De acordo com o novo relatório global sobre assentamentos humanos realizado pela ONU, o número de favelados no mundo, que atualmente está na casa de 1 bilhão de pessoas, possivelmente dobrará nas próximas 3 décadas, vindo a representar 32% da população mundial. No Brasil, assim como na maioria dos países em desenvolvimento, o problema habitacional é umas das questões urbanas mais preocupantes, refletindo-se na formação de aglomerados pobres, sem infra-estrutura e socialmente segregados. Conforme é anunciada diariamente nos principais meios de comunicação, a quantidade de novos assentamentos irregulares vem crescendo avassaladoramente, provando que a taxa de crescimento da população favelada não só extrapola em muito a de crescimento da cidade formal como também que os governos federais, estaduais e municipais estão totalmente despreparados e desarticulados para enfrentar um problema desta magnitude.
O aumento da população favelada está relacionado ao aparecimento de novas favelas, a expansão física daquelas já existentes e principalmente devido ao adensamento das unidades residenciais. Pesquisas feitas nas regiões metropolitanas revelaram que o crescimento das favelas desde 1980 não pode ser relacionado meramente ao processo de migração, que certamente diminuiu a partir a década de 60. Contrariamente, a maioria dos moradores se mudou para as favelas através de uma filtração descendente (1). O aumento do valor da terra assim como sua escassez, o empobrecimento da população, a mobilidade social descendente e os movimentos intra-metropolitanos bem como a dificuldade de acesso ao mercado imobiliário formal são fatores importantes relacionados ao crescente número de favelas na última década (2).
Elas são certamente um dos maiores desafios urbanos e podem ser compreendidas como uma expressão da exclusão social (3) às quais estão relacionadas questões emblemáticas como a violência urbana, degeneração do meio ambiente natural e construído, falta de saneamento entre outros. De acordo com Maricato, a exclusão social se expressa através da segregação espacial, configurando pontos de pobreza ou grandes regiões onde a miséria é disseminada.
O significado da habitação vai certamente muito além de sua função de abrigo. Apesar de seu objetivo principal ser a de proteger o ser humano, os valores sociais e psicológicos a ela relacionados são obviamente bem maiores do que este conceito inicial. A moradia representa o homem no mundo e é através do seu endereço fixo que ele confirma seu lugar no espaço urbano e na hierarquia social. Os significados são interpretados pela sociedade através de uma semiótica complexa que contribui para a estratificação social da metrópole. Assim sendo, da mesma forma que as condições de vida de uma pessoa se reflete na qualidade da sua habitação, a relação da sua habitação com o resto da cidade reflete a própria relação social entre o indivíduo e sua sociedade.
Para se desvendar os meios pelos quais os processos de interação sociais acontecem, são utilizados conceitos clássicos de espaço e de distância social na qual se sobressai a concepção sociológica onde a distância social entre os indivíduos resulta das relações das posições sociais nas quais estão inseridas (4). Segundo Bourdieu, “a sociedade é formada por relações de proximidade e separação que são, antes de mais nada, relações hierárquicas”. Assim sendo, “a estrutura social se manifesta, em contextos mais diversos, sob a forma de oposições espaciais, o espaço habitado funcionando como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social. Não há espaço uma sociedade hierarquizada que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais” (5).
Embora não haja uma explicação unânime para a segregação social, é evidente que a cidade formal sempre manteve um posicionamento contrário à favela, sugerindo a formação de uma cidade à parte pela presença desses assentamentos. A partir da década de 40, as favelas começam a ser vistas pelos moradores da cidade formal como “aglomerados invasores” (6) e “ocupações ilegais de terra” (7) embora a crítica à chamada “teoria da marginalidade” tenha buscado mostrar o equívoco dos discursos dualistas sobre as favelas a partir da década de 70 (8).
De qualquer forma, a visão dualista por parte da cidade formal ganhou novo fôlego com a inclusão do narcotráfico e da violência urbana (9) e foi dotada de legitimidade social pela utilização freqüente pela mídia de metáforas como “cidade partida” e “desordem urbana” (10). De fato, a partir da primeira metade do século 20, o próprio estado mudou sua forma de encarar as favelas, baseando-se em políticas de controle e repressão sendo os aglomerados usualmente comparados a “doenças sociais” (11). Por outro lado, ao mesmo tempo em que políticas de remoção das favelas são postas em práticas em vários estados, emergem demandas por parte de governo e instituições não governamentais de novos discursos que subsidiem a política de “integração da favela ao bairro” (12).
É exatamente nesse contexto que programas de urbanização das mesmas como o Favela-Bairro, desenvolvido pela prefeitura do Rio de Janeiro começam a ser implementados. Apesar de todos os avanços alcançados pela implementação desses programas de intervenção, que possibilitaram às comunidades um maior acesso à infraestrutura básica e a serviços públicos essenciais, o buraco social não foi diminuído e a integração da cidade formal com tais comunidades não se concretizou.
