“Não vejo sentido nesta escolha entre disciplina e invenção – se a disciplina produziu um Mies, também possibilitou um Stone e se a invenção nos deu Taliesin e Ronchamp, quanta caricatura arquitetônica o nosso século não deve a ela!”
Marcello Fragelli
A cidade ficava cada vez maior; a cada projeto rejeitado pelos clientes da construtora S. Fragelli, novas ruas eram configuradas pelas maquetes trazidas pelo engenheiro Sebastião ao pequeno Marcello. No Rio dos anos 30, raríssimos eram os clientes que procuravam um arquiteto para encomendar um projeto. Iam diretamente a uma construtora, que lhes oferecia o projeto junto com a construção; a grande maioria queria projetos de estilo, fossem esses francês ou colonial brasileiro. Conquistado pelas idéias do amigo Afonso Reidy, Sebastião Fragelli sempre apresentava a esses clientes projetos de arquitetos, seguindo linhas contemporâneas, expressas em belos desenhos e uma maquete de gesso, toda branca, como em geral eram as obras. Como quase todas eram recusadas, a coleção do filho só crescia. Talvez por ter acompanhado de perto a luta de Reidy e de colegas como Niemeyer, Lúcio Costa, Jorge Moreira, os Roberto, entre outros, o engenheiro Sebastião sonhava ver o filho advogado, mas não lhe negou apoio quando soube que Marcello havia sido classificado no vestibular para Faculdade Nacional de Arquitetura (FNA).
Carioca, nascido em 1928, Marcello Accioly Fragelli encontrou na FNA um ambiente bastante diverso daquele que tivera em casa. Nesta época vigorava a famosa “liga de defesa da mediocridade”, através da qual era impedida a entrada, nos quadros da FNA, antiga Escola Nacional de Belas Artes, de arquitetos que projetassem segundo os princípios modernos. Já se anunciavam os anos 50 e os alunos que ousassem projetar em uma linguagem contemporânea eram desestimulados. De fato, a verdadeira formação desta geração de estudantes dava-se nos escritórios destes arquitetos, então renegados pela FNA, mas festejados mundo afora pela arquitetura de excelente nível que faziam. E com Fragelli não foi diferente.
Formação carioca
Ao final da graduação, em 1952, começa a estagiar no escritório M.M.M. Roberto. A arquitetura moderna estava consolidada, tanto no meio oficial como no mercado imobiliário. O prestígio dos pioneiros arquitetos modernistas no exterior e a necessidade de estandardização dos elementos construtivos, devido à expansão imobiliária, foram determinantes nesta aceitação. No plano conceitual surgiam questões como racionalismo versus organicismo, formalismo excessivo contra um funcionalismo preciso. A produção dos Roberto reflete este debate: prestigiados desde o sucesso do prédio da ABI, no final dos anos 30, continuaram sempre à procura de novos caminhos, buscando um equilíbrio entre o funcional e o formal, forjando assim obra de destaque no quadro da arquitetura nos anos 50.
Fragelli tem aí sua verdadeira escola. Para um recém-formado que mal sabia raspar o nanquim no vegetal, conviver com personalidades tão cheias de ideais foi fundamental. Torna-se assistente de Milton, estabelecendo com ele maior afinidade, recebendo lições que o acompanharam por toda a vida. Foi Milton quem lhe apresentou o romance de Ayn Rand, The Fountainhead onde a personagem principal, arquiteto Howard Roark, com sua conduta de fidelidade ao modernismo e defesa radical de suas criações, causa grande impacto na formação do jovem assistente.
