Um olhar superficial sobre a arquitetura moderna recifense identificará diversidade e confluência. Diversidade nos tipos edilícios (de residências a postos de saúde, instituições de ensino, unidades fabris e simples equipamentos urbanos) e nas suas características: algumas exploram a plasticidade dos materiais de construção, outros exacerbam a riqueza inerente às estruturas rigorosamente racionais. Algumas são luxuosas, outras, modestas. São, na sua maioria, de fundo privado, mas algumas obras públicas, por sua excepcional qualidade, prestam-se como marcos referenciais.
Por outro lado, esse estoque apresenta semelhanças que permitem seu agrupamento em categorias distintas: brutalistas, racionalistas ou regionalistas. Porém, são certos padrões típicos, mais do que estilísticos, que têm levado muitos estudiosos à considerar a existência de uma escola de arquitetura na região.
Bruand identifica uma consonância entre as formulações teóricas de Lúcio Costa e uma certa arquitetura produzida em Recife, observável no empréstimo de formas e técnicas construtivas remanescente do fazer colonial, e na exploração sistemática de novos conceitos modernos. O autor destaca o carioca Acácio Gil Borsoi e o português Delfim Amorim, radicados no Recife no começo dos anos 50, como profissionais chave na renovação e consolidação do ideário moderno na região. Ressalta, porém, que a obra de Amorim, tanto do ponto de vista das idéias, quanto das suas realizações, teria maior identificação com a matriz carioca de Costa. Essa relação Costa-Amorim tem sido sistematicamente utilizada para caracterizar a gênese da arquitetura moderna recifense, reforçada com o conhecimento do ambiente no qual Amorim se estabeleceu profissionalmente no Porto, Portugal, na década de 40. Fernandez (2), além de outros, destaca a influência marcante da arquitetura moderna brasileira, particularmente do modelo de confluência entre tradição e modernidade como conceituado por Costa, naquela geração de arquitetos. As bases para o surgimento da escola do Recife teriam sido, portanto, a conjugação das idéias de Costa, adaptadas ao contexto local, principalmente através da contribuição sistemática de um educador de sólida formação cultural – Amorim, com os aspectos próprios do local, além da natural contribuição de diversos arquitetos de excepcional qualidade. Nas palavras de Bruand, "é cedo demais para se falar de uma verdadeira escola do Recife, homogênea e original, mas é evidente que esta possibilidade não pode ser excluída" (3).
Seria possível argumentar em favor de uma escola de arquitetura regional unicamente mediante a identificação desses tipos? Argumentar-se em favor de uma escola de sabor regional deveria pressupor que, além das similitudes perceptíveis à superfície da arquitetura, propriedades comuns deveriam estar presentes mais profundamente no entendimento e concepção arquitetônicas. Estariam, portanto, presentes em princípios ou pressupostos assumidos, consciente ou inconscientemente, pelos representantes dessa escola.
Escola e escolas de arquitetura
A palavra escola tem origem no grego skholé, denotando lazer. Posteriormente assumiu a acepção de "lazer usado para argumentação intelectual e educacional" (4). Escola também significa o edifício que abriga o ofício de educar. Por extensão, escola também descreve uma forma de pensar, de ver o mundo. Uma escola é formada por um grupo de pessoas que compartilham ideais; paradigmas objetivamente formulados.
A literatura também é rica em descrições de escolas regionais, contemporâneas ao fenômeno do Recife, fundadas na crítica ao modernismo universal e na busca por identidades locais. Essas escolas apresentam um padrão de ocorrência no tempo e no espaço: surgem no pós-guerra, quando as ondas do progresso tecnológico e as promessas de democracia e desenvolvimento social encontraram no projeto moderno a resposta àqueles anseios; e em regiões de clima tropical, onde as peculiaridades culturais e climáticas definiram o ambiente crítico para o estabelecimento de procedimentos apropriados para suas proposições arquitetônicas. Surkin sugere que foram exatamente essas características climáticas que possibilitaram a difusão de conceitos modernos, pois "modernism adores a temperate climate and a shadow-crisping sun to allow its spaces to flow sure and clear" (5).
