O objetivo do presente artigo é propor uma reflexão acerca da imagem da Arquitetura enquanto representação cultural e expressão psicossocial de uma sociedade e época. Considerando como referência o ocidente, pretendemos focalizar os finais de séculos XIX e XX utilizando como exemplos os prédios da Av. Central no Rio de Janeiro e o museu Guggenheim de Bilbao, respectivamente. Os exemplos citados pertencem a épocas e locais diferentes, intencionando demonstrar que a análise do estudo do comportamento expresso na arquitetura, independe do momento e local. Compreende-se que o ser humano busca sua identidade e expressão emocional no espaço construído.
De fato, desde tempos remotos, o homem necessita da criação da arte entendida como a materialização de seu psiquismo em interação com o mundo que o cerca. A criação seria o ato de interferir na natureza externa, interagindo com ela e se comunicando com o "todo" de forma simbólica. Para o historiador Hebert Head, em "A Origem das Artes", a forma nas artes plásticas teria surgido inicialmente por uma necessidade utilitária como a de se criar objetos com a finalidade de defesa ou para a alimentação. Num segundo momento, estas iriam se aperfeiçoando até alcançar um valor puramente simbólico: as formas artísticas surgiriam nas questões culturais relativas do ser "belo".
Neste sentido, a Arquitetura, enquanto produto cultural do Homem, torna-se também Arte e pode passar a expressar, em sua forma e significado, o conjunto de aspirações e o ideário de uma sociedade.
A Arquitetura vista nesse sentido, é passível de se transformar em emblema de uma época.
Fundamentação e análises
Compreendemos que a arquitetura interage com outros domínios do saber tendo sua determinada linguagem específica. Para tal análise, faz-se necessário orientar-nos, sobretudo, sob o "olhar" da semiótica e nos efeitos do imaginário verificado na forma da arquitetura compreendida como expressão de valores de uma época. Para o filósofo Deleuze, "o imaginário não é o real, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal" (2). Apesar de Deleuze ter se referido mais precisamente ao cinema no que diz respeito aos estudos que efetuou sobre a imagem, sua contribuição parece-nos interessante para a nossa abordagem. Segundo o filósofo, o que efetua a idéia é o signo. No cinema as imagens são signos. Antes, quando surgiu, o cinema foi "imagem-movimento" (regime orgânico que opera por cortes racionais e por encadeamentos) em seguida, quando este deixa de subordinar o tempo ao movimento, esta imagem então se torna "imagem-tempo" (regime cristalino que procede por cortes irracionais, substituindo o modelo da verdade pela potência do falso como devir).
Considerando os estudos da comunicação social (3), as artes são representações em sistemas culturais com significantes que denotam significados. Assim, na arte e na arquitetura, a denotação seria a função do objeto construído e o termo conotação a leitura do valor simbólico da obra.
Como principal fundamentação conceitual partimos da idéia essencial de que a arquitetura é arte. No interior de um sistema cultural, percebemos as formas e as relacionamos com o que já estamos familiarizados e também habitualmente, associamos determinada imagem a uma certa sensação. Com função de abrigo e como reflexo sóciocultural, a arquitetura expressa o estilo de vida, o cotidiano e os valores de seus usuários que podem ser averiguados através de uma análise da organização do espaço interior, da forma e do estilo. Em linguagens específicas, as artes se correspondem em determinada cultura, num determinado tempo e época. Na definição de Willems:
"Cultura é um sistema de idéias, conhecimentos, técnicas e artefatos, de padrões de comportamento e atitudes que caracterizam uma determinada sociedade" (4).
Entendemos que a arquitetura é a arte de organizar um espaço com função específica. A criação se efetua quando as possibilidades técnicas disponíveis e os ideais formais e estilísticos são conjugados numa unidade harmoniosa, dentro de sua lógica cultural.
Entendemos que em todos os tempos e culturas, fazendo parte da necessidade natural do ser humano, a criação nas artes tem um indiscutível valor de expressão, de comunicação, e mesmo de aprendizagem. Em O sistema de objetos, de Jean Baudrillard, encontramos, entre outros itens, uma reflexão da questão da configuração do mobiliário como imagem fiel das estruturas familiares e sociais de uma época. A disposição dos móveis e dos objetos na casa personificam as relações humanas. Cada peça, com uma função e simbolismo, integra as relações pessoais no universo semifechado da família.
