Este artigo discute os resultados de um estudo que analisa os modelos de morar, utilizados em peças promocionais divulgadas nos encartes e cadernos de classificados dos jornais dominicais locais, prospectos e internet. O estudo é centrado no prédio de apartamentos, hoje em dia a forma de habitação mais utilizada pela classe média, com o objetivo de identificar e descrever os atributos usados nestas peças para vender o sonho de morar, vinculando atributos da vida moderna às características arquitetônicas dos empreendimentos imobiliários. A premissa básica é a de que através dos atributos anunciados, expectativas em torno do morar são criadas e recriadas, o que vem, por sua vez, alimentar a formulação de programas arquitetônicos, bem como constituir uma certa cultura do morar. Estes atributos envolvem tanto a localização do empreendimento, quanto as características arquitetônicas, formais ou programáticas, bem como a denominação do mesmo. Desta forma, o estudo busca compreender os conceitos que guiam o mercado imobiliário, e, por extensão, os conceitos e referências que fundamentam a atividade de projeto deste tipo de objeto arquitetônico. A primeira parte do artigo contextualiza o problema e discute os atributos urbanos utilizados nas peças promocionais, enquanto que a segunda parte observa os atributos arquitetônicos.
Introdução
É do senso comum que a moradia ideal oferece conforto, segurança, privacidade, e abriga os sonhos de seus moradores: ‘a casa do homem é o seu castelo’. Neste sentido, esta casa ideal age como um território que medeia, reflete e amolda identidade social. É com base nestas características que estratégias de marketing são estabelecidas, vinculando a compra do imóvel à realização de um sonho.
É deste sonho e da recriação constante de um ideal de morar que a indústria imobiliária se alimenta, possibilitando a introdução constante de novos produtos no mercado que venham satisfazer as expectativas dos consumidores, bem como criar novas necessidades. Neste mercado, a propaganda exerce um papel fundamental, ao manter viva esta necessidade constante pela aquisição de um lugar perfeito para morar – “perto de tudo, inclusive do clássico sonho de morar bem” (2).
Nas últimas décadas do século 20, novas formas de construir o sonho do mundo doméstico foram facilitadas pelo uso de novas tecnologias de informação: modelos virtuais em 3-D e e-comércio são algumas das ferramentas de marketing para atingir os consumidores de classe média. Estas tecnologias oferecem uma experiência quase real do espaço futuro – algo como um portal para o mundo ideal. Paralelo ao espaço virtual, ganhou força, nos últimos anos, a estratégia do ‘apartamento mobiliado’, que também reproduz um ideal de morar quase próximo do real. Como realçado por Dovey, estes modelos oferecem uma fenomenologia do futuro e agem como um espelho que tanto reflete quanto reproduz um mundo de sonho. Em resumo, estas peças promocionais oferecem as vantagens de um mundo ideal que o consumidor é induzido a consumir (3). Desta forma, permitem ao empreendedor estar atento às necessidades de consumidores e amoldar seus sonhos.
O conjunto de expressões – ‘viver em grande estilo ...’, ‘privacidade e segurança ...’; ‘ponto nobre (do bairro) ...’, ‘arrojado e sofisticado ...’; ‘tradição em morar ...’ – ilustra como certos atributos da vida moderna estão associados às características arquitetônicas dos empreendimentos imobiliários no sentido de constituir uma certa cultura do morar. O termo cultura é aqui utilizado no sentido de certos padrões de comportamento e esquemas cognitivos identificáveis e associados a uma classe social e que definem códigos e convenções de uso. Assim, estão tanto relacionados à constituição de significados, quanto representam uma sanção de modos de conduta social (4). Os termos, como os exemplificados, evocam uma vida familiar contemporânea, que ganha novo perfil em decorrência de significativas transformações tecnológicas e sociais ocorridas ao longo do século passado.