Um exemplo dessas escolas regionais é a chamada Escola de Sarasota, dos arquitetos Twitchell e Paul Rudolph. A filosofia fundamental dessa escola, segundo Howey (6) teria sido formulada por Rudolph, ainda em 1947: a) clareza construtiva; b) máxima economia de meios; c) volumes simples, penetrantes vertical e horizontalmente; d) Clara geometria sobre a paisagem da Flórida; e) honestidade nos detalhes e nas conexões estruturais.
Estes seriam os 'códigos de conduta projetiva' que balizaram a atuação do grupo de Sarasota. Teria sido, portanto, a existência de um mestre (Twitchell) e seu brilhante aprendiz (Rudolph); a compreensão de arquitetura como expressão artística, a exploração dos avanços técnicos e estruturais, a agregação de jovens e entusiastas estudantes e arquitetos, e o relativo isolamento das suas realizações, que permitiu o estabelecimento da escola de Sarasota. Em síntese, a comunhão de um mestre e seus aprendizes, no exercício de um ofício.
Alguns aspectos diferenciam a experiência americana e a recifense. Primeiramente, a Escola de Sarasota surgiu e se afirmou exclusivamente no campo profissional. Parecem ter brotado da produção singular de alguns arquitetos, cujas obras, divulgadas através de periódicos, palestras e pela visão crítica de terceiros, foram interpretadas e amadurecidas pela agregação contínua de novos profissionais, com suas visões e habilidades particulares. No caso particular do Recife, essa aglutinação se deu em torno do ambiente acadêmico-profissional, razão pela qual certos ensinamentos se perpetuaram no espaço e no tempo.
Diferente de Twitchell e seus seguidores, os arquitetos recifenses não estabeleceram objetivamente tais códigos de conduta projetiva porém, na diversidade de expressões arquitetônicas recifenses parece ter existido aspectos fundamentais que conferiram um modo produtivo comum. Esses princípios estabeleceram os limites para a criação do bjeto arquitetônico. Diferente dos cinco pontos de Rudolph, não foram explicitados em forma de manifesto, mas como paradigmas para a formulação do objeto arquitetônico.
O paradigma dos setores
O paradigma dos setores estabelece procedimentos projetivos que definem a ordenação do plano, e em alguns casos sua expressão volumétrica, a partir do agrupamento de atividades afins em setores funcionais. Presente na história do fazer arquitetônico, esse procedimento classificador assume papel paradigmático com a tentativa de sistematizar e racionalizar o processo de criação arquitetônica, como inaugurado por teóricos do século XIX, como Viollet-le-Duc (7) e Robert Kerr (8), e desenvolvido, entre os anos 20 e 30, na Alemanha, por Klein (9) e Neufert (10) em seus estudos sobre metodologia de projeto; por Kennedy (11), nos anos 50, e por Chermayeff, Alexander (12) e Broadbent (13), nas décadas de 60 e 70.
Os métodos de projeto foram essenciais na renovação dos procedimentos pedagógicos das escolas de arquitetura, substituindo historicismo e modelismo das Belas Artes, por procedimentos mais objetivos e científicos, adequados ao projeto moderno. Nas escolas, os estudantes eram introduzidos, como parte de uma abordagem analítica do projeto, a procedimentos metodológicos auxiliares nas primeiras etapas de resolução dos problemas arquitetônicos. O método consistia em listar as atividades que seriam desenvolvidas no edifício e classificá-la em grupos ou setores, de acordo com suas similaridades ou relações. A etapa seguinte consistia em representar os grupos como manchas (diagramas de bolhas), depois representados como nós em um grafo, e uni-los através de conexões estabelecendo as relações funcionais entre eles. Na sua fase inicial, os estudantes examinavam o problema apenas do ponto de vista funcional. O diagrama lentamente assumia definições arquitetônicas, como adjacência e conectividade entre espaços, forma e dimensão. Esperava-se que o plano final do edifício emergiria do refinamento natural desse processo (14).
