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architexts ISSN 1809-6298


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A autora faz uma peregrinação por cidades italianas em um exercício de pedagogia visual através da arquitetura, da pintura e da escultura, abordando em especial o Teatro Olímpico de Vicenza, obra dos arquitetos Andrea Palladio e Vicenzo Scamozzi


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DIEL DE OLIVEIRA, Maria do Céu. Pedagogia visual e educação da memória. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 057.07, Vitruvius, fev. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.057/503>.

Quando a própria memória perde qualquer lembrança, como sucede quando nos esquecemos e procuramos lembrar-nos, onde é que, afinal, a procuramos senão na mesma memória?(Santo Agostinho) (2)

Para quem leu Dante dele se recorda...

Após ter vencido seu temor e insegurança na floresta escura, Dante depara-se com o portal do Inferno, encimado pelas terríveis palavras... Metáfora do desconhecido e sublime, ameaça e chamado irresistível, Dante ultrapassa o portal e avança, abençoado pelo guia que emergiu do limbo, Virgílio, e esperançoso de encontrar Beatriz, “donna di virtú sola per cui l’umana spezie eccede ogne contento di quel ciel c’há minor li cerchi sui”... (3). Porta, arco, portal, entrada, passagem... palavras-imagens que designam mudanças de estágio, escala, realidade, oposição e estranhamento... Dante mergulha trazendo unicamente sua memória e imagens de piedade, rancor, medo e pavor intensos, de justiça e verdade, palavras estas que serão seu único elo com o que deixou para trás. Sem isto, não poderá enfrentar o inferno e vagar pelas suas bolgie.

Em cada passagem, ao encontrar figuras conhecidas da História, mitos e adversários políticos, Dante traz para junto de si o ar de sua cidade e com ela a luz, fraca divisória entre o que seu corpo ora ressente e o que abandonou. Com isto, o enfrentamento torna-se palpável, pois tem a lembrança viva, seu corpo como depositário da memória e sensações de um corpo vivo. Aos mortos do Inferno é dada a possibilidade de rememorar, mas a lembrança é usada como forma de aumentar a dor e a pena cingidas, quando a comparação da vida pregressa é acompanhada de um presente inalterável. A algumas almas é dado o poder de prever o futuro, mas a eternidade é o infinito, perdendo os pecadores a noção do tempo em que permanecem mergulhados.

Dante precisa desta realidade para poder perder-se no Inferno, pois ela é o fio de Ariadne que o trará de volta. Mais do que Virgílio, que o amparará diversas vezes em perigo seu corpo vivo, Dante recorrerá à memória de sua cidade natal. Vagas e indistintas comparações trarão a atmosfera do mundo vivo e impedirão, por todo o percurso do poeta, sua entrega à degeneração da razão e à insanidade desta nova ordem. Sem esta lufada de vida em meio à pestilência, sem poder encontrar-se com conhecidos, Dante esqueceria o motivo pelo qual aventurou-se no abismo: lembrar e escrever, criando um testamento moral que trouxesse, de maneira inversa, o Inferno à superfície. Ao sacrificar sua memória, condensaria a imagem da insanidade, mantendo o corpo a salvo. Ao rememorar a superfície – mesmo em conflito, dando mostras da degeneração dos costumes – o poeta traz as sensações de beatitude e familiaridade decorrentes dos elementos de contemplação descritos. Estes locais da memória, estas paisagens do mundo vivente são figuras amplas, como projeções. A ligação de Dante com a realidade da superfície mostra-se mais do que uma mera evocação, prova de que a vida do corpo precisa de lembranças vivas. A memória dos mortos os reduz ainda mais à infinitude suas desgraças. A de Dante o conduz mais e mais para o júbilo de estar vivo e vivendo, passando por cada cerchio e deixando-o para trás como algo que deve ser esquecido enquanto espaço, mas não como tempo. Assim, o inferno vivido passa ordinariamente a ser uma lembrança, pois somente assim pode ser encarado: sombra de si mesmo sem nunca ter existido, imagem que se imprime sem nunca ter-se realmente configurado. Dante, poeta e peregrino, apresenta-nos o Inferno visto somente na memória. Estando no Inferno sem nunca ter ido, saindo dele sem nunca ter entrado, enuncia um duplo reflexo sem origem: a palavra que é uma imagem.

A imagem evocada através da retórica (4) da palavra é no Inferno, forma de representação daquele espaço e seus habitantes.