Neste contexto, o estudo tenta entender os elementos ou as forças que moldam o gosto da classe média, ou seja, visa identificar em que bases o sonho coletivo de adquirir uma casa é construído pelas agências de propaganda, particularmente por meio dos anúncios divulgados na imprensa. Do ponto de vista analítico, o estudo observa os aspectos relacionados a duas das leis do objeto definidas por Hillier (5): (a) a lei da sociedade para a forma construída, relacionada aos mecanismos usados pela sociedade para adaptar as leis do objeto aos seus propósitos; e (b) a lei do espaço para sociedade, relacionada aos princípios pelos quais a forma construída interfere na vida social.
A fonte principal de informação é formada pelos anúncios publicados em jornais de domingo, dado que estes são os principais meios utilizados por empreendedores para influenciar os potenciais consumidores que tipicamente utilizam o fim-de-semana para a busca de novos produtos, mesmo que não estejam interessados em adquiri-los de imediato.
A moradia: função pragmática e função simbólica
Ainda que a casa seja primariamente um objeto funcional, segundo Lawrence, ela serve a uma gama de propósitos, aos quais valores podem ser atribuídos, tanto tangíveis e quantificáveis, tais como valor econômico, de troca, de uso, como outros que não são quantificáveis de forma direta, como o valor sentimental, valor estético e o valor simbólico, que estariam, segundo o autor, referenciados às “comunicações interpessoais entre pais e filhos, e entre membros de mesmo grupo social ou profissional” (6).
Mudanças nesta estrutura de valores, acarretam mudanças no projeto, assim como no uso dos espaços e nos símbolos. Assim sendo, Hillier sugere que edifícios têm duas dimensões sociais ao menos, sendo ambas configuracionais por natureza. Deste modo, edifícios têm um duplo papel social: “eles constituem organizações sociais da vida cotidiana como as configurações espaciais do espaço no qual nos movemos e vivemos, e representam organizações sociais como configurações físicas das formas e elementos que vemos” (7). O argumento está baseado no fato de que, como ressaltado por Hanson, a casa, mais que uma lista de atividades e ambientes, é um padrão de espaços, governado por complexas convenções sobre o que cada espaço é, como eles se conectam e são seqüenciados e que atividades se desenvolvem juntas ou em separado. Para a autora, a casa seria, desta forma, um veículo ideal por explorar as dimensões formais e experienciais da arquitetura (8).
Kent (9) também desenvolve um modelo para o estudo da relação entre arquitetura e uso do espaço baseado em duas premissas: a) a complexidade social determina a organização do espaço e do ambiente construído, particularmente no que diz respeito às partições e segmentações; b) à medida que a sociedade vai se tornando mais complexa sociopoliticamente, sua cultura, comportamento, uso do espaço e cultura material ou arquitetura, tornam-se mais segmentados. Isto ocorre particularmente com respeito à segregação crescente, ou partições na edificação. Segundo a autora, sociedades baseadas em culturas mais fragmentadas e diferenciadas tendem a fazer uso de áreas de atividades mais segmentadas – isto significa que operam em estruturas arquitetônicas – que a autora define como a expressão material da cultura – mais divididas, em objetos funcionalmente discretos e de acesso restritivo (10). O padrão espacial, definido por permeabilidade e barreiras, é, pois, profundamente influenciado por exigências sociais.
Se estes são os mecanismos e variáveis que constituem a natureza do ambiente doméstico, como eles são apropriados pelos anunciantes e empreendedores para promover seus produtos? Como as dimensões formal e experiencial da vida cotidiana são exploradas para construir o domínio doméstico? Como diferenciação social e hábitos culturais estão impregnados nas imagens e mensagens das campanhas promocionais? Afinal, a casa, tal como outras posses é um indexador de status social e do poder de compra do indivíduo (11).
