O imaginário urbano atua como referencial constante para a construção da cidade real, para a percepção e conseqüente formulação de imagens e conceitos de seus habitantes, num processo interativo em que cidade e homem se moldam. A cidade real pode ser considerada como a materialização de uma condição imaginária, que se transforma – e a transforma – continuamente. O reconhecimento deste imaginário contribui para a legibilidade da cidade, dos processos que geraram seus signos e da sua própria identidade.
A questão da identidade vem se tornando primordial para as cidades: a crescente globalização da economia e da cultura acirra a competição entre países, regiões e cidades na atração de investimentos, compradores e recursos. Segundo Vicente del Rio (1997), tais metas estão diretamente ligadas não apenas a atributos reais do lugar, mas ao modo como este é percebido e à capacidade das imagens que ele pode gerar.
Neste contexto, o processo de globalização acaba por criar uma nova tensão entre "global" e "local", que estimula um movimento de valorização das especificidades dos lugares e resgate da identidade urbana. A imagem do lugar ganha força como contraponto a uma imagem globalizante, o que é essencial, segundo Milton Santos (1994:39), já que é por meio do lugar e do cotidiano que ajustamos a nossa interpretação e as nossas percepções e formamos a nossa visão de mundo.
Como Kevin Lynch (1997) afirma, não percebemos a cidade como um todo, mas partes dela com as quais o cidadão se identifica ou estabelece algum vínculo. Esta percepção fragmentada permite o surgimento de marcos, cartões postais, elementos que se destacam física e afetivamente do conjunto da cidade, formando sua identidade. No Rio de Janeiro a praia pode ser considerada um elemento que se preserva como valor coletivo, ou um monumento, segundo a definição de Marc Augé (1994:58): "a expressão tangível da permanência ou pelo menos, da duração".
A construção do imaginário urbano carioca
Podemos considerar que o processo de ocupação do litoral carioca remonta ao início da colonização da cidade. Neste período, no entanto, a importância do mar é econômica e estratégica, ligada à presença do porto e das fortificações que guardam a entrada da cidade. No Brasil, os banhos de mar são incorporados no início do século XX, como técnica terapêutica aconselhada para todo tipo de doença. O banhista dispõe então de quase nenhuma liberdade: o médico prescreve a praia, a hora, a duração e o lugar de seu exercício, além do número de banhos. O propósito hedonista fica inicialmente encoberto pelo projeto terapêutico e a idéia não é expor-se ao sol, mas ao sal.
Até o final do século XIX as pessoas se cobrem da cabeça aos pés, evitando sair nos horário mais ensolarados, a fim de preservar um tom pálido, típico de uma elite que não precisa trabalhar ao sol. É apenas no início do século XX com as transformações socioculturais que a aparência do homem moderno passa a ser outra e inclui uma intenção deliberada de denotar trabalho. Os exercícios físicos e jogos recreativos, introduzidos no Brasil por educadores anglo-saxões, são incorporados à sociedade.
O então prefeito do Rio de Janeiro Pereira Passos, estabelecendo uma ligação entre a modernidade e os esportes e entendendo que o projeto da modernidade incluía não apenas a reforma urbana, mas também a reforma das mentes e dos corpos, inaugura o Pavilhão de Regatas da Praia de Botafogo, que rapidamente se torna o foco da juventude elegante da cidade.
Já nesta época os trajes de banho se tornam mais leves, curtos e colantes, enfatizando o sol como a principal atração do banho de mar, não mais por efeitos terapêuticos, mas estéticos. De fato, os retratos de banhistas (fig.1, 2) mostram o gradativo desocultamento dos corpos com a diminuição das dimensões dos trajes de banho e a valorização das atividades esportivas. A visibilidade dos corpos e a diminuição dos trajes despertam reações que variam desde a apologia da saúde e do vigor físico até a perplexidade diante da "nudez" e dissolução dos costumes.
Assim, completa-se o círculo que vai levar o banho de mar de uma atividade profilática destinada a incrementar a saúde a uma prática saudável voltada para o desenvolvimento da beleza. É o início da vocação balneária que o Rio de Janeiro vai levar às últimas conseqüências, fazendo das praias o foco principal do lazer, o principal espaço público da cidade e uma extensão natural das casas.
É neste contexto do descobrimento da praia e de novas formas de sociabilidade que Copacabana surge como o bairro que viria sintetizar o novo Rio de Janeiro, cidade que se higieniza, embeleza e moderniza a partir das reformas urbanas promovidas pelo prefeito Pereira Passos.
Na modernidade, morar torna-se sinônimo de ser, a localização da moradia denota status e estilo de vida. A migração das elites para os bairros ao sul da cidade assegura-lhes distância da empobrecida área central onde muitas residências outrora distintas estavam sendo transformadas em casas de cômodos.
Nas décadas de 1930 e 1940 Copacabana se define como espaço de habitação e lazer da classe dominante, local de moradia da "fina flor" carioca. O comércio cresce, a circulação de transportes aumenta e o loteamento de terrenos se intensifica. Dentro dessa tendência, a praia se transforma e se torna impossível manter a antiga hierarquia percebida até então. A praia vai associar-se a um novo padrão de beleza, que incorpora imagens nitidamente populares. O tom bronzeado e a ideologia do "morar à beira-mar", juntos, compõem uma nova representação social da classe dominante, imagem que passa a ser perseguida por todos aqueles que querem ser reconhecidos como cariocas e se sentir inseridos na cultura burguesa.
