Em matéria anterior, publicada na editoria "Minha Cidade" de Vitruvius, referimo-nos a uma questão concernente o Museu Nacional de Israel (1). Por associação de pensamento, queremos relatar de outro logradouro da cidade, não menos merecedor de atenção.
No registro universal da infâmia e do mal, nada até hoje se iguala ao Holocausto dos judeus da Europa.
Depois que além do aniquilamento físico se processou também a destruição de uma cultura de mais de 1000 anos, dona de matizes específicos mas ligados por um mesmo denominador comum nas comunidades judaicas dos diversos países, é compreensível e natural que os sobreviventes aspirem a fixar uma memória tangível dos milhões de vítimas e dos aspectos dessa cultura.
Isto se manifesta de formas diversas, e em muitas cidades da Europa e da América foram erguidos nos anos do após-guerra, memoriais, monumentos e museus com esse propósito: o Museu Judaico de Berlim, o Museu do Holocausto em Washington, Museus Judaicos em Amsterdã, Frankfurt, Praga, Budapeste; monumentos às vítimas em Paris, Veneza, São Paulo ou Tel Aviv.
Parece-me porém que quase nenhum gesto arquitetônico ou artístico foi até hoje capaz de tocar no âmago da incomensurável tragédia, e as tentativas que eu conheço nesse sentido – umas melhor sucedidas, outras menos – tendem a cair no pecado da montagem cenográfica, e não conseguem transmitir em profundidade as múltiplas faces (desde a humana até à moral e até à teológica) do monstruoso acontecimento histórico.
Israel é um país que nasceu das cinzas do Holocausto. O imperativo de imortalizar sua memória constitui um ponto central e silenciosamente presente em todo o processo de cristalização de uma nova cultura israelense, assim como a lembrança inconsciente do aniquilamento indefeso orienta toda a atitude política dos governos de Israel desde o seu início.
Também aqui se estabeleceram numerosos marcos de memória. O mais importante, e o que assume o caráter de mausoléu martirológico nacional é o chamado "Yad Vashem", um vasto complexo que abrange uma extensa área colinosa da cidade de Jerusalém: incluem-se nele um austero grande local de recolhimento e oração, um museu documentário do anti-semitismo nazista desde o início até o extermínio, um bosque comemorativo (chamado "Floresta dos Mártires"), uma "Alameda dos Justos" onde cada arvore plantada traz o nome de pessoa que participou em algum esforço de salvação dos perseguidos; um instituto de pesquisa e arquivamento históricos; e diversos monumentos comemorativos de episódios específicos do martírio, disseminados no grande parque cuja atmosfera serena tem muito do cemitério, sendo cada um deles obra de outro artista.
Muito focalizado é o "Memorial da Criança", projeto do arquiteto Moshe Safdie, comemorativo do milhão e meio de crianças vitimadas pela barbárie.
Safdie é figura conhecida no campo da arquitetura israelense, tendo executado aqui diversos projetos. Em alguns infelizmente deu prova de falta de sensibilidade, como no conjunto residencial e arranjo panorâmico aos pés da muralha da Cidade Velha, em proximidade da "Porta de Jaffa"; recentemente foi divulgado um projeto seu para o "Centro Rabin para a Paz", uma arrogante mistura de afirmações eclético-modernas pouco condizente com a personalidade do homenageado e com o espírito de sua ação política.
No Memorial da Criança o arquiteto recorreu a expedientes audiovisuais que se apoiam em efeitos obtidos pelo uso de espelhos que multiplicam as imagens projetadas dentro de um ambiente subterrâneo imerso na escuridão, enquanto aparelhos de som enumeram em continuação nomes de crianças assassinadas.
O trabalho pouco tem de uma comum obra de arquitetura: a arquitetura na verdade é inexistente, já que mergulhada nas trevas do local. E nisto há um ponto de crédito – uma vez que a finalidade não pode ser a de pôr qualquer foco sobre aspectos físicos que desviem o pensamento do objeto do mausoléu.
Mas a solução audiovisual adotada não consegue elevar a experiência emotiva a um grau condizente com o tema, e se restringe a um "espetáculo" que tem mais do planetário ou do "túnel fantasma" do que do memorial de tão tremenda catástrofe. E nisto se manifesta um desvio do arquiteto de sua função de artista coordenador dos múltiplos fatores práticos ou espirituais, e das variadas pessoas e entidades que concorrem para a materialização de sua obra: pois que neste caso – muito mais do que em qualquer projeto de arquitetura – se exigia evitar com humildade qualquer tendência de evidenciar a própria pessoa ou o próprio trabalho: coisa que voluntária ou involuntariamente não aconteceu com Safdie, senão nas intenções pelo menos no resultado.
Mas apesar disto, e apesar da não unanimemente aceita qualidade artística de alguns dos elementos comemorativos espalhados no grande parque, o conjunto impressiona pela sua atmosfera e pela dolorosa consciência que paira no ambiente. E nisto está o verdadeiro monumento, mais do que na efêmera avaliação de marcos visuais plantados por arquitetos, artistas gráficos ou escultores.
E a mensagem transmitida pelo "Yad Vashem" é mais eloqüente do que todas as comparações (verdadeiras ou "fabricadas") com que a "mídia" procura colocar acontecimentos políticos nos dias de hoje sob o mesmo prisma, dando-lhes uma resposta muda que os coloca na devida perspectiva e na devida proporção (2).
notas
1
CORINALDI, Vittorio. "A ampliação do Museu de Israel". Minha Cidade, n. 004. São Paulo, Portal Vitruvius, set. 2000 <http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc004/mc004.asp>.
2
Fotos: Yad Vashem The Holocaust Martyrs' and Heroes' Remembrance Authority - www.yadvashem.org/.
sobre o autor
Vittorio Corinaldi é arquiteto formado na FAU USP e correspondente Vitruvius em Israel.