Pouco mais de um ano com os Roberto, em 1954, surge a oportunidade de projetar, em Ipanema, seu primeiro edifício residencial. Nesta época já possuía escritório próprio, em sociedade com Maurício Sued, colega da FNA. A primeira dificuldade encontrada revela a procura, constante em toda a obra de Fragelli, pela melhor solução em todos os níveis do projeto. O uso da solução em “cachimbo” era quase obrigatório para satisfazer a imposição dos incorporadores: duas salas e dois quartos com vista para rua. Para tanto, uma das salas era deslocada para trás, comunicando-se com a fachada através de um corredor, chamado então jardim de inverno. Fragelli recusa esta planta, inadequada em termos de salubridade, e propõe a criação de uma só grande sala ao invés das duas conjugadas. Solução simples, mas que comprometia a contratação do projeto. Após convencer o cliente, o edifício é construído e obtém ótima aceitação entre os compradores. Com este primeiro sucesso, ganha a confiança definitiva do incorporador e garante a realização de uma série de projetos de edifícios.
Em todos eles, a influência dos Roberto é clara: pilotis delgados no térreo, uso refinado de pastilha de vidro, cuidada composição de cores e volumes entre peitoris e esquadrias, inesperado movimento de fachadas, evitando o mero empilhamento das unidades. Percebe-se, contudo, uma certa singularidade em sua obra, em contraste com as linhas elegantes da escola carioca: suas composições possuem uma clara tensão ante a gravidade; seus volumes não negam o peso, mas parecem sim querer reforçá-lo quando repousam em delicados pilotis.
Ao mesmo tempo, Fragelli realiza uma série de projetos de residências que investigam o organicismo de Alvar Aalto, procuram a limpeza de Richard Neutra e buscam referências no repertório colonial mineiro. De fato, projetos como a residências Edmundo Costa (1954), R. Armando (1955) e Fragoso Pires (1960 – menção na VIII Bienal de São Paulo) revelam um organicismo através do uso de materiais como madeira e pedra, citações da arquitetura mineira nas esquadrias coloridas contrastando com o branco da alvenaria, ao mesmo tempo em que tem um traçado limpo e racional.
O Posto de Puericultura (1958 – menção na VI Bienal de São Paulo), ainda no Rio, é o ponto alto desta fase: programa da área da saúde, procura quebrar o desconforto existente nesse tipo de ambiente com uma planta simples, dividida em três por jardineiras, espelhos d’água e viveiros de pássaros. Iluminação e ventilação do bloco central são realizadas de forma eficiente pelo alteamento de sua cobertura. A escala é dosada e enxuta, bem como a composição volumétrica externa. A ambiência está acima de tudo, fruto de uma cuidada composição entre espaço, luz e vegetação.
Paralelo ao trabalho da prancheta, Fragelli realiza atividades de fortalecimento da profissão do arquiteto. Em 1956 é eleito diretor do IAB Nacional, em uma chapa onde figuravam nomes como Niemeyer e Reidy. Através do IAB, colabora em periódicos e trava contato com grandes nomes da arquitetura mundial em visita ao Brasil, como Richard Neutra e Philip Johnson. Em 1960 exerce de maneira breve, porém marcante, o papel de colunista interino do Itinerário das Artes no jornal Correio da Manhã. Escreve artigos de grande repercussão: critica a postura arcaica do ensino na FNA; denuncia a maneira como o espaço urbano é mutilado por obras do poder público; defende firmemente o Conjunto Pedregulho, de Reidy, que estava prestes a sofrer uma intervenção não autorizada pelo arquiteto.
Maturidade Paulista
Em 1961, a mudança da capital para Brasília traz um abalo considerável para a economia carioca com conseqüente diminuição da produção arquitetônica. Incentivado por amigos paulistas, então com grande quantidade de projetos em execução, Fragelli transfere-se para São Paulo.
Seus primeiros trabalhos na capital paulista foram para a Rossi, incorporadora de edifícios residenciais, e para a Promon, empresa atuante na área de engenharia industrial. Projeta também residências em São Paulo, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul. Com essa diversidade de trabalhos procura aprimorar a maneira de expressar o caráter de cada programa, tirando partido das diferentes escalas que cada um necessita. Ao mesmo tempo começa a explorar todos os elementos constitutivos do edifício em sua composição rejeitando de antemão a simples utilização da técnica construtiva para efeitos plásticos. A procura por uma forma mais limpa não justifica o sacrifício da ambiência interna, como mostram os edifícios Rossi-Leste e Rossi-Penha (1961).