Na realidade, o distanciamento social entre a cidade formal e as favelas continua sua curva ascendente. A barreira invisível entre estas e a cidade, materializa-se através da auto-segregação da classe média em condomínios exclusivos e somam-se aos muros invisíveis da estigmatização e do preconceito geradas pela associação simplista entre favelas e tráfico de drogas (13). Segundo Marcelo de Souza, o ingrediente principal para esta fragmentação do tecido sócio-político-espacial encontra-se na multiplicação de enclaves territoriais controlados por traficantes de drogas de quem se necessita a anuência para que sejam viabilizados quaisquer tipos de intervenção estatais (14).
Embora não seja prerrogativa das favelas a existência do tráfico de droga e sua conseqüente violência, a falta de governança nessas áreas empobrecidas encorajou o surgimento de um novo poder paralelo que desafia constantemente o poder público oficial e espalha o terror por todo o território urbano (15). De fato, o comprometimento do poder público com a cidade formal em detrimento das populações mais carentes, resultou em assentamentos irregulares de tipologia urbano-arquitetônica característica. A alta densidade desses assentamentos juntamente às precárias condições de vida traduziu de forma contundente o descaso de toda a sociedade com a população mais empobrecida. Se por um lado a cidade formal cresceu dentro de parâmetros urbanos definidos, por outro, as favelas se multiplicaram em um estado de completa desordem (16) impossibilitando a integração com o resto da urbe e perpetuando o ciclo de pobreza e exclusão. “A proximidade espacial com bairros de classe média alta, urbanisticamente organizados e providos de equipamento e serviços urbanos, produziu forte contraste social, servindo de evidência autodemonstrada da existência de duas cidades” (17).
As escassas fontes de financiamento, o difícil acesso à regularização da propriedade em comunidades de baixa-renda além da especulação imobiliária crescente, tornou a cidade formal intangível para muitas pessoas. A “lista interminável” mencionada por Maricato inclui não apenas a diminuição das oportunidades de trabalho mas também a exposição à violência, a falta de transporte, justiça, saúde, educação, lazer, educação e cultura levando o problema a deixar de ser apenas econômico mas adquirir também uma conotação social, a qual envolve segregação e perda de identidade por parte do indivíduo.
Como se pode ver, há muitos aspectos que contribuem para a consolidação do “problema-favela”. Apesar de estar certamente relacionado ao arcaico modelo capitalista de produção em que vivemos, parece-nos um tanto quanto irrelevante imaginar que o problema foi causado meramente por questões econômicas ou devido a um governo descomprometido. Todos os cidadãos são de alguma forma responsáveis pelo agravamento desta situação, seja pela indiferença à pobreza alheia, seja pela visão preconceituosa contra as favelas. Assim sendo, compreender o papel desempenhado por cada ator social não significa apenas reconhecer passivamente as nossas culpas, mas principalmente identificar e utilizar as potencialidades de cada um, visto que qualquer ação está fadada a ser simplesmente paliativa sem o esforço comum de toda a população.
notas
1
TASCHNER, S.P.; VÉRAS, M.P.B. Evolução e mudanças nas favelas paulistas. Revista Espaço e Debates. São Paulo, no. 31, 1990.
2
SILVA, M. O. da S. Políticas de Habitação e Preço da Terra. SEMINARIO INTERNACIONAL DA TERRA URBANA E HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL. Anais. Campinas: FAU-PUC, 2000.
3
MARICATO, E. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996.
4
RIBEIRO, L.C. de Q; LAGO, L.C. A Divisão Favela-Bairro no Espaço Social do Rio de Janeiro. Cadernos Metrópoles/Grupe de Pesquisa PRONEX. São Paulo: EDUC, 1999.
5
BOURDIEU, P. La Distinction. Critique du Jugement. In: RIBEIRO, L.C. de Q; LAGO, L.C. A Divisão Favela-Bairro no Espaço Social do Rio de Janeiro. Cadernos Metrópoles/Grupo de Pesquisa PRONEX. São Paulo: EDUC, 1999.
6
BLANK, G. Brás de Pina – experiência de urbanização de favela. In: VALLADARES, L.P. Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
7
TASCHNER, S.P Favelas e Cortiços no Brasil: 20 anos de pesquisas e políticas. São Paulo: FAU-USP, 1993.
8
RIBEIRO, L.C. de Q; LAGO, L.C. Op. cit.
9
ZALUAR, A.; ALVITO, M. (orgs). Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1998.
10
RIBEIRO, L.C. de Q; LAGO, L.C. Op. cit.
11
LEEDS, A.; LEEDS, E. A Sociologia do Brasil Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
12
RIBEIRO, L.C. de Q; LAGO, L.C. Op. cit.
13
SOUZA, M.L. Mudar a Cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
14
SOUZA, 2002. Op. cit.
15
MAGALHÃES, S. Sobre a cidade: habitação e democracia no Rio de Janeiro. São Paulo: Pro Editores, 2002.
16
ZALUAR, A.; ALVITO, M. (orgs). Op. cit.
17
RIBEIRO, L.C. de Q; LAGO, L.C. Op. cit., p.160
sobre o autor
Érico Costa é arquiteto e urbanista (UFRJ, 2000), atualmente cursando MBA em gestão Ambiental na Fundação Getúlio Vargas