Da mesma forma, a planimetria da arquitetura reflete a realidade psicossocial de seus usuários. Condiciona comportamentos, acolhe ou repele. Numa obra implica o "ser algo duradouro". A arquitetura é um testemunho de uma época e de uma cultura que, relacionada a valores da tradição, visa permanecer através do tempo. Psicologicamente, percebemos situações e as vivenciamos de acordo com referenciais pessoais e culturais. Este mecanismo se aplica na percepção e significado do espaço e na forma da arquitetura.
Nesta linha de raciocínio, cabe comparar alguns paradigmas da arquitetura delineadores de uma determinada cultura numa época precisa: o ecletismo do final do séc. XIX na então capital, Rio de Janeiro, foi o estilo consagrado pela elite desta época como representante dos ideais republicanos e dos valores europeus então preconizados. Como comentamos em trabalhos anteriores (5), o ecletismo reflete a assimilação das inovações da Europa, entretanto, essas inovações se comportavam mais no plano técnico. Incorporaram-se as novas técnicas trazidas pela Revolução Industrial, mas mantiveram-se as antigas formas. Todos os estilos valorizados na Europa seriam copiados. Os prédios construídos na Avenida Central da reforma de Passos (1906) são os principais exemplos citados deste período compreendido como início da "modernidade" brasileira. A maioria destes prédios tinha nos estilos do renascimento italiano e francês e no neogótico a principal fonte de inspiração.
Entendemos a necessidade de situar historicamente este momento para uma melhor compreensão de nossa abordagem: neste período, o Brasil vivenciava um rápido crescimento econômico, atividades exportadoras em expansão e, naturalmente a integração cada vez maior do país no contexto capitalista internacional. A cidade, na passagem do século, passou a comportar investimentos de estrangeiros principalmente no setor de obras públicas. Uma elite identificada com a república exigia uma interferência urbanística no sentido de mudar o caráter da capital para outro com o qual pudesse se identificar. Como exemplo de identidade e espírito da concepção estética deste momento, podemos citar a declaração de Francisco de Oliveira Passos, filho do então prefeito, na ocasião da apresentação do projeto vencedor do concurso para a construção do novo teatro Municipal em 1904:
"sugere a simples leitura do edital, de que seja intenção da prefeitura de dotar a capital da república tanto de teatro modelo como de um edifício digno de ser apresentado como monumento estético, sendo a meu ver a arquitetura ultramoderna incompatível com a seriedade do edifício (...) dirigi minhas vistas para os estilos clássicos, não vacilando em escolher a renascença francesa, que a meu ver é o estilo típico para os edifícios destinados a teatro. Não me cingi, porém, ao rigor do clássico, indo procurar no mourisco uma variação para as cúpulas e modernizando o estilo clássico por motivos puramente econômicos" (6).
O regulamento imposto por Paulo de Frontin para o concurso de fachadas nesta Avenida determinava:
"será dada toda liberdade na escolha do estilo mas nenhum prédio poderá ter menos de três andares em alguns pontos e menos de quatro em outros como também o mínimo da fachada para a avenida será de 10 metros, medida que visa proibir a construção de casas acanhadas" (7).
Poderíamos observar nesta declaração, a nítida intenção de "modernizar" segundo o gosto da época, expressão de uma elite desejando se manifestar e, uma urgência de adequar a cidade ao capitalismo. Nesta conjuntura, "casas acanhadas" no Centro da cidade se tornaram inadequadas e sinônimo de uma indesejável estrutura colonial-escravista do passado.
Quanto à imagem da arquitetura como expressão de época nesta última passagem de século, nosso exemplo escolhido de paradigma é o museu Guggenheim de Bilbao, obra do arquiteto Frank Gehry, inaugurada em fins de 1997. Alguns autores vêem essa obra, num primeiro momento, como uma negação ao racionalismo "modernista". Na opinião do filósofo francês Luc Ferry, a arquitetura da pós-modernidade pode ser compreendida como:
"Uma ruptura com o iluminismo e com a idéia de progresso segundo a qual as descobertas científicas e, de um modo mais geral, a racionalização do mundo representariam ipso facto uma emancipação para a humanidade(...) Dito claramente: quando se contrapõe ao projeto da modernidade no sentido do iluminismo, o pós-moderno reúne-se ao moderno entendido como modernismo das vanguardas" (8).