A propaganda: construindo um sonho
O objeto de estudo, o marketing habitacional no Recife, particularmente o segmento dedicado ao edifício de apartamentos, é relativamente recente, ao menos no formato que hoje ele se apresenta. Também o alvo deste marketing – o edifício de apartamentos – tem história relativamente recente no Recife. A introdução deste tipo de habitação se dá paulatinamente a partir da década de 1930, através da atuação dos institutos de previdência social, com o objetivo de prover os sócios com uma alternativa de habitação higiênica e confortável. Historicamente, a coabitação nunca foi vista como um atributo social positivo, sempre denotando o baixo status social da família. Viajantes, que por aqui passaram no século 19, narraram, em uma variedade de livros e diários, suas experiências na sociedade brasileira. Talvez o testemunho mais importante seja o do engenheiro francês Louis Vauthier, cujos comentários sobre a forma de morar e organização espacial são impiedosos. Vauthier afirma que status social estava relacionado a formas particulares da estrutura da moradia: da casa unifamiliar isolada dos subúrbios ao sobrado urbano, do sobrado de uso misto à casa térrea conjugada. Em qualquer circunstância, coabitação denotaria a decadência de quaisquer destes tipos de habitação (12).
Somente no final da década de 1940 e começo dos anos 1950 é que o apartamento começa a se popularizar entre a classe média. Naquele momento, a localização dos edifícios era um atributo importante para seduzir as famílias, dado que a proximidade do trabalho e de serviços, predominantemente concentrados no centro de cidade, era o ponto fundamental para a venda deste novo produto. No entanto, mais de duas décadas se passaram para que os atributos negativos associados a este tipo de habitação fossem superados. É evidente que mudanças na estrutura social local e nas relações sociais tiveram grande influência para a aceitação e proliferação do apartamento.
Hoje, a sociedade urbana contemporânea reflete a complexidade de nossa era, sendo multifacetada, formada por uma diversidade de arranjos familiares (famílias uniparentais, casais do mesmo sexo, casais sem filhos, ou as famílias estendidas, geradas por matrimônios consecutivos e divórcios, por vezes formada por sucessivos filhos únicos, com muitos irmãos), além da tendência de envelhecimento da população. Também é caracterizada por altos níveis de violência urbana. A combinação destes fatores contribuiu para dar ao condomínio vertical de apartamento o status de forma ideal da habitação. Proteção coletiva, alcançada por meio de estruturas de condomínio organizadas, substituiu a casa isolada individual como o símbolo de proteção e segurança, valores estes compartilhados e desejados por típicas famílias modernas. De fato, o apartamento alcançou o status da moradia contemporânea ideal, segura e prática, e o marketing habitacional parece saber isso. No contexto desta sociedade multifacetada, a publicidade tem um papel central, não somente ao transmitir imagens que reforçam a percepção das pessoas sobre suas necessidades, mas, também, introduzindo novas formas de viver.
No Recife, até meados da década de 1970, a produção de apartamentos em pouco superava a da casa isolada, de acordo com Melo (13). Segundo o autor, somente a partir da segunda metade da década de 1970, é que o mercado imobiliário da Região Metropolitana do Recife (RMR) volta-se para a classe média alta, iniciando um processo de verticalização da cidade, em áreas de grande concentração de renda (14).
A esta intensificação da produção imobiliária, corresponde igual intensificação nos anúncios publicitários, publicados em jornais, que, até meados dos anos 1970, limitavam-se a informações resumidas em pequenos boxes, sendo raro o uso de imagens e slogans. Como decorrência de alterações econômicas e culturais ocorridas naquela década, nasce a necessidade de criar no consumidor potencial um novo hábito do morar, uma nova expectativa acerca do padrão ideal de moradia (15).
Para entender como as estratégias de marketing contribuem para formação de atitudes sobre a casa ideal, é necessário descrever os mecanismos que as campanhas promocionais usam para alcançar suas metas de venda.