A aparente simplicidade do método, no entanto, esconde a abrangência e complexidade de seus efeitos na arquitetura, como pode ser observado através das três naturezas do paradigma dos setores – a metodológica, a social e a espacial, repercutem. A primeira está expressa nos procedimentos projetivos, como descritos acima. Seu papel está em limitar o campo de possibilidades de arranjos, dentro dos quais o arquiteto pode trabalhar. A segunda, de natureza social, define as regras, conscientes ou inconscientes, que o arquiteto deve atender para satisfazer requerimentos de ordem sociocultural. Finalmente, a natureza espacial, delimita a possibilidade de arranjo espacial, pelo isolamento dos setores componentes.
Os efeitos do paradigma dos setores podem ser percebidos nas transformações do espaço da moradia recifense nos últimos séculos. As residências pré-modernas (coloniais e ecléticas), eram caracterizadas por planos de alta permeabilidade e grande flexibilidade quanto ao uso de seus espaços. Um abrir e fechar de portas podia restabelecer relações de profundidade e visibilidade entre espaços contíguos e relativamente distantes. Nesse caso, os planos podem ser entendidos, primariamente, como manifestações sociais, controlados por códigos de comportamento, o que significa dizer que o plano flexível é ajustado aos diversos momentos de interface entre seus moradores e entre eles e visitantes.
Por outro lado, as residências modernas, geradas sob o paradigma dos setores, expressam mudanças significativas nos modos de morar e de conceber o espaço doméstico. Na casa moderna, em um novo ambiente doméstico, mais fluído e sem portas, é a organização espacial que define as barreiras entre visitantes e moradores. As portas, que eram utilizadas para restringir o movimento e a visão nas casas pré-modernas, são substituídas por arranjos espaciais que dificultam acessos, ao mesmo tempo que ampliam os campos visuais. Isto pode ser percebido pela definição mais clara dos setores funcionais domésticos e pela drástica redução da permeabilidade do sistema espacial, o que significa um maior controle de movimentos na habitação. Neste sentido, pode-se afirmar que as residências modernas são dominadas por arranjos espaciais, menos controlados por regras de conduta social. Essas residências modernas, ao reforçarem certos requerimentos de natureza funcional (organização por setores, separação de fluxos, etc.), estabelecem relações fixas entre espaço e uso, sendo menos flexíveis às mudanças na configuração e uso dos espaços. Desse modo, elas se tornam sincronicamente orientadas, e não diacronamente adaptáveis. A flexibilidade do plano parece ser mais um mito do projeto moderno (15).
O paradigma ambiental
O paradigma ambiental pode ser descrito pela necessidade de adequar a nova arquitetura às peculiaridades do clima quente e úmido. Ele está presente desde os anos 30, tanto na obra pioneira de Luiz Nunes e seus colaboradores, (16) quanto na obra privada e diversa de Mounier (17). Percebe-se na insistente investigação de Mário Russo por soluções mais adequadas para o conjunto de edifícios do Campus da Universidade do Recife, refletida na obra de seus assistentes, Maurício Castro, Reginaldo Esteves e Heitor Maia Neto.
Porém, tem-se maior evidência deste paradigma na multiplicidade de experimentos realizados pelas sucessivas gerações de arquitetos, no sentido de permitir uma perfeita adequação da arquitetura moderna aos condicionantes climáticos locais. Dois aspectos caracterizam o exercício continuado dos arquitetos para atender satisfatoriamente ao paradigma ambiental. O primeiro, é o uso limitado de documentos técnico-científico por parte dos profissionais. O segundo, era o experimentalismo, incentivado pela avaliação intuitiva das propostas projetivas realizadas. A conjugação desses dois fatores, possibilitou o desenvolvimento de princípios genéricos para a construção de edificações no trópico úmido, posteriormente sintetizados por Holanda (18), em seu singelo, mas seminal, Roteiro para Construir no Nordeste.
Com o singelo nome de roteiro, mas com a justa pretensão de definir princípios para se construir no Nordeste – de clima quente e úmido, apenas, a edição reflete o caráter intuitivo da experiência recifense. O roteiro estabelece princípios e não técnicas; define procedimentos, sem estabelecer índices de desempenho de edificações. Evitando uma abordagem técnica, Holanda permitiu a difusão daquelas idéias e a manutenção do mesmo espírito inventivo e especulativo. Se as soluções geradas não apresentavam um desempenho técnico excepcional, pelo menos atingiam rendimentos bem acima daqueles que não seguiam aquelas singelas recomendações.
