A expulsão até o vácuo do tempo
Expulsar os habitantes dos centros das cidades é uma prática política corrente e hoje já muito conhecida. O que é mais recente e problemático é a forte tendência que consiste em expulsar o conceito do centro, a Idéia do centro das Megalópoles, como também o de tornar inferior, quase estrangeira, a forma cidade ao interno da Megalópole. O que é que se manifesta das forças que imprimem suas marcas sobre o processo em curso desse rechaço, desse apagamento do que foi durante todo o período de aquisição de poder da burguesia, a figura mesmo do poder, a cidade central?
Tudo se passa como se os imperativos do novo ciclo da mercadoria, inaugurado após a derrota do fascismo e aparentemente blocado pelo desenvolvimento de seu verdadeiro-falso rival o sistema do socialismo real, impunha que fosse neutralizada ou lavada (assim como se lava o dinheiro sujo) a memória inscrita na cidade. Em primeiro lugar evidentemente, a memória das lutas populares que ali foram conduzidas, mas também – e ainda mais – a memória do prazer das festas, dos prazeres – gratuitos – que ali tinham desabrochado. O que é fundamentalmente reprovado à forma cidade – obsoleta aos olhos do mercado – é que ela não serve, mas que ela propõe, oferece – palavras simplesmente obscenas para um economista sério – nada menos que o desejo de ali viver. Para parodiar Alphonse Boudard, que num livro delicioso intitulado Café du pauvre lembrava que fazer amor foi durante muito tempo a única distração possível – por ser gratuita – do pobre, poderíamos ver no desaparecimento dos cafés no interior das cidades e ainda mais na sua interdição formal nos subúrbios, a vertente proibitiva, sob o pretexto de higiene, da mesma rejeição terrorista do prazer e do estar junto.
Considerar que o ato de estar junto seja estressante e que o prazer seja solitário são os dois pilares da ordem megalopolítica. A "era do vácuo", promovido o horizonte intransponível do individualismo democrático liberal, supõe e impõe uma deterritorialização da cidade dos citadinos, um esviscerar – onde o célebre buraco do Halles foi durante tanto tempo o símbolo – que escava até o vácuo do tempo. Que desapareçam os traços do que existiu, do que aconteceu, esta é cada vez mais freqüentemente a única idéia que preside às decisões e às "realizações" urbanísticas. E não somente em reconstruções de cidades como Berlim e Beirute. Não é somente para fazer desaparecer a lembrança da vergonha e da carnificina que uma estética da limpeza, do "remendo" e da renovação se coloca em ação, mas mais profundamente, como se gabam todos os designers, para desmaterializar o tempo, retirar-lhe a consistência, destruindo ou falsificando as suas balizas testemunhas.
Perec descreveu magistralmente essas "espécies de espaços" da cidade pouco a pouco esvisceradas de formas urbanas, como se eles minassem do interior o vocabulário e a sintaxe citadina, assim como ele se divertiu fazendo no seu livro Disparition, tirando da língua francesa todas as palavras terminadas em "e". A rua onde ele nasceu, no alto de Belleville, perde seus números, depois suas lojas, depois seu traçado. Transformou-se numa praça, num espaço verde. Ele não se opõem aos jardins, mas o que o incomoda é a inconsciência com a qual é tratada a questão da forma. Pois segundo o velho adágio, "a forma dá esse rei". A forma dá o ser à coisa. Quando se destrói a forma rua, a "coisa" cidade não existe mais. A forma não é um epifenômeno, mas constitui a própria essência do real. A forma não é separada da matéria e não se impõe do externo. Bem ao contrário, a matéria se enforma dela mesma e por ela mesma.
O indivíduo, seja ele o mais genial dos urbanistas arquitetos ou o mais ardente defensor da natureza e dos jardins é incapaz de criar uma forma. A forma urbana é o resultado de um trabalho coletivo de gerações. A cidade não é um "espaço arquitetônico" mas um texto a tornar visível e a decifrar, pois os mortos pesam sobre a vida dos vivos pela existência dos lugares onde viveram, e que permanecem como memória da passagem deles e entulho para os vivos. A cidade é a conjunção intrínseca entre sua forma e o conjunto de sua história. Quando formas que guardam a memória da história da cidade desaparecem, é a cidade que desaparece.
Essa expulsão da memória da cidade é tanto mais forte quanto ela parece estar sendo mais conservada. A defesa obsessiva dos centros "históricos", a museologização generalizada dos bairros "antigos" transformam as formas urbanas em clones delas mesmas, cenário de uma peça da qual a ação e os atores fugiram, e onde não perambulam que figurantes do texto real, um pouco como nessas vilas Potemkin onde a imperatriz da Rússia admirava fachadas magníficas que dissimulavam o vazio das casas e dos habitantes.