Campanhas promocionais encorajam o consumo, despertando no consumidor o desejo de comprar, seja para satisfazer suas necessidades básicas, seja para satisfazer um desejo compulsivo de comprar. Para influenciar a compra, peças promocionais devem apresentar o produto de forma diferenciada, distinguindo-o dos demais pertencentes à mesma classe. O conteúdo da mensagem não só oferece as alternativas disponíveis, mas também um comentário interpretativo para auxiliar o consumidor potencial no reconhecimento dos méritos da casa nova, como exemplificado por Hanson no estudo sobre o mercado imobiliário e estrutura espacial em Milton Keynes, uma “new town” localizada no Norte de Londres, estabelecida, na década de 1970, para abrigar cerca de 250 mil habitantes oriundos de regiões insalubres de Londres (16).
Assim sendo, a publicidade opera através de imagens e mensagens para reforçar aquelas necessidades, visando atuar na esfera da decisão de comprar. A propaganda toma por base enquetes com potenciais consumidores para identificar as imagens e as mensagens a serem usadas para alcançar metas de vendas. Segundo Wilk, a casa é, na verdade, parte de um campo social maior e a decisão de comprar, construir ou modificar está relacionada a outras decisões sociais e pessoais (17). As mensagens veiculadas reúnem o sonho de uma vida contemporânea, aliado a nobreza e tradição, amoldando o gosto da nova classe média, oferecendo tanto uma vida de fantasia quanto um conjunto de valores culturais.
As estratégias: conceitos, palavras-chave, imagens-chave
Os anúncios levantados em jornais, prospectos e na internet foram analisados para identificar o conceito, as palavras-chave e as imagens-chave que contribuem para estabelecer a imagem da casa ideal. Os atributos principais foram descritos, classificados e agrupados em quatro categorias, que atuam de forma inter-relacionada para induzir uma experiência de vida nova: (a) a localização do imóvel, ressaltando as qualidades da vizinhança seja do ponto de vista histórico ou ambiental e paisagístico, e o acesso a serviços oferecidos na área; (b) o programa arquitetônico das unidades individuais, serviços e instalações comuns; (c) a altura do apartamento, ou o número de andares da edificação – esta categoria foi especialmente destacada, pois o processo de excessiva verticalização da cidade, concentrado, sobretudo, em alguns bairros habitados por população de maior renda, vem gerando debates sobre a qualidade urbana da cidade e sobre seu futuro; (d) o nome do edifício e do conjunto, que tanto evoca temas da história local (lugares, edifícios históricos, etc.), quanto glamour e fascinação (aristocracia, nobreza, etc.), ambos associados à conquista de status e diferenciação social.
Estes atributos são revelados por meio de quatro estratégias conceituais: (a) imitação, traduzindo estilos de vida do estrangeiro; (b) simulação, induzindo e reforçando atributos não-existentes; (c) representação, por referências simbólicas a tempos passados e lugares; e (d) identificação com aspectos culturais da sociedade local.
A localização: “Dize-me onde moras e te direi quem és”
O primeiro atributo de diferenciação da habitação está relacionado à sua localização. De acordo com Ribeiro (1997: 114), edifícios tendem a ser diferenciados pela sua localização, que tem reflexos não apenas no volume de negócios, mas também no preço (certas áreas permitirão empreendimentos de luxo, outros, não) e no tipo de transação (hipoteca, venda direta, etc.). Assim sendo, para Ribeiro, o valor da mercadoria ‘edifício’, mais que por suas qualidades arquitetônicas, é determinado, fundamentalmente, por sua localização no território urbano, o que permite que o empreendimento incorpore propriedades qualitativas e quantitativas ofertadas pelos meios de produção e de consumos coletivos (18).
Este processo é regulado por algumas regras de ouro: a) os aspectos paisagísticos, tais como a proximidade de praias, rios e montanhas; b) a existência de equipamentos coletivos em quantidade e qualidade necessárias ao consumo, tais como escolas, supermercados, estrutura viária, etc.; c) distância e facilidade de acesso aos locais de trabalho; d) a divisão simbólica da cidade, que classifica socialmente as pessoas segundo sua localização no espaço da cidade.