O experimentalismo e inventividade referidos acima, podem ser observados no rico acervo de soluções projetivas:
- A telha canal sobre laje é apontada por vários autores como uma das grandes contribuições dadas por Amorim. Ela consiste na simples sobreposição da telha canal sobre laje em concreto armado, com o objetivo de minimizar os efeitos da insolação – eventuais fissuras, e conseqüentes infiltrações, e carga térmica. Sua conveniência a transformaram em uma técnica usual, tão corriqueira como a alvenaria de tijolos ou a taipa de pau-a-pique.
- A laje dupla, outra solução para isolar termicamente as edificações, teve, contudo, pouca aplicação devido ao seu alto custo de execução. A solução consistia em dispor paralelamente duas lajes em concreto, sombreando a laje inferior e permitindo a circulação constante do ar entre elas, tendo como resultado ambientes internos mais frescos. Heitor Maia Neto foi um dos seus entusiásticos defensores (19), utilizando-a sempre que os custos assim o permitissem.
- Os planos opacos foram recobertos com materiais cerâmicos, continuando a tradição da azulejaria oitocentista.
- As aberturas também receberam cuidados especiais. Pode-se classificá-las em dois grandes grupos: sistemas móveis e sistemas fixos. O primeiro grupo inclui as esquadrias, nas suas diversas formas e materiais, e o brise-soleil móvel (horizontal ou vertical). Do segundo grupo fazem parte o elemento vazado, nos seus diversos materiais e desenhos, o brise-soleil em concreto e o peitoril ventilado. Esses sistemas fixos eram utilizados em superfícies voltadas para as orientações de menor incidência de ventilação (oeste), permitindo a saída permanente do ar dos ambientes e controlando a incidência direta solar nos cômodos. Os elementos vazados foram mais extensivamente utilizados do que qualquer outro sistema fixo, provavelmente pelo seu baixo custo e fácil manutenção. Aplicações significativas de elementos vazados podem ser encontrados nos edifícios Walfrido Antunes (1958) de Pinto, Sto. Antônio (1964) de Borsoi, o Seminário Regional do Nordeste (1962) de Amorim, Domingues, Lima Lins e a Sede da SUDENE (1970) de Castro e equipe.
- As diversas materializações do paradigma ambiental, exemplificadas acima, expressam seu papel central na composição da edificação. Porém, ele se faz também presente, na sua própria configuração espacial, com o objetivo de permitir a livre circulação de ar nos ambientes, sem contudo, estabelecer conflitos com os princípios de setorização, discutidos anteriormente. Portanto, seus efeitos não estão restritos à forma e a natureza dos materiais construtivos, mas estão profundamente impregnados na estruturação do plano arquitetônico.
O paradigma da forma
O paradigma da forma define o campo de investigação compositiva entre a racionalidade construtiva e o acervo histórico nacional. A racionalidade construtiva, parece ter se imposto tanto pela relativa exiguidade de recursos, quanto pela influência direta do racionalismo europeu, pelas mãos dos arquitetos Mário Russo, italiano, e Delfim Amorim, português. O acervo histórico, por sua vez, apresenta material para estudo. Ele sugere transposições de sistemas construtivos locais; da ordenação volumétrica, como observado na organização dos conjuntos dos engenhos de açúcar e nos sobrados urbanos recifenses; ou na aplicação de alguns elementos da arquitetura, como a telha canal, o azulejo e as esquadrias em madeira.
Seu efeito é mais perceptível nas residências unifamiliares. Isso se dá porque a residência, como tipo edilício, é comum aos diversos períodos históricos nacionais. Assim, as transposições se fazem de forma mais direta, do que nos novos tipos modernos, como nos edifícios habitacionais e de escritórios em altura. Porém, mesmo nessas condições exemplares, o paradigma formal exerceu seu papel regulador, mesmo porque, ele atua além das exigências programáticas dos diversos edifícios.