Descrições da temperatura, odor, movimento, velocidade, luz e sombra, altitude e geografia se fundem aos elementos terrenos que nos cercam e que são nossa referência de leitor. Ao iniciar a leitura dos cerchi mais profundos, a dupla imagem torna-se imediata: a leitura impressa na retina necessita de uma duplicação do real, o leitor invocará sua paisagem mais desejada, adequada ao oposto do que lê. A evocação pode ser sobreposta, mas não anulada. Torna-se indispensável, pois se precisa da razão para continuar a peregrinação por um universo desarrazoado. O Inferno mostra sua face mais sedutora quando cola-se no universo denominado realidade para dele fazer a origem de suas imagens. Este inferno do qual falo não estará mais no subterrâneo se levarmos até ele as imagens que reconhecemos – subvertê-las-á em seu benefício, o da sobrevivência na memória, pois o Inferno é a morada da Fraude.

Ao pensar que pode escapar de sua sedução, as imagens coladas – agora, realidade e imaginação – permanecem fundidas. Toda vez que evocadas, uma ou outra, as duas existirão. Dante recorre de elementos retóricos para a construção deste Inferno. A memória do corpo é a dos olhos. O duplo caminho percorrido pelos olhos entre a palavra impressa e sua correspondente imagem é o lugar do Inferno, um espaço mensurável, mas comprimido. Como pretender escapar da sedução do Inferno se dele também emanam imagens familiares? Como levitar acima desta tensão entre a imagem contida na palavra e a existente na memória? Porém, eis a questão da memória: está presente no diálogo do anjo com S. Paulo, no Apocalipse, quando este pergunta ao santo se observou todas as coisas ou quando o anjo pede a S. Paulo que guarde dentro dele o que viu. Observar, guardar, recordar, memorizar passam a ser recursos que residem fora do poema, estão nas imagens evocadas pela lembrança do leitor. A projeção de um lugar para a memória existe externamente ao texto apócrifo ou ao poema: é decorrente de imagens mentais de lugares memoráveis, que têm no poema a descrição, mas que tem no leitor a revelação. O ato de revelar, mostrar e secretar algo encoberto perpassa por um gesto, do corpo ou do espírito. Caminhar, olhar para cima ou para baixo, recuar, voltar-se, esconder-se. Linguagem corporal que ocorre de uma vontade, mas que pode acontecer apenas na memória. A punição para quem espia dentro do fosso do Inferno é o apagamento da memória: ela deixará de existir, não será possível ao espírito flagrado nesta atitude rememorar para daí, saber. O tempo no Inferno está reduzido ao seu aspecto ontológico: como ele é em si mesmo. O apagamento da memória impede as almas de entender o tempo no seu aspecto psicológico, como o aprendemos.

Conhecimento e lembrança passam a não ter mais residência, estando deslocados e sem lugar. O caminho de volta parece residir na impossibilidade de saber, na suspeita de uma existência... a memória é física quando pode ser extirpada, ela pretende um lugar que não é mais desta natureza... a memória move-se, mas o lugar permanece.

Aqui encerro o Inferno, ou pelo menos uma parte da pesquisa que evidenciou a memória, ars memoriam, como lugar de punição do pecado da inteligência...

Gostaria de continuar minha provocação evocando uma imagem agente que me foi apresentada quando em viagem de pesquisa ao Vêneto: Teatro Olímpico de Vicenza. Quero iniciar assim com uma imagem para tenhamos um cenário do mundo onde serão inicialmente anunciados os sinais de um caminho investigativo.

Do Teatro Olímpico de Vicenza saltam dos nichos esculturas em gesso e palha de gregos e romanos...junto às colunas cegas de um programa palladiano, estão fixadas as figuras proeminentes da sociedade de Vicenza, porém agora revigorados de uma origem nobre, não mais tedesca.

Seguindo o programa visual, o mesmo teatro preserva o cenário da primeira peça ali apresentada em 3 de março de 1585. Vicenzo Scamozzi elabora complicada perspectiva para a construção das sete ruas de Tebas do Édipo Rei. Assim didaticamente, de um ponto imaginário da linha do horizonte da história, surge a didatização da visualidade, impregnada do molde pedagogizante da perspectiva.

Desta visão na cidade de Vicenza, iniciei uma peregrinação por cidades italianas onde observei a pedagogia visual através da arquitetura, da pintura e da escultura. Iniciando minha pesquisa em 1997 no norte da Itália e elencando autores como Cícero, Ripa e Dante, busquei traçar um percurso para a representação do corpo e suas alegorias e relação com a arte.