Ao ousar desafiar a predominância das superfícies retas, Gehry realizou nesta obra, um exemplo contemporâneo e paradigma pós-industrial: ao todo são 10.560 metros quadrados de galerias voltadas para um átrio central cuja iluminação se efetua com luz natural. O arquiteto utilizou um software específico para a concepção do museu . As idéias artísticas que Gehry introduziu na arquitetura constituem uma direta irreverência frente a todo um sistema de valores que havia se consolidado durante décadas de "modernismo". O computador maneja o único no lugar da repetição. Oferece a possibilidade de chegar no exercício da arquitetura baseado na eletrônica e não mais na mecânica. A divulgação das formas de concepção através de mecanismos inovadores favoreceu a consolidação do símbolo assim como a visão de progresso construída no imaginário da sociedade local.
Outro item importante a citar no presente exemplo é a relação interior/exterior da obra: a cidade de Bilbao se constitui basicamente por prédios arredondados em estilo neogótico. As curvas nas praças e nos prédios parecem ser mais expressivas do que as demais construções. É notável a intenção do arquiteto de tentar coabitar no aspecto formal, o novo com o antigo de maneira harmônica e sem confronto. Observa-se também, um respeito com a paisagem circundante, sobretudo ao utilizar painéis de vidros do lado das montanhas situadas do outro lado do rio Nervión de maneira que possam ser vistas do interior do museu. A obra se constitui de titânio, pedra calcária e vidro mantendo diálogo com o entorno e, ao que tudo indica, não se propõe a se impor à função que foi destinada, quer dizer, as obras de arte ali expostas não disputam o interesse do espectador com a obra da arquitetura.
Comentários finais
Tendo em vista fomentar a discussão sobre a visão da arquitetura enquanto expressão de um comportamento social num sistema cultural e numa época precisa, partimos da opção de abordar dois estilos de obra, conectando-os com o momento histórico em que foram realizados. Acreditamos que ao exemplificar estes exemplares dos finais de séculos sugeridos, estamos ilustrando as evidências que os transformam em emblemas de tais épocas, ambas expressivas sob o ponto de vista das transformações tecnológicas e sociais.
Pretendemos concluir neste artigo que, independentemente de fatores consideráveis na análise como: cultura, nível social, etc, o ser humano busca a sua projeção emocional no lugar onde vive. Tem necessidade de se identificar com objetos que tenham o poder de expressar seus ideais de progresso, avanço tecnológico e avanço social.
A concepção do espaço construído é, portanto fundamental para traduzir os sentimentos de identidade de seus usuários.
Assim, a Arquitetura pode ser vista como emblemática. Neste sentido, podemos dizer que a Arquitetura é Arte, pois como outras manifestações artísticas numa linguagem específica, expressa o ideal do homem.
A "imagem" na arquitetura é a leitura de uma época.
notas
1
Artigo apresentado no "Seminário de Psicologia e Projeto do Ambiente Construído", maio de 2000, Rio de Janeiro RJ.
2
DELEUZE, Gilles, Conversações (trad. Peter Pal Pelbart). Editora 34, 1992, p. 84.
3
Remetemo-nos, entre outros, a JAMESON, Fredric. Espaço e imagem. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995; AUMONT, Jacques. A imagem, Campinas, Papirus, 1995; BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
4
WILLEMS, Emílio. Dicionário de sociologia. Porto Alegre, Globo, 1969, p. 37.
5
SIQUEIRA, Luciane de. Casas Ecléticas no Rio Belle-Époque: Botafogo-1915-1920. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Proarq/ FAU/UFRJ, 1998.
6
A pud FABRIS, Annateresa (org.), Ecletismo na Arquitetura Brasileira, São Paulo, Nobel, 1987, p. 57.
7
A pud FABRIS, Annateresa. Op. cit., p. 56.
8
FERRY, Luc.Homo Aestheticus, A Invenção do Gosto na Era Democrática. São Paulo, Ensaio, 1994, p. 327.
bibliografia complementar
BADIOU, Alain, Deleuze, O Clamor do Ser, Jorge Zahar Ed. 1997, R.J;
BAUDRILLARD, Jean, Le Système des objets, Gallimard, Ed. 1968.Paris;
CHALHOUB, Sidney, Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, Editora Brasiliense, S.A.1986, S.P.;
DELEUZE, Gilles. Cinéma 2__ L’image- temps. Paris, Minuit, 1985.
HEAD, Hebert. As origens das artes, São Paulo, Zahar, 1965.
sobre o autor
Luciane Siqueira é arquiteta, doutoranda em Estudos da Imagem e Representações Culturais EBA/UFRJ, e professora na EBA/UFRJ.