O exemplo mais contundente desse paradigma da forma arquitetônica não está em um tipo ou em um conjunto de obras de destaque, mas nos códigos de edificação do município: no princípio legal que estabeleceu os parâmetros de superação dos afastamentos para a construção de edificações em altura. Aprovando-se o avanço de certos espaços ou mobiliários para além dos recuos estabelecidos, estabeleceu-se um procedimento compositivo racional, onde aqueles ambientes e mobiliários, passam a comandar as decisões planimétricas, e as volumétricas também. Conjugados a eles, imagens remanescentes do cenário urbano oitocentista das superfícies azulejadas e aberturas caprichosamente enquadradas em planos regulares, complementam o arcabouço compositivo utilizado. Exemplos significativos são os edifícios residenciais projetados por Wandenkolk Tinôco para a construtora A.C.Cruz, ao longo dos anos 70 e 80.
Os paradoxos
Se o conjunto de paradigmas foi, como é sugerido, fundamental para a consecução de um conjunto de obras afins, ele parece não ter sido suficiente para conferir uma coloração própria aos edifícios modernos recifenses. Aspectos exógenos ao pensamento arquitetônico delimitaram o campo projetivo. São eles: (a) a precariedade tecnológica regional, expressa ela inexistência de grandes parques industriais fornecedores de equipamentos, materiais e tecnologia construtiva de ponta; (b) as peculiaridades da sociedade local.
Um dos pressupostos do projeto arquitetônico moderno estava fundamentado no desenvolvimento tecnológico. Pressupunha-se que o desenvolvimento industrial permitiria a superação dos limites vividos pela sociedade moderna, com a confluência entre arte e técnica. O projeto social moderno, por outro lado, supunha conquistas sociais a partir da reformulação dos meios de produção, barateamento de produtos e equipamentos pela produção em massa, e, consequentemente, acesso das camadas mais populares a esses mesmo produtos industriais e a uma habitação econômica, mas digna. Os arquitetos atuantes no contexto regional nordestino, enfrentaram o paradoxo de superar as deficiências tecnológicas e as desigualdades sociais, para estabelecer um modernismo contraditório.
Uma experiência pode exemplificar aos paradigmas da modernidade e a subjugação aos paradoxos impostos pela cultura e limitação tecnológica regional. A proposta de habitação popular de Cajueiro Seco (1963), em Jaboatão, comandada por Acácio Gil Borsoi, expressa uma tentativa de racionalização construtiva e projeto social (20). Frente à incipiente indústria da construção civil, o arquiteto opta por sistematizar o processo construtivo da taipa de pau-a-pique. As divisórias e paredes externas são padronizadas em painéis de madeira, estrutura de suporte para aplicação de argamassa de argila e areia. A cobertura tradicional em palha de coqueiro trançada também é racionalizada, substituída por esteiras estendidas sobre estrutura de madeira. Até os equipamentos sanitários (pia, sanitário e lavatório), bem como o sistema de saneamento e drenagem, fazem parte do projeto de produção dos elementos componentes do sistema.
Ainda no campo da habitação, avanço tecnológico e organização do espaço doméstico entram em conflito. Novas propostas de moradia, fundamentadas em experiências européias e norte-americanas, são sistematicamente abortadas na cidade. São grandes complexos que comportam unidades habitacionais de programas sintéticos e de pequenas dimensões, voltadas para diferentes composições familiares, agregadas a unidades de serviço e comércio, que teoricamente ofereceriam o apoio aos serviços domésticos, justificando assim, a exiguidade das áreas de serviços tradicionais das moradias recifense. A redução das dimensões das unidades habitacionais em muito dependia da substituição de procedimentos pré-industriais de limpeza, cocção e armazenamento de alimentos, por eletrodomésticos. Porém, o acesso das camadas de classe média aos eletrodomésticos era limitado, e os afazeres do lar eram satisfatoriamente desempenhados pela empregada doméstica. As pequenas unidades, baseadas em programas de necessidades para uma fictícia sociedade moderna, não encontravam moradores adequados àquele perfil. Em seu lugar, famílias numerosas de renda mais baixa, senhores de família à procura de ambiente adequado para suas aventuras vespertinas, tomaram de assalto o modelo ideal de moradia moderna. Afinal, os modos de morar não mudam drasticamente. Eles se transformam ao largo das mudanças nas formas de relacionamento social e dos modos de produção.