O tema dos valores simbólicos, expressando uma divisão simbólica do território urbano, foi explorado por Velho em estudo sobre Cobacabana, no Rio de Janeiro, durante os anos 1970, visando estabelecer uma relação entre divisão social, habitação e ideologia. O argumento é o de que a sociedade mais que estabelecer uma estratificação entre ricos e pobres, toma por referência o bairro onde se mora. O bairro de moradia, desta forma, estabeleceria as diferenças de prestígio e de status social (19). Desta forma, os símbolos atrelados ao local de moradia têm importância estratégica na vida das pessoas: a sociedade seria “constituída por estratos que têm como uma de suas definições essenciais a sua distribuição espacial que vai ser fundamental para definir o status dos indivíduos, atribuindo-lhes mais ou menos vantagens ou privilégios que são, basicamente, as oportunidades de acesso a determinados padrões materiais ou não-materiais” (20).
Neste ‘mapa social’, como o definiu Velho, os limites são tanto claros quanto maleáveis. Dentre os anúncios levantados é possível observar a elasticidade das fronteiras de certos bairros, que se estendem para incorporar os valores positivos encontrados nas redondezas. Há duas estratégias principais. A primeira consiste em estender os limites de um bairro mais distinto. Assim fazendo, a localização do edifício passa a ser impropriamente informada, para evitar qualquer estigma associado com algumas partes da cidade. A expectativa é a de que, com o passar do tempo, estes limites sejam de fato estendidos na medida em que o bairro seja habitado por novas famílias, enquanto antigos moradores se vão para outras localidades.
Este é o caso do bairro de Casa Forte, tradicionalmente ocupado pela antiga aristocracia, e do bairro de Casa Amarela, um bairro de classe operária e de novos ricos – usineiros enriquecidos de repente, como diz Josué de Castro (21). A imprensa local, com freqüência, dá espaço a consumidores insatisfeitos ao serem surpreendidos pelo fato de que, por exemplo, o seu novo lar localiza-se em Casa Amarela, e não no Parnamirim (outro dos bairros identificados com famílias ‘de bem’), como anunciado nas peças promocionais, até mesmo porque o preço cobrado neste último é cerca de 20% mais alto que no primeiro. Assim, o incauto consumidor perde duplamente – paga mais pelo imóvel e perde status e distinção social.
A segunda estratégia é a adjetivação para distinguir certas localidades. Assim, bairros que carregam um certo estigma social são renomeados, afastando assim os atributos ‘negativos’ a eles associados, geralmente relacionados à classe social que tradicionalmente o habita. Um caso notório é o do Bongi: a área assumiu o nome de ‘Novo Prado’, acrescentando o adjetivo ao nome de tradicional bairro contíguo, como uma estratégia de marketing para refundar e renomear antigo trecho da cidade e, desta forma, legitimar novos empreendimentos para famílias da nova classe média, que precisam de uma tradição nova para serem reconhecidas (22).
A ‘Nova Torre’, por outro lado, surge para identificar um novo bairro que emerge após a dissolução de antigos conjuntos fabris, e da conseqüente especulação de terrenos para novos empreendimentos. A localidade – o Bairro da Torre –, atravessada por um conjunto de vias das mais acessíveis na cidade, oferecia um atrativo adicional à área re-fundada, que teve o estigma de bairro operário anulado pelo novo nome.
Outro exemplo peculiar é do Bairro do Recife, o centro histórico da cidade, que se tornou o novo ‘Recife Antigo’, depois de um processo de reabilitação conduzido pela municipalidade, na última década do século 20 (23). O mesmo bairro ganhou o adjetivo de novo, passando a se chamar ‘Recife Novo’, no início do mesmo século, quando das obras de modernização do Porto do Recife – parte do bairro foi demolido para dar lugar a uma nova estrutura urbana a la Hausmann, dotando-o de uma feição moderna e saudável (24).