Em duas últimas viagens ao Sul da Itália, em 2003 à Sicília e em 2004 à Sardegna, encontrei novas representações da sociedade e de seu corpo, na Gruta dos Capuchinhos em Palermo, nos mosaicos de Monrealle e mais recentemente nas imagens em cera fundida realizadas por Clemente Sussini para o Curso de Medicina da Universidade de Cagliari no início do século XIX.

Busco desenhar um rico assoalho investigativo, moldado nas representações da sociedade através de seu corpo na ciência e na religiosidade que, agregados aos estudos retóricos e a ars memoriam, chegam a nós em forma de visualidade didatizante e repleta de significados, presentes na educação e na organização da universidade e do estudo superior.

O que estes lugares apresentam como emblemas de uma ordem visiva que, ordenada pela Perspectiva, elabora um complexo discurso de convencimento. Na alegoria de Cesare Ripa,

“a Retórica, bela senhora ricamente, com uma expressão alegre, tem a mão direita elevada e aberta e na esquerda um livro e um cetro, portando nas vestes esta frase escrita: Ornatus Persuasio. Seus olhos são vermelhos e seus pés pisam sobre uma quimera. Sua mão aberta é um aviso que o orador deve mantê-la solta para que interprete e gesticule.” (5)

O convencimento e a persuasão são elementos encontrados na Arquitetura representados pelos programas palladianos que concedem espaço para as narrativas da escultura e da pintura. Na cidade de Vicenza, o programa do teatro apresenta o desejo de uma cidade de reinventar a origem de sua linguagem e de seu povo. O mesmo programa esta aberto em igrejas, palazzi e lugares onde o discurso visual apenas descreve a imagem ou apenas enuncia a sua possibilidade.

A perspectiva projeta o espectador para fora da dimensão da pintura ou da arquitetura. A representação do espaço restringe o pensamento e abriga uma narração ideal, que cola-se a um espaço reinventado. Santo Inácio de Loiola, São Domingos e Santo Ambrósio elaboram tratados que aqui denominarei de perversão visual, onde a imaginação (ou invenção retórica) cria cenários para a tragédia humana, no ensejo da purificação.

Neste caminho, encontrei as stanze delle mereviglie, os quartos ou armários onde estariam abrigadas as imagens agentes, guiadas por um ideal estético-retórico. Concentração de invenções, histórias, alegorias, mitologia e alquimia, surgem como obra de arte total, elevação de inteligência e trajetos para o espírito em mutação. Nos quartos e armários estão as coleções de objetos e artefatos cujas origens ligam-se a mirabilia e a oculta história das culturas. Elaboradas como studioli, um quarto de acesso particular de sentidos diversos, estão repletos de excentricidades e imaginário, prenhe de complexas associações.

Entre tantas imagens que possuo autalmente destes quartos, escolhi esta como imagem agente, este armário que apresenta um esqueleto a maneira fantasiosa de Vessalius em sue De Humani Corporis Fabrica, que queda-se a meditar sobre uma coluna e um clepsidra. Este Memmento mori elenca a vaidade, mas a representação do corpo é a angústia do futuro (como age em nós o ‘Col Tempo, de Giorgione, na Galleria da Accademia di Venezia). Plenos de conversações, os quartos de maravilhas originam os museus de história natural quando maravilhas naturais e os museus e galerias de arte quando o acervo contempla a escultura, pintura, ourivesaria, gravura e outras artes.

É neste espaço da representação, auxiliado pela invenção e didatizado pela perspectiva que acontece a narração, a história que é contada. Esta escritura banha-se na moral dos gestos e costumes, na fortuna literária de alguns autores e nos aspectos pedagogizantes. Os quartos, gabinetes, estúdios, armários, galerias e museus apresentam-se em minha pesquisa como câmeras de projeção de uma memória artificialis, de onde brotará o convencimento e a persuasão. Que sociedade é esta que necessita de sedução narrativa para configurar seu imaginário? Confesso que sinal já me assombrava, mesmo antes de encontrar outros locais fantásticos habitados pela representação corporificada da sociedade. Na Gruta dos Capuchinhos de Palermo, testemunhei o arranjo de corpos ressequidos me pequenos teatros sociais, onde os papéis de origem ainda continuavam a ser desempenhados: uma família com uma mãe, pai e filho natimorto permanecia fixada junto a uma parede calcificada, desempenhando seu papel social e creditando o status de sua origem nas vestes carcomidas, mas visíveis. O teatro do mundo ali cenografado em seis quilômetros de cripta não ousa apresenta uma alegoria de si, mas existe na angustia do futuro, novamente ele. O desamparo de uma narração faz surgir em algum lugar o desejo de história, à guisa de completude e voz. O mutismo eloqüente da sociedade descarnada de Palermo eleva-se ruidosamente a níveis insuportáveis.