Na habitação unifamiliar para a classe média, no entanto, esses conflitos foram satisfatoriamente resolvidos. Os inúmeros exemplares demonstram a clareza com que a setorização das atividades domésticas resolve a algumas daquelas incompatibilidade. Nesse sentido, as edículas para abrigo dos empregados domésticos e as áreas de serviço representam a negociação entre idiossincrasias locais e espacialidades modernas.
Uma indagação e uma resposta
Esse ensaio apresentou uma resposta à questão formulada por Bruand sobre a existência de uma escola de arquitetura no Recife, mediante a definição dos paradigmas e paradoxos que estabeleceram os contornos de um conjunto significativo de obras projetadas na cidade, entre os anos 50 e 70. É provável que esses princípios arquitetônicos, tecnológicos e sociais não sejam suficientes para fundamentar uma escola autóctone e autônoma. Investigações sobre sua abrangência no tempo e no espaço, particularmente na região Nordeste, onde arquitetos egressos da Faculdade de Arquitetura desempenharam e vem desempenhando a profissão, podem confirmar sua autenticidade e importância. A própria produção local merece um olhar mais atento, particularmente sobre as obras não realizadas ou aquelas superficialmente conhecidas. Porém, apesar da simplicidade dos argumentos apresentados, parece inegável que as propriedades apontadas acima delimitam um campo de criação arquitetônica, claramente observável nos edifícios recifenses, mesmo que as expressões arquitetônicas oriundas dessa conjunção de paradigmas e paradoxos, não sejam, no seu conjunto, absolutamente homogêneas.
notas
1
Síntese do artigo intitulado Escola do Recife: três paradigmas do objeto arquitetônico e seus paradoxos, apresentado no Colóquio Arquitetura Brasileira: redescobertas, realizado em Cuiabá, em setembro de 2000.
2
FERNANDEZ, S. Percurso: arquitectura portuguesa 1930/1974. Porto, Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, 1988.
3
BRUAND, Y. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Editora Perspectiva, 1981, p. 148.
4
AYTO, J. Dictionary of word origins. New York, Arcade Publishing, 1990.
5
HOWEY, J. The Sarasota School of architecture: 1941-1966. Cambridge, MIT Press,1995.
6
Idem, ibidem, p. 2.
7
HEARN, M., The Architectural Theory of Viollet-le-Duc: readings and commentary. Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 1995.
8
KERR, R., The Gentleman's House. London, John Murray, 1864.
9
KLEIN, A, Vivienda Minima. Barcelona, Gustavo Gilli, 1975.
10
NEUFERT, E., Architect's Data. London, Granada, 1980.
11
KENNEDY, R., The house and the art of its design. New York, Reinhold Publishing Corporation, 1956.
12
CHEMAYEFF, S.; ALEXANDER, C., Community and Privacy: toward a new architecture of humanism. New York, Doubleday & Company, Inc., 1963.
13
BROADBENT, G.; WARD, A, Design Methods in Architecture. London, Lund Humphries, 1969.
14
AMORIM, L.. The Sectors" paradigm: a study of the spatial and functional nature of modernist housing in Northeast Brazil. PhD, University College London, 1999.
15
Idem, ibidem, p. 334-335.
16
VAZ, R. "Raízes brasileiras da arquitetura moderna", In: Revista AU. 1994, p. 63-72.
17
Arquiteto de origem francesa, radicado no Recife.
18
HOLANDA, A. Roteiro para construir no Nordeste: arquitetura como lugar ameno nos trópicos ensolarados. Recife, MDU / UFPE, 1976.
19
O arquiteto pretendia, segundo seu filho Antônio Carlos Maia, desenvolver um estudo sobre a eficácia dessa solução, infelizmente nunca concluído.
20
BORSOI, A. G. Taipa, pre-fabrication. Recife, Borsoi Arquitetos Associados, 1980.
sobre o autor
Luiz Manuel do Eirado Amorim é arquiteto pela UFPE, em 1982, PhD em arquitetura pela University College London, em 1999. É professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE.