No dia 21 de outubro de 2004 a Secretaria do Meio Ambiente (SMA) do Estado de São Paulo promoveu um ciclo de palestras ao curso “Cidades: Agendas Locais”, parte do Ciclo de Cursos de Educação Ambiental organizado pela Coordenadoria de Planejamento Estratégico e Educação Ambiental – CPLEA da SMA. Mais do que relatar exaustivamente tudo o que foi exposto, o objetivo aqui é colocar algumas questões a partir do que foi apresentado na ocasião, e a partir da minha própria dissertação de mestrado (1).
As palestras consistiram em exposições mais “teóricas” no período da manhã, e “casos” de aplicação da Agenda 21 no período da tarde. Entre as exposições matinais, uma exposição introdutória da professora da FAUUSP Maria Lucia Refinetti Martins, tentando pôr em questão as bases do conflito entre meio ambiente e urbanização, no caso específico da cidade de São Paulo. Em seguida, o pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP, Francisco Cumarú, expôs o Programa Cidades Saudáveis e um caso de aplicação na cidade de Bertioga. Por último, o urbanista do Instituto Pólis Renato Cymbalista abordou os instrumentos de planejamento e gestão urbanos do Estatuto das Cidades. Dessas primeiras apresentações, e dos debates suscitados, algumas questões parecem relevantes.
Em primeiro lugar, parece haver uma dificuldade, por parte de alguns ambientalistas, em abandonar certos preconceitos anti-urbanos. Ou seja: a cidade, tomada abstratamente, é responsabilizada pela destruição da “natureza” – termo sempre impreciso (2) – e comprometimento da “qualidade de vida” – idem. O ideal de vida parece corresponder a um espaço muito pouco povoado (densidade populacional muito baixa) e repleto de “verde” (3).
O caso apresentado de Bertioga (4), particularmente o da Riviera de São Lourenço, mostra que esses elementos de “qualidade ambiental” de fato são, numa sociedade capitalista, valores de troca: servem para valorizar (encarecer) as propriedades “ecologicamente corretas” e, conseqüentemente, promover uma “seleção natural” dos moradores – aqueles que têm condições de pagar a mais pelo verde.
Foi mostrado (5) como a cidade de São Paulo tem sofrido os dramas dessa ideologia fugere urbem: a região provida da maior oferta de infra-estrutura perdeu população na última década (em grande parte a população que busca os condomínios fechados e chácaras nos arredores da metrópole), deixando terrenos e imóveis vagos ou subutilizados que, no entanto, permanecem "valorizados" o suficiente para que as populações de menor renda não tenham nenhuma condição de aquisição de moradia no mercado "formal". Ao mesmo tempo – e também por esse motivo – as regiões mais periféricas da metrópole apresentaram verdadeira explosão populacional, ocupando exatamente as áreas ambientalmente mais frágeis (mananciais, remanescentes florestais, e áreas de relevo mais acidentado e solo mais frágil, ou mais sujeitas a inundações). Mais do que isso: o número de imóveis vagos corresponde exatamente ao déficit habitacional na Região Metropolitana (500.000 unidades). Em resumo: é hora de levar seriamente em consideração o “impacto ambiental da natureza”.
Em segundo lugar, quando se diz que um empreendimento como a Riviera é “ecologicamente correto” apenas porque trata seus esgotos, coleta-se e recicla-se o lixo, etc., está-se cometendo uma distorção grave. Em função da abordagem “ecossistêmica”, e assim mesmo aplicada de forma superficial, os empreendedores imobiliários querem fazer crer que empreendimentos como esses loteamentos litorâneos são “corretos”.
Já não importa o quanto sejam isolados do restante da cidade, ou que sejam usado apenas numa pequena fração do ano e permaneçam ociosos o restante do tempo. Menos ainda, que a população efetivamente moradora, os trabalhadores desses condomínios (jardineiros, faxineiras, etc) sejam obrigados a viver em favelas logo ao lado apenas para que os “moradores” desses condomínios possam usufruir seu espaço privilegiado e exclusivo (ou, como foi denominado na palestra, um “bem aristocrático”, que só faz sentido por que é para poucos). Sequer é levado em conta a remoção da vegetação nativa para implantação de um condomínio vegetado aos padrões “Miami/Malibu”, com palmeiras e flores exóticas... O “ecológico”, neste caso, é contra qualquer noção mais ampla – e socialmente responsável – de “ambiental”.
Por fim, a questão ambiental, tratada de forma estritamente técnica, tende a minimizar a questão social subjacente. Aqui, novamente, certos preconceitos sociais voltam à tona: quando uma pretensa “educadora ambiental” (6) alega que a implantação de um programa de coleta seletiva vai incentivar a proliferação de catadores de lixo (considerados meramente “mendingos” [sic]) em sua cidade, percebe-se em que grau pode chegar a estreiteza da visão social de pessoas que se dizem partidárias do “desenvolvimento sustentável”.
Mas não se trata apenas de uma questão sociológica. Há, no caso da região dos mananciais da Grande São Paulo, por exemplo, uma pressuposição tácita de que “aqueles habitantes têm que sair dali” – sem considerar que um bairro constituído passa a ter uma história, uma memória, uma cultura, e querer varrer tudo do mapa para reverter a região a um estado de natureza selvagem anterior revela um profundo desconhecimento – ou desinteresse – do humano e do desfavorecido, em nome da defesa dos recursos naturais. Como se não houvesse soluções possíveis: há uma enorme literatura disponível a respeito de construções “sustentáveis” e tecnologias passivas (energia, reuso da água, etc), além de propostas urbanísticas interessantíssimas, que permitiriam abordar o problema em outros termos.
Dos estudos de caso apresentados no período vespertino, uma observação muito interessante: os maiores êxitos na implantação de “Agendas 21” ocorreram nos casos em que se vinculou esse processo de busca do “desenvolvimento sustentável” ao processo político e participativo do planejamento institucionalizado – no caso das cidades de Barueri e Ribeirão Pires, expostos no curso, da elaboração do Plano Diretor Municipal. Mas a condição necessária não é suficiente: o caso da Agenda 21 Local do Gasoduto Obati (Petrobrás), que atravessa 8 municípios na RMSP e que foi exposta pelo Instituto Ecoar, mostrou-se a importância de um trabalho sério de sensibilização e mobilização da população envolvida, de articulação e “empoderamento” (empowerment) das parcelas menos favorecidas, e de monitoramento constante e atento dos rumos do processo, com a clara consciência dos objetivos perseguidos e dos princípios de representatividade e legitimidade democrática, e de inclusão social (e política).
Em suma, o seminário expôs claramente as “feridas abertas” dos debates em torno da questão ambiental urbana, mas mostrou também os possíveis caminhos a serem seguidos, tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada ou pela sociedade civil organizada. A nós cabe estar atento a esses desenvolvimentos, e buscar promover, em todas as oportunidades cabíveis, a inserção mútua entre meio ambiente e humanismo.
notas
1
Dissertação em fase de conclusão, sob orientação do Prof. Dr. Phillip Gunn, e com defesa programada para o primeiro semestre de 2005, ainda sem título definido.
2
Vide, a respeito, ROSSET, Clément. A antinatureza. Elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989.
3
Ideal que remete de imediato ao paradigma da cidade-jardim howardiana, mas que, de fato, oculta o apreço pelo subúrbio, mais do que de fato pela cidade. Lewis Mumford já havia detectado o problema em seu clássico A cidade na história – cf. a respeito os dois capítulos finais. MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo, Martins Fontes, 4ª edição, 1998.
4
COMARÚ, Francisco de Assis. “Cidades Saudáveis”. Ver também www.cidadessaudaveis.org.br.
5
MARTINS, Maria Lúcia Refinetti. “Urbanização e o meio ambiente: qual o conflito?”, 21 out. 2004. <http://www.ambiente.sp.gov.br>.
6
Manifestação de uma ouvinte, na sessão de debates do curso. Referia-se à preocupação de moradores de Piracicaba (e suas próprias) quanto às intenções do município em se tornar referência nacional em coleta seletiva e reciclagem.
sobre o autor
Marcos Virgílio da Silva é arquiteto urbanista e consultor ambiental, e mestrando em Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP. Em sua dissertação, aborda a presença das idéias, doutrinas e ideologias oriundas das ciências biológicas (em particular a Ecologia) nas concepções urbanísticas modernas e a constituição da idéia de “meio ambiente urbano”