Apesar da crescente popularidade da cultura brasileira no mundo, não creio que o leitor esteja muito ciente da presença em outros países do ocidente, de artistas de origem brasileira, que assumem uma importância marcante na cultura local, e até transcendem para uma esfera internacional relevante.
É este o caso de David Perlow, recém-falecido em Tel Aviv.
Nascido no Brasil, e portador da influência dos anos de sua inicial formação brasileira, emigrou para Israel na época muito densa de acontecimentos épicos e dramáticos para o povo judeu, que foi o nascimento do estado de Israel e o período subseqüente.
Aqui ele se afirmou – durante anos de perseverante atividade profissional e acadêmica – como o mestre precursor e o autor de uma criação personalíssima no cinema israelense: qualidades que lhe renderam o “Prêmio Israel” – máximo atestado de reconhecimento da jovem nação por contribuições significativas para sua nascente cultura.
Perlow conquistou o direito a este merecimento por uma ação incansável e intransigente dentro de sua arte. Esta ele via como o veículo de transmissão da mensagem humana, que emanava de sua singular e contagiante personalidade. E é esta mensagem humana que veio a modelar uma visão de mundo que se mantém inalterada, junto a muitos de sua geração que o tiveram como amigo, e junto a muitos e muitos discípulos que ele formou através de suas originais obras de cinema e através do ensinamento como titular da cátedra de Cinema da Universidade de Tel Aviv.
Tive o privilégio de me contar entre a primeira categoria citada, e de acompanhar – embora à distância, por diferenças de modalidades na ação profissional e pelos inevitáveis obstáculos práticos na atividade de cada um de nós – seu desenvolvimento a partir da pintura (em cujo conhecimento se aprofundou com origem numa ligação muito especial com Lasar Segall), e de presenciar o início de sua mudança de rumo em direção ao cinema.
Perlow compreendeu muito cedo a posição que o cinema viria a ter, como a linguagem que – mais amplamente e mais autenticamente do que qualquer outra forma de expressão artística – poderia falar aos setores mais largos da sociedade humana, e levar-lhes aquele conteúdo de humanidade sem o qual qualquer arte se torna vago exercício estéril de inúteis (e freqüentemente charlatãs) tendências exibicionistas, ou de pseudo-filosofias de duvidoso substrato intelectual.
Vítima não de raro da incompreensão e da arbitrariedade do establishment e da burocracia, Perlow encaminhou grande parte de sua criação para o campo do cinema documentário, onde porém desenvolveu um estilo muito próprio, que fugia da mera descrição dos fatos, e sim os interpretava através de uma observação sensível e de um amor pelo sujeito retratado – seja ele um indivíduo modesto e anônimo (como no caso da Tante Chinoise do álbum de desenhos descoberto na sótão de sua moradia de estudante na França), ou um líder reconhecido (como no filme sobre Ben Gurion, o fundador do estado). E sua obra máxima, o Diário, veio a se transformar num depoimento vivo de toda uma época, focalizando, através do espelho de sua redondeza mais próxima e com a ajuda de seu próprio acompanhamento falado, todo o desenrolar da vida do país desde a guerra de Kipur.
No Diário ele também volta por episódios aos cenário de seu passado, percorrendo com olhos saudosos e penetrantes a São Paulo de sua juventude ou a Paris de sua formação posterior. Mas toda sua documentação se apóia mais do que tudo nas raízes de sua identidade judaica, que nas vicissitudes de seus familiares em lugares e roteiros de vida vários e diferentes, espelham a formação semeada de tragédia e de sofrimento, mas igualmente de esperança e de amor, de todo um povo empenhado na empolgante e incompreendida aventura de sua sobrevivência e renascimento.
sobre o autor
Vittorio Corinaldi é arquiteto formado na FAU USP e correspondente Vitruvius em Israel