Em relação aos materiais empregados, há um direcionamento à padronização e à industrialização, embora isto não signifique um distanciamento do conceito organicista. Abandona o uso da pedra como elemento de vedação e passa a utilizar abundantemente o tijolo aparente. A madeira cede espaço ao concreto, encarado por Fragelli não “como solução plástica ou como moda” mas sim uma “filosofia de expressão, uma linguagem”.
É neste período que sua arquitetura toma um caminho sem volta em sua conceituação. É o início de um amadurecimento que se tornará pleno nos anos 70 e 80. Se no Rio, linhas racionais e elegantes eram desenvolvidas em materiais naturais ou artesanais, agora passa a acreditar mais no espaço do que na forma como procura de uma arquitetura que atenda não ao homem ideal, mas ao homem real. Em projetos como as residências Ernesto D’Orsi (1972) e José Gregori (1974) fica evidente esta composição, que nasce de dentro para fora, não se prende a uma forma pré-definida, valoriza visuais, explora o espaço, a luz, as texturas e utiliza uma linguagem bastante industrial como forma de expressão. Suas obras agora se tornam ainda mais humanas, ao mesmo tempo em que fazem uso extensivo do concreto, de formas pesadas e de uma concepção estrutural clara e lógica. Fragelli chega a um verdadeiro organicismo brutalista.
Razão e sensibilidade
Participante do consórcio escolhido para construção do Metrô de São Paulo, a Montreal, empresa controladora da Promon, indica Fragelli consultor para a arquitetura. É nesta posição que procura atuar junto às outras empresas do consórcio – todas alemãs – no sentido de projetar as estações com assessoria técnica dos engenheiros. Encontra porém, resistência por parte destes técnicos. A idéia era que o arquiteto brasileiro só participasse quando os anteprojetos estivessem prontos, criando fachadas das estações elevadas e definindo materiais de acabamento nas subterrâneas. Fragelli começa então um exaustivo trabalho de esclarecimento sobre o papel que o arquiteto deveria ter desde o início. Após analisar os anteprojetos e neles encontrar grandes equívocos de funcionalidade, consegue propor novas soluções e com elas convencer o consórcio a entregar-lhe a tarefa de coordenar os projetos da linha norte-sul, atual linha Azul, a primeira a ser construída. Reúne uma equipe de alto nível e passa a trabalhar tempo integral no projeto, tendo que, para isto, encerrar temporariamente as atividades de seu escritório.
Fragelli reserva para si a missão de estabelecer o conceito para a linha toda, de projetar pessoalmente as estações elevadas e as que possuíssem praças na superfície. Ao final, ele projeta as versões definitivas do trecho elevado e das estações Jabaquara, Liberdade, Praça da Árvore e São Bento, esta última alterada sensivelmente quando o consórcio já havia se dissolvido.
Para o elevado, a preocupação maior foi dar unidade a todo o trecho e procurar inserí-lo na malha urbana da maneira menos traumática possível. Para tanto foi estabelecida uma seção padrão das estações: uma bateria de vigas que funcionam como linha do trem, plataforma, peitoril, beiral e apoio da cobertura. Cada estação possui sua forma de acesso diferenciado das demais e no caso da estação Armênia (antiga Ponte Pequena, premiada pelo IAB em 1968), as vigas-seção foram agrupadas em três, distribuídas em somente quatro pontos de apoio para vencer o vão sobre o Rio Tamanduateí. O aspecto da linha é de total coerência formal, com as estações florescendo em determinados pontos.
No subterrâneo a idéia foi aproveitar a expressão do concreto aparente para transmitir aos usuários a tensão existente na contenção do subsolo envolvente à semelhança de uma caverna e afastar qualquer disfarce ao caráter subterrâneo. Cada teto foi pensado de forma diferenciada, sempre procurando mostrar a forma de trabalho da estrutura. Os pisos das praças externas foram rebaixados, criando-se patamares intermediários e rasgos de luz, procurando-se estabelecer uma fusão gradual entre a superfície e o subsolo.
