiam o espírito da coisa, enviamos aos que insistem em nos acompanhar a mensagem: "Vitruvius deseja aos amigos, colaboradores e leitores que no próximo século o homem seja a medida de todas as coisas". Diante da reação de alguns, outra frase feita serve bem para a ocasião: se arrependimento matasse... Bem, se arrependimento matasse, não estaria escrevendo o primeiro editorial do ano com a obrigação de me explicar, afinal entrou areia ou, para usar uma outra frase popular, entrou água e adernou.

É bom que se diga que todas as mensagens foram muito educadas e algumas muito interessantes, como é o caso da subscrita por Marco Leão Gelman e Carmen Baldo Correa, publicada na seção "Email do leitor". Uma passagem desta serve como uma luva para ilustrar o argumento reiteradamente apresentado: "o homem, desde o passado remoto da nossa era, tem essa visão antropogênica e tem dado no que tem dado: a humanidade sem fraternidade e um planeta espoliado e poluído, como toda a sociedade humana, com ataques desmedidos aos recursos naturais, à flora, à fauna, ao clima..." Ora, não concordo em absoluto com esta visão, pois ela me parece por demais apressada em desconsiderar aspectos histórico-culturais fundamentais.

Se há uma coisa que a tradição ocidental nos ensinou – e, ao que parece, jamais se conseguiu colocar em prática – é que há um lugar no mundo para o Homem: o animal que conseguiu erigir a arte, a cultura, a sociedade e a própria cidade, construídos artificialmente em cima de uma natureza sombria (sombria, evidentemente, para um ser que de repente conseguiu se ver refletido no espelho do cogito...). Em um mundo onde as relações institucionais e intersubjetivas são medidas por valores rebaixados que são forjados pela imagens publicitárias vazias – e muitas vezes nem tão vazias assim, como é o caso de bundas e seios que abundam as revistas que vendem... – nunca é demais lembrarmo-nos desse ensinamento maior.

Já disse Walter Benjamin – um dos maiores pensadores deste século – que a história da cultura é a história da barbárie. Não há como negar. Contudo, a barbárie imperante sempre foi a luz das trevas, do rebaixamento do homem, de sua escravização intelectual e física. As desconfianças frente aos descaminhos da técnica e à supremacia do mercado sobre a democracia sempre foram ao menos intuidas pela "Razão". O aviltamento deste termo e sua equiparação à própria essência do capitalismo – e sua ausência de valores "humanos" tanto na sua face "positiva" do consumo como na negativa da destruição do meio ambiente e do próprio homem – foi um dos maiores ultrajes de nossa experiência intelectual recente.

Um dos grandes problemas de diversos movimentos sociais contemporâneos "libertários" (os de verdade e os de mentira, parte substancial deles banhados pela contracultura e sua aversão ao conceito) é a desconsideração pelo passado filosófico ocidental e a pretensão – Soberba, na terminologia de Platão – de inaugurarem a "verdadeira" compreensão da existência humana. Para que isso faça sentido, é preciso misturar tudo, colocar tudo no mesmo saco da "história da injustiça e da destruição". Todos os homens (e mulheres!) que se alinharam na fila dos bem intencionados tornam-se assim ingênuos, mal intencionados ou simplesmente "maus".

Mas com a água do banho muitas vezes vai junto a criança: foi justamente a fissura aberta pelo Renascimento e radicalizada no Iluminismo que permitiu ao mundo moderno desconstrur antigas crenças fundadas em arcaicos preceitos religiosos de que o mundo pertence ao homem, para seu uso e abuso. Tal como dizia o antigo adágio renascentista – veritas filia temporis ("a verdade é filha do tempo") –, não há como negar que a visão ecológica do século 20 é final de um processamento intelectual que se origina ali... A cultura ocidental que deságua neste princípio de século 21, por mais injusta e imprudente que possa ser na atual hegemonia do mercado, traz em seu âmago um desejo de justiça, de reparação e de igualdade que insuflou as mais diversas utopias.

Dizer que o homem é medida de todas as coisas é dizer que as coisas do homem devem ter a medida do homem, e que o homem só existe em conformidade com sua ambigüidade constitutiva – um animal que pensa. Não há como abdicar de nenhuma dessas duas faces sem abortar a experiência humana na face da terra e do próprio universo. Uma das regras básicas do cosmos é a entropia, a propensão à desordem. Segundo Freud (outro que se filia na tradição iluminista), uma das pulsões fundamentais do homem é o desejo da morte. Portanto a existência humana é de uma radicalidade ímpar, um equilíbrio tênue entre os abismos do caos e da não existência. Ser "humano" é compreender e viver essa radicalidade.

A esperança – ingênua, mas necessária – que nos evoca um novo século e um novo milênio me permite sugerir um liame com a tradição que eleva o homem ao pautar sua conduta por valores condizentes com uma existência coletiva feliz. Somente o homem, com o uso da Razão e da Experiência, fundado numa compreensão profunda de seu destino no cosmos, é que poderá encontrar um caminho para um futuro digno e condizente com a Criação.

É por tudo isso, portanto, que não me envergonho e não me arrependo da frase infeliz e reitero aqui o meu voto de que no próximo século o homem seja – finalmente – a medida de todas as coisas.

sobre o autor

Abílio Guerra é professor da FAU PUC-Campinas e editor de Vitruvius.

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