Didatizar o aparecimento das imagens pela ars memoriam, de Cícero:

“Aqueles que desejem re-evocar (reminisci), isto é, fazer qualquer coisa mais espiritual ou intelectual que simplesmente recordar, retirem-se da luz pública para uma obscura intimidade, pois, na luz pública, as imagens das coisas sensíveis (sensibilia) estão dispersas e seu movimento é confuso. Na obscuridade, pelo contrário estão compactas e movem-se em ordem” (6).

A obscuridade, os lugares e outros artifícios são recursos retóricos caros aos museus e galerias, aos museus de história natural e aos locais de exposição e mostras de arte. Entre arcos e colunas de um programa visual situam-se as imagens que se pretendem imagens agentes, em busca de uma nova história para sua existência.

Desta forma, a Retórica e suas Pinturas, aliada a ars memorian, a perspectiva e aos programas visuais elaborou complexo percurso discursivo, que acabou por dispensar a própria imagem, purificando-se na intelecção e na narrativa condescendente. O objeto da arte contemporânea é seu próprio discurso, tecido na purificação e projetado pela perspectiva excludente, projetado na câmera da memória da existência.

notas

1
Publicado originalmente nos Anais do Colóquio Brasileiro de História da Arte em Belo Horizonte, 2004.

2
SANTO AGOSTINHO. Confissões (tradução de Maria Luiza Jardim Amarante). São Paulo, Paulus 1997, L.X, 19.

3
ALIGHIERI, Dante. Divina Commedia. Introduzione di Italo Borzi, commento a cura di Giovanni Fallani e Silvio Zennaro. Milano, Biblioteca Economica Newton, 1996, II,75-77.

4
Quanto à Retórica e à Eloqüência, escolhemos Quintiliano (Espanha, 42?-120 D.C.): “Conforme a maior, e melhor parte dos autores cinco são as partes da Eloqüência, a saber Invenção, Disposição, Elocução, Memória e Pronunciação ou Ação, pois tem um e outro nome. Com efeito, todo o discurso, que faz algum sentido há de ter necessariamente duas coisas: Pensamentos e Palavras, objetos aqueles da Invenção e estas da Elocução (...) Pois não basta só sabermos o que havemos de dizer, e de que modo, mas também em que lugar convém que se diga. É necessária pois a disposição. Mas nem poderemos dizer todas as coisas que a matéria pede, nem cada uma em seu lugar sem nos ajudar a Memória (...) Todas estas partes porém se deitam a perder pela Pronunciação má, ou no lugar ou no gesto”. Ora, para conseguir esta virtude, na minha opinião, a maior da Elocução, há um meio facílimo e é este: Olhemos para a Natureza e imitê-mo-la. Toda a Eloqüência tem por objeto as ações da vida civil. Cada qual aplica a si o que ouve, e a nossa alma concebe docilmente imagens daquilo de que tem experiência”. QUINTILIANO. Instituições oratórias. São Paulo, Edições Cultura, Segundo Volume, 1944 (grifo meu).

5
RIPA, Cesare. Iconologia (a Cura di Piero Buscaroli). Milano, TEA, 1992.

6
MAGNO, Alberto. “De memória et Reminiscentia”. In YEATS, Francis A. (tradução Milton José de Almeida).

bibliografia complementar

ALMEIDA, Milton José de. Cinema: arte da memória. São Paulo, Autores Associados, 1999.

ALPERS, Svetlana. A arte de descrever. São Paulo, Edusp, 1999.

BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. São Paulo, Imago Editora.

SANTO AGOSTINHO. O Livre Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995 (tradução de Nair de Assis de Oliveira).

RIGON, Fernando. Il Teatro Olímpico di Vicenza.1995, Electa Arte Guida, Milano.

sobre o autor

Maria do Céu Diel de Oliveira é professora do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da UFMG. Professora do Programa de Mestrado em Artes Visuais da UFMG. Líder de grupo de Pesquisa LINHA: Grupo de Pesquisa sobre o Desenho e a Palavra. Pesquisadora do OLHO- Laboratório de Estudos Áudio Visuais da FE – UNICAMP. Gravadora e desenhista

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