A Europa ainda possui magníficas vilas Potemkin: Roma, Veneza, Praga, Paris. Mas elas ainda são lugares, ou imagens de lugares, nostalgias de lugares? Não são ruínas, como as que restam dos grandes impérios desaparecidos, mas ruínas da idéia da cidade, uma vez extirpada da Megalópole e encontrando um refúgio na cabeça dos que são privados disso. Tudo se passa como se o desaparecimento da cidade na época das Megalópoles pudesse ser comparado ao dos Índios no momento da conquista da América do Norte. Ele não implica necessariamente na morte física. Mas o deslocar cada vez mais longe da irrupção do Americano significa o desaparecimento do Índio. A presença engendra a ausência. O processo de deslocamento além do território constringe os Índios à decadência histórica. Eles estão em reservas, como os "bairros reservados" das Megalópoles, bairros chamados quentes por antífrase. "Quentes" porque são pretendidamente bairros do triunfo do sexo, única prova da existência do corpo, de outro lado completamente ausentes ou arruinados, bairros na realidade hiperbóreos, pois o próprio sexo se dessexualisa transformando-se no seu espetáculo tarifado, e o corpo se enrijecesse quando o contato com o outro corpo passa pela prótese do artifício.
Habitar a ausência ou a ausência de habitação. Das cités (1) aos SDF (2). Da guerra das memórias à ruína da memória comum
Uma grande parte das dificuldades dos subúrbios provêm do fato que eles são o terreno e o objeto de um conflito de memórias que pode chegar à guerra entre memórias. A função essencial da cidade desde a polis consiste em unificar e proteger atrás de seus muros uma memória. Os homens livres, os "Burgers", os cidadãos delimitam o espaço mental e jurídico da comunidade que se territorializa de uma outra maneira, que sob a forma tribal, de vilarejo ou nômade.
Para passar de um lugar a outro, a distância não é puramente geográfica. O deslocamento, a viagem é simbólica, e o que está em questão é a identidade dos que se deslocam por vontade própria ou forçados. Desarraigamento é o nome dessa partida sem certeza da chegada e subúrbio o sofrimento dos que param no meio do vau: nem de um lugar, nem de um outro, e por conseqüência sempre de segunda geração, não mais de lá e ainda não daqui. Lembrando de alhures e não querendo inscrever o seu cotidiano, pois o traumatismo não pode se memorizar. O subúrbio é inicialmente a inexistência causada pelo desarraigamento, a ferida da memória perdida para os que ali se perdem ou ali são confinados, e conquista progressiva do lugar onde está estocada a memória dominante, a cidade na qual o subúrbio é a ausência. O subúrbio não é um lugar mas o processo pelo qual o lugar dominante é ingerido pelos que são rejeitados, e que desde então não têm outra alternativa que a de ali dissolver sua memória ou de forjar uma que os constituirá como comunidade de abandonados. O subúrbio não é o fora da cidade como pôde ser a vila ou o campo, mas é o processo da perda de identidade: seja alienação, seja realização em um novo território, não é um ponto alienado à cidade, mas estrangeiro à cidade e ao campo, é o tornar-se ausência da memória da cidade e do campo; o tornar-se proletário, o tornar-se emigrado.
A história dos subúrbios industriais na França e na Europa traça o longo movimento de expulsão do campo e a dissolução progressiva da memória camponesa não por absorção pura e simples de uma memória citadina burguesa hegemônica, mas por uma mitologização de um ethos de oposição e de marginalidade. Uma nova memória popular se constituiu pouco a pouco em torno da qual puderam ser construídos os lugares de vida. Foi justamente porque lutas se travavam nos lugares de trabalho que a reunião, o encontro foi possível. A comunidade desorientada de explorados, não tendo em comum que sua exploração e o projeto de se livrar dessa situação encontrou o caminho de uma sociabilidade antisocial. O subúrbio não existia que como concentração potencial dos que tinham interesse e vontade de se debater contra a ordem dominante da cidade. Ou quando a possibilidade ou a vontade de luta cessava – e primeiramente porque, por causa do desemprego, não existiam mais condições materiais e espaciais para a reunião – o subúrbio figurava a depressão. Depressão. Esvaziamento do espaço e do tempo, buraco sem fim, desmantelamento de referências, ausência. Nada.
Atualmente é o status das "cités". Mas como habitar, não o vazio ou a ruína, mas o nada da comunidade? Em Pierrot mon ami, livro fundador de Raymond Queneau, o herói persegue sua busca de sentido, concretiza seu aprendizado da vida deambulando nos limites da cidade, fêtes foraines (3), terrenos baldios, loteamentos miseráveis. Seguindo a empreitada cartesiana do Cogito na época dos subúrbios proliferantes, ele se vê interrogado por um Sócrates da periferia.
"Em que você está pensando, Pierrot?"
"Em nada."
"É melhor do que não pensar".