Divulgar o Recife Antigo, e não Bairro do Recife, é parte de uma estratégia bem elaborada de transformar a história da cidade em propriedade lucrativa. Estratégia semelhante também foi usada no Gaslamp Quarter, em San Diego, nos Estados Unidos da América. Em ambos os bairros, restaurantes, bares e cafés com mesas na calçada, jazz clubs, danceterias e sobretudo a promoção de festivais e shows ao ar livre contribuem para garantir um ar de eterna festa ao lugar, explorando o caráter ‘antigo’ atribuído pelas ações de requalificação de alguns espaços e edificações.
Tais processos de ‘re-fundação’, ou de requalificação, de antigos bairros, são descritos por Smith (25) como constituição de novas fronteiras urbanas. Segundo o autor, este processo envolve a diferenciação interna de sítios da cidade já desenvolvidos, expressando, desta forma, requalificação de áreas, amenizando as conotações de classe social associadas às mesmas.
Aparte destes atributos que reforçam a distinção social do lugar, a proximidade de serviços pode, além de qualificar e atribuir um certo grau de distinção a certas áreas, oferecer praticidade à vida cotidiana de seus habitantes, evitando, por exemplo, deslocamentos exaustivos e estressantes para fazer compras, acesso ao lazer ou, simplesmente, levar as crianças a escola. Outro aspecto que aumenta significativamente o valor do empreendimento é a proximidade a sítios naturais e marcos referenciais – até mesmo os mangues tão comuns na cidade, e até bem pouco desprezados, tornam-se marcos paisagísticos (“vista para o mar e o verde do manguezal”). Em ambos os casos, são agregados valores simbólicos às vantagens do local para qualificar o empreendimento habitacional, mesmo se algumas destes valores e vantagens sejam imaginários ou indistintos. É comum, nos anúncios de apartamentos, o uso de palavras-chave tais como ‘perto de…’ ou ‘alguns metros para…’, como forma de capturar o valor intrínseco do sítio natural, mesmo se estes metros não sejam ‘alguns’.
Para tornar as mensagens publicitárias ainda mais efetivas, é comum o uso de imagens distorcidas das áreas circunvizinhas, produzidas para induzir potenciais consumidores a acreditar nos atributos anunciados. Assim, perspectivas, montagens fotográficas e simulações de computador são utilizadas para tornar serviços ou pontos de interesse mais próximos do que o são na realidade. Desta forma, um imóvel na segunda ou terceira quadra da praia, passa a ser referido como sendo localizado ‘à beira-mar’ - a ribamar. Ou, a distância com relação ao mar é eliminada. Nas três peças promocionais mostradas nas figuras 07 a 12, os quatro edifícios anunciados, no bairro de Setúbal, zona sul da cidade, têm como referência para sua localização o Recife Flat e a Av. Visconde de Jequitinhonha. Nos mapas que indicam a localização dos edifícios, a avenida aparece, com relação ao mar, em diferentes posições, além do que, o canal de Setúbal, margeado pela avenida, é eliminado em todas as peças. O canal, que dá nome ao bairro, representa uma barreira para o acesso à praia, o que torna a distância para o mar maior que sua dimensão linear. Na primeira peça, o edifício anunciado localiza-se à ribamar - neste caso a Av. Jequitinhonha é a terceira, a partir do mar. Nas outras duas peças, tem-se a nítida impressão de que a referida avenida é mais próxima do mar do que de fato o é, como se mostra, no mapa real, na figura 13. Além do que, apenas um dos anúncios se refere ao bairro como Setúbal - aquele em que a edificação localiza-se mais distante do mar; nas demais, o bairro é referido como sendo Boa Viagem, contíguo à área e dos mais nobres da cidade.