Os acessos da estação Tietê, o interior da estação Liberdade, o teto da Praça da Árvore, são alguns dos pontos altos, entre tantos, deste trabalho. O resultado final, além de uma extrema funcionalidade e conforto para o usuário, demonstra uma riqueza espacial muito sofisticada e discreta, um deleite para os sentidos mais atentos.
Valorização da profissão
Logo após o término do projeto do Metrô, Fragelli é convidado pela Promon a fundar seu departamento de arquitetura. A engenharia da empresa era bastante conceituada no mercado e ela agora queria uma arquitetura do mesmo nível. Após muitas discussões a respeito de direitos autorais, o arquiteto aceita o encargo. O departamento passa a ter uma atuação semelhante aos Bureaux D´Etudes Techniques (BET) franceses, onde arquitetura e engenharia trabalham associadas e o projeto possui uma estreita relação com a construção. Grandes projetos, como hidroelétricas e indústrias, passam a ter assessoria de arquitetos ou até mesmo são coordenados por eles. O trabalho de Fragelli visa acima de tudo valorizar a carreira técnica dentro da empresa, evitando que profissionais especializados exerçam funções apenas administrativas. Luta constantemente pela posição do arquiteto como autor e detalhista do projeto e pela necessidade da liberdade de criação. Para isso conta com uma equipe qualificada, em grande parte oriunda do consórcio do Metrô.
Realiza importantes trabalhos neste período: a sede administrativa de Furnas no Rio (1972) onde desenvolve um modelo de escada de incêndio de excepcional segurança; a expansão da indústria Piraquê (1964-1980), também no Rio, na qual trabalha de maneira notável elementos de proteção térmica como forma de expressão arquitetônica – o edifício Jerônimo Ometto (1974) foi premiado pelo IAB em 1977; o conjunto São Luiz (1976-84), onde transmite forte sentido de verticalidade por meio de expressivas texturas no concreto aparente e o edifício Macunaíma em São Paulo (1980).
Em meados dos anos 80, desliga-se da Promon e retoma as atividades como autônomo. Projeta diversas residências em São Paulo, sendo sempre rigoroso no atendimento ao programa estabelecido e tendo a priori o espaço e nunca a forma. No restaurante Sew Motors em Guarulhos (1985), projeta um edifício para o jardim existente, de autoria do amigo Roberto Burle Marx. Consegue, como mesmo admite, se libertar de alguns dogmas de sua formação modernista e faz agora um uso mais intenso da cor. Realiza ainda alguns projetos de indústrias, como a Alcan (1989-90). Retoma a carreira didática interrompida nos anos 60 e passa a lecionar, primeiro na Universidade Mackenzie e em seguida na FAUUSP. No início de 1994, interrompe sua atividade profissional por motivos de saúde.
A arquitetura de Marcello Fragelli é bastante coerente com seu discurso. Critica o formalismo inconseqüente, voltado às câmeras, aos desavisados, ao mesmo tempo em que faz uma arquitetura que nunca sacrifica a poesia e a beleza. Lutou por suas idéias, defendeu de forma radical a integridade de alguns projetos, às vezes até comprometendo a relação com o cliente, mas foi ainda mais radical na defesa do usuário, do homem como ele de fato é. Fragelli não nos lega definições unívocas, prontas para uso, mas sim possíveis caminhos que podem ser trilhados para se chegar à boa arquitetura.
nota
1
Artigo originalmente publicado na seção “Documento”, Revista AU, jul. 2004. A elaboração do artigo contou com a colaboração de Eliana Tachibana e Emerita Ito, arquitetos formados pelas FAUUSP em 1998 e sócios-diretores da Emais Arquitetura e Design. Emerita é sócia-diretora da Companhia de Projeto.
sobre o autor
Márcio Bariani é arquiteto, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e sócio diretor da E.mais Arquitetura e Design