É melhor habitar o nada do que não habitar? Sinistra alternativa na época da economia mundo das Megalópoles: renegados fora do centro para serem alojados, ou sem-teto no centro da cidade? Mesma devastação do corpo sujeito, seja por aniquilação da sociabilidade, seja por alteração, desposseção e mesmo destruição de sua integridade fisiológica. Corpos na falta de um comum que os constituiria em uma partilha daquilo que reconecta e singulariza os sujeitos falantes. Ausência de espaços privados para corpos singulares que não podem nem mesmo gozar do primeiro direito, o habeas corpus, a proteção do próprio corpo.
A era das Megalópoles corresponde à extensão do que tinha notado o jovem Marx, a aparição de uma "classe que não é mais uma classe mas a abolição de todas as classes". Comunidade inconfessável para retomar a admirável expressão de Maurice Blanchot, (des)feita do que não se pode contar nem se identificar. O apartheid espacial se estende à época da abertura generalizada aos fluxos de capitais e o fechamento não menos generalizado das migrações humanas.
A identidade nacional representa simbolicamente e politicamente o papel da antiga ruptura entre cidade e campo, entre os que têm direito à polis, à cidadania e os que são privados dela.
Paradoxalmente a Megalópole reinscreve o significado nacional, expulsando desse fato o teor extranacional que se amarrava às grandes cidades e reinscreve o fechamento de identidade onde triunfava o cosmopolitismo deterritorializado, desnacionalizado. É no interior da Megalópole que se aloja o estrangeiro: lógica do apartheid e não simplesmente do gueto. Ou então dispersão do gueto, disseminação do enclausuramento. As Megalópoles gigantes da América Latina, México ou São Paulo, desse ponto de vista, figuram e prefiguram essa reterritorialização das cidades transnacionais e cosmopolitas marcando espacialmente os núcleos de pertinência não mais em classes ou mesmo em nacionalidades diferentes e antagonistas, mas a mundos incomensuráveis.
Essas Megalópoles do terceiro tipo inventam uma nova idéia da Cidade mundo que seria justo designar Cidades-mundos. Elas possuem a estranha qualidade de contradizer o que continha a antiga idéia do Urbs, o cosmopolitismo. A Megalópole segrega muitos mundos uns ao lado dos outros, ignorando-se e desfazendo-se uns aos outros. Tal bairro de São Paulo se encontra no topo de uma hierarquia mundial, religada aos seus homólogos de Nova York, Paris, Londres, Tóquio, e reciprocamente tal cité do Blanc Mesnil ou de Chanteloup les Vignes da Megalópole parisiense podem se comparar às favelas do Rio ou da Cidade do México. O que é glorificado pelos urbanistas modernistas como o novo pensamento em rede, substituindo as antigas determinações tipológicas da cidade, é simplesmente o apagamento da questão do habitar.
Pois nunca um corpo humano, não mais que não importa que outro corpo vivente, habitou em uma rede. O "pensamento" da rede é a ideologia do exílio da cidade ao interno da Megalópole, a nova forma que adota uma política do controle dos corpos, versão soft daquilo que em tempos mais cruéis (que podem retornar) foi empreendido com a intenção de anulá-los e de exterminá-los.
A ausência dos lugares para habitar, freqüentemente, sem mais, tudo antecede. Expulsar, cancelar, destruir; o século tragicamente demonstrou que essa lógica funciona.
notas dos tradutores
1
Cité, termo francês (todas as vezes que este termo for empregado no texto será nesta acepção), que significa: "grupo de imóveis, de edifícios, munidos de equipamentos (estacionamentos, áreas de jogos, comércios)", Dicionário Le Petit Robert, 1993. Este grupo de imóveis teoricamente deveria ter uma vida autônoma das cidades que os acolhem, na realidade abrigam todas as classes desfavorecidas e emigradas e não gozam quase de nenhum serviço e de nenhuma área de lazer.
2
SDF – Sans Domicile Fixe – Sem Domicílio Fixo, os sem-teto franceses.
3
Literalmente "festas forasteiras". Espaço itinerante e periódico, organizado por nômades como os circenses, que funde várias funções: parque de diversões, teatro ambulante, circo, espetáculos diversos.
[tradução Flávio Arancibia Coddou e Paulo Roberto Dizioli agradecimento a Etienne Pierres e Valentina Moimas]
sobre o autor
Jean-Paul Dollé é filósofo, escritor, crítico de arquitetura e professor da École de Architecture de Paris La Villette. Subscreveu em 1973, junto com Christian de Portzamparc, Roland Castro, Antoine Grumbach, Jean-Pierre Buffi, Guy Naizot e Gilles Olive o Manifesto do Grupo dos Sete. Foi co-fundador de Banlieue 89 e da École des Hautes Études Urbaines, em 1992. Foi redator chefe de Lumières de la ville no período 1989 – 1994 e membro da Delegação Interministerial da Cidade de 1989 a 1993. É autor de diversas obras, entre as quais Odeur de la France 1977, Fureurs de la ville 1990 e L’Insoumis 1997, todos pela editora Grasset. Esteve em Campinas em 1998 a convite da revista Óculum.