Por outro lado, os consumidores também contribuem para consolidação da fantasia: após a aquisição de um apartamento, tendem a assumir e vender a ilusão de que vivem em local privilegiado – deste modo, não somente tendem a aumentar o valor de sua propriedade, mas também vivem a ilusão de que fazem parte de um grupo social distinto.
notas
1
A segunda parte do artigo poderá ser lida em breve em LOUREIRO, Claudia; AMORIM, Luiz. “Dize-me teu nome, tua altura e onde moras e te direi quem és: estratégias de marketing e a criação da casa ideal – parte 2”. Textos Especiais Arquitextos, n. 286. São Paulo, Portal Vitruvius, fev. 2005 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp286.asp>.
2
Slogan da empresa Moura Dubeux Engenharia para o lançamento do Edifício Alameda dos Pinheiros, Boa Viagem, Recife. In JC, caderno Classificados JC, domingo, 17/10/2004.
3
DOVEY, K. Framing places: mediating power in the built form. London, Routledge, 1991, p. 139.
4
GIDDENS, A. The constitution of society. Los Angeles, University of California Press, 1986.
5
HILLIER, B. “The nature of the artificial: the contigent and the necessary in spatial form in architecture”. Geoforum, v.16, n.2, 1985, p.163-178.
6
LAWRENCE, R. J. “Public collective and private space: a study of urban housing in Switzerland”. In: S. Kent (Ed.). Domestic architecture and the use of space: an interdisciplinary cross-cultural study. Cambridge: Cambridge University Press, 1997/1990, p. 78.
7
HILLIER, B. Space is the machine: a configurational theory of architecture. Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 4. Ver também HILLIER, B. e HANSON, J. The social logic of space. Cambridge, Cambridge University Press, 1984.
8
HANSON, J. Decoding homes and houses. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.
9
KENT, S. Domestic architecture and the use of space: an interdisciplinary cross-cultural study. Cambridge, Cambridge University Press, 1997/1990.
10
KENT, S. Op. cit.
11
HANSON, J. Op. cit.
12
VAUTHIER, L. L. Casas de residência no Brasil. In: (Ed.). Arquitetura Civil I. São Paulo: FAUUSP / MEC-IPHAN, 1975. Casas de residência no Brasil, p. 1-94.
13
MELO, M. A. B. C. de. O estado e a promoção imobiliária formal na RMR 1964-1988. Recife, 1989, 37 p., texto para discussão.
14
MELO, M. A. B. C. de. Op. cit.
15
NASCIMENTO, C. F. B. do, LOUREIRO, C e AMORIM, L., “Um tesouro para toda a vida...logo ali”: de como o sonho de morar é construído. In: NUTAU 2002, 2002, São Paulo. Anais eletrônicos ... São Paulo: USP, 2002. 1 CD.
16
HANSON, J. Op. cit., p. 134-154.
17
WILK, R. W. The built environment and consumer decisions. In: Kent, S. (Ed.). Domestic architecture and the use of space: an interdisciplinary cross-cultural study. Cambridge: Cambridge University Press, 1997/1990, p. 34.
18
RIBEIRO, L. C. D. Q. Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997, p. 115.
19
VELHO, G. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975, p. 81.
20
VELHO, G. Op. cit., p. 81.
21
CASTRO, Josué. “Visões do Recife” (1957). In: MAIOR, M. S. e DANTAS, L. O Recife: quatro séculos de sua paisagem. Recife, FUNDAJ/Editora Massangana, 1992, p 253-262.
22
MARQUES, S. e LOUREIRO, C. “Recriando uma antiga moradia: morar novo, cenário antigo?”. In: VIII ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 8., 1999, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PROPUR/UFRGS, 1999.
23
LOUREIRO, C. e AMORIM, L. “A moradia dos sonhos – onde e como morar”. Revista Artecomunicação, Recife, n. 7, 2002, p. 131-153.
24
LUBAMBO, C. W. O bairro do Recife: entre o Corpo Santo e o Marco Zero. Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1991.
25
SMITH, N. The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. London, Routledge, 1996.
sobre os autores
Claudia Loureiro é professora da Universidade de Federal Pernambuco, Brasil
Luiz Amorim é professor da Universidade de Federal Pernambuco, Brasil