Copacabana transforma-se numa cidade dentro da cidade. Neste momento, o Rio de Janeiro começa a ganhar um novo perfil: irreverente, cordial, popular. Estas imagens, juntamente com os cartões postais de Copacabana são vendidas para o exterior, atraindo turistas de todo o mundo.
Entre as décadas de 1930 e 1950 a nova Zona Sul carioca sofre um boom imobiliário, motivado sobretudo pela alta inflação e necessidade de aplicação imediata do capital. O setor da construção civil, utilizando-se do status do "morar à beira mar", vende novamente a Zona Sul. O avanço das imobiliárias sobre Copacabana estimula a popularização do bairro, através da construção de um número significativo de prédios com muitos apartamentos por andar, que se pautam por um baixo padrão de moradia. Copacabana conhece em poucos anos uma massa compacta de prédios sem recuos frontais ou laterais, o que praticamente priva os habitantes do interior do bairro da sensação de estar a metros da praia e dos ventos marítimos (fig.3, 4).
O crescimento populacional do bairro (e da Zona Sul em geral) estimula o desenvolvimento do comércio e dos mais variados serviços. Transformado em importante mercado de trabalho no setor terciário, o bairro de Copacabana passa a atrair grande quantidade de mão-de-obra barata, que ocupa os terrenos íngremes até então desvalorizados pela empresa imobiliária, dando origem a novas favelas.
Começa a desmitificação de Copacabana: a literatura e a música vão abandonando, progressivamente, o tom de exaltação e o otimismo e passam a popularizar uma imagem pessimista e maldita do bairro. No entanto, o famoso bairro não deixa de ser emblema do Rio de Janeiro e ícone da modernidade, por ter forjado o novo modo de vida do carioca e, por extensão, do brasileiro, definindo um novo conceito de vida urbana.
Com Copacabana perdendo seu prestígio, a praia de Ipanema passa a ser o berço de modas e modos que influenciam todo o país. É nesta época que no Arpoador surgem os primeiros surfistas e pouco depois, Tom Jobim e Vinícius de Moraes criam um dos emblemas do bairro, a Garota de Ipanema, com a canção homônima associando a mulher e o bairro à beleza, à sensualidade e ao mar. Esta imagem divulgada mundo a fora, cola-se ao bairro, tornando-se um dos ícones que fecunda o imaginário carioca.
A fase de maior adensamento de Ipanema ocorre, assim, a partir dos anos 1960, quando as casas passam a ser substituídas por edifícios, e o bairro cresce para o mundo, espalhando vanguarda com um jeito próprio. A especulação imobiliária no bairro eleva os preços a patamares nunca imaginados e Ipanema se torna um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro. Nos anos 1960 e 1970 Ipanema é testemunha do Tropicalismo, do Pasquim, do Teatro de Ipanema, da tanga e do top-less.
Já a orla de São Conrado (fig.5, 6) e da Barra da Tijuca só passa a ser ocupada a partir de meados dos anos 1960, em função da dificuldade de acesso a partir da Zona Sul. Este trecho da orla era até então pouco habitado, com uma imagem de natureza intocada e até mesmo de lugar proibido.
Com a fase do "milagre econômico" há a intensificação da especulação imobiliária, que determina a expansão da área ocupada pelas classes mais ricas da cidade para São Conrado e Barra da Tijuca, a partir da década de 1970. Através de altos investimentos, o poder público constrói a Auto Estrada Lagoa-Barra, via que inclui vários túneis e pistas superpostas encravadas na rocha, abrindo uma vasta área, ainda em estado natural, para a indústria de construção civil. O bairro é então rapidamente ocupado e se transforma no novo sonho de consumo da classe média carioca. A indústria imobiliária vende o "morar à beira mar, mas sem os problemas da Zona Sul" em condomínios com os sugestivos nomes de Novo Leblon ou Nova Ipanema.
Considerações finais
A criação do bairro de Copacabana e sua elevação ao patamar de símbolo do Rio de Janeiro moderno e bem sucedido e depois degradado, representaram a materialização do imaginário da modernidade e a criação de um novo conceito de vida urbana. O imaginário que se cria com Copacabana – e posteriormente com Ipanema e Leblon – vai se transformar na representação da cidade do Rio de Janeiro e do carioca, como indica a propaganda da Rio Tur para os cem anos do bairro: "Copacabana é a mãe que deu ao carioca esse jeitão de beira de praia, ar descansado de quem sabe a hora da pesca, sem nunca se preocupar, porque sabe que o sol se põe, lindo, todo dia, o ano inteiro, há cem anos".
Apesar de geograficamente a Zona Sul ter importância reduzida no mapa do Rio de Janeiro, é à beira-mar que se constrói ainda hoje a imagem do carioca, ligada à descontração, à beleza e à praia. Imagem esta que deve ser considerada pelos projetos aí realizados, que devem ser entendidos como materialização de uma condição imaginária e geradores de novos valores e comportamentos.
nota
Trabalho apresentado originalmente em formato pôster no Seminário Internacional Psicologia e Projeto do Ambiente Construído, promovido pelo PROARQ/FAU e EICOS/IP, UFRJ, de 23 a 25/8/2000. Anais do evento em CD-ROM disponíveis para compra através do e-mail psi-arq@gta.ufrj.br ou do telefone (21) 5981663.
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sobre o autor
Nara Iwata é arquiteta e mestranda no PROARQ da FAU UFRJ.