Borda como conceito
A borda se refere ao extremo ou margem de algo (1). É um confim no qual se verifica um limite, o perfil ou figura que fecha uma forma configurando-a e estabelece o deslinde entre esta e seu entorno adjacente, gerando um fecho perimetral. A borda define uma área fechada ou um espaço, contido e delimitado por elementos envolventes. No campo disciplinar da arquitetura, o termo borda se associa não só com a idéia de um fechamento que deslinda campos com precisão, como também com um estado ou situação intermediária entre duas áreas ou regiões adjacentes. A borda no espaço arquitetônico é uma franja, uma área ou espaço de borda que se pode produzir e experimentar através de práticas subjetivas como um espaço predominantemente linear. Neste sentido, o espaço de borda se percorre com a consciência de estar em um espaço diferenciado que encerra um lugar (bordas como circunvalação ou rodeio do lugar central) ou que separa áreas diferentes, que ficam lateralizadas pelo percurso (borda como trânsito entre lugares). Vistas a partir dos lugares que ficam encerrados ou separados pelas bordas, estas se percebem de um modo diferente: é o limite que marca a abertura ou fechamento para outro lugar distinto, dando lugar à experiência do atravessamento. As tensões de atravessamento são complementares às tensões de percurso na borda, constituindo ambas uma experiência existencial fundada na percepção dinâmica do trajeto.
No espaço urbano, as bordas geram uma fenomenologia que se registra tanto na ordem física da cidade como na simbólica: uma via marginal não só implica o limite entre a terra firme e a passagem à água como também um encontro entre cidade e natureza, por exemplo (Foto 1). Um corredor viário pode ser um elemento de associação entre duas vizinhanças enquanto que uma via férrea pode demarcar bairros irreconciliáveis entre si.
Em toda cidade, o espaço público pode entender-se como um território específico dotado de suas próprias marcas e signos de delimitação (2). O espaço urbano está atravessado por bordas que demarcam áreas diferentes, gerando separações e suturas. As bordas da cidade põem em dúvida o sentido mesmo do espaço público que se pressupõe fisicamente contínuo e social e culturalmente universal. As bordas atualizam, expressam e significam diferentes espacialidades e temporalidades da cidade. Estas alternâncias e variações definem não só uma característica do espaço público da cidade contemporânea como também uma de suas problemáticas mais agudas: a da cisão, a segregação, a interrupção da cidade como totalidade sistêmica, aspectos estes sobre os quais se centra o interesse deste trabalho.
Em tal sentido as bordas físicas da cidade se associam metafórica ou literalmente com fronteiras, margens, limites, passagens, transições, umbrais, etc. Cada um destes termos confere matizes e qualidades ao conceito inicial.
Conceitos afins
O conceito de borda se enriquece ainda mais quando se estabelecem relações com outros conceitos-chave cuja associação dilata as possibilidades de compreensão das bordas em relação ao espaço público e à cidade dividida.
Michel De Certeau expressa que o arquiteto congela lugares (3). A afirmação supõe a existência de uma imposição de forma sobre a qual opera a ação do indivíduo que segue trajetórias no espaço tecnocraticamente construído. Este espaço, irremediavelmente normatizado, fica exposto à ação que o articula, ação que, para De Certeau, é “uma tática, um álibi do sujeito. A tática se explica por sua diferença em relação à estratégia; na estratégia há cálculo em um contexto de relações de forças, o indivíduo se circunscreve em um lugar de poder, se situa em um lugar próprio que lhe serve como base para o manejo de suas relações com uma exterioridade distinta”. No caso da tática não há lugar próprio, nem portanto fronteira que o distinga de outro como uma totalidade visível, “não dispõe de uma base onde capitalizar vantagens. A tática, à diferença da estratégia, é fragmentária e oportunista, é parcial e deslocalizada. Muitas das práticas cotidianas são de tipo tático, sustenta o autor, que vê em particular em nossas cidades, que as práticas táticas se multiplicam com o desmoronamento das estabilidades locais como se, ao já não estarem fixadas por uma comunidade circunscrita, se desorbitam errantes”.
Interessa aqui recuperar o conceito de ação como prática tática. Ele permite associar o espaço público com uma forma tecnocraticamente construída ajustada a leis e regulamentos, normas e consensos, que prescrevem condutas sobre as quais se estendem uma ação oportunista, contingente e eventual que impacta no espaço público produzindo territorialidades instáveis e alternativas. A ação em De Certeau é dissolvente da ordem, dissociadora dos lugares – o próprio unívoco – e geradoras de trajetórias vetoriais que temporalizam o espaço, tal como ocorre na rua que se transforma em espaço por ação dos caminhantes (4). A possibilidade de separar/juntar, rodear/dividir das bordas urbanas favorece, dada sua indeterminação original, as ações táticas ao apresentar-se como espaços equívocos da cidade nos quais cabe aos sujeitos materializar as trajetórias vetoriais de que fala De Certeau.
Manuel Delgado, por sua parte, trabalha o espaço público como o âmbito por antonomásia do jogo, quer dizer da alteridade generalizada (5). Nesse âmbito se produzem deslizamentos e bifurcações “cujos protagonistas já não são comunidades coerentes, homogêneas, entrincheiradas em sua quadrícula territorial como atores de uma alteridade que se generaliza, passantes à deriva, dissimuladores natos, peregrinos eventuais, viajantes de ônibus, citados à espera que definem consensos sobre a marcha” (6). Citando Birdwhistel, propõe o espaço público como “uma proxemia do espaço social e pessoal, [...] uma ecologia do pequeno grupo com suas relações formais e informais, suas hierarquias, marcas de sujeição e domínio, seus canais de comunicação que determinariam territorialidade. Territorialidade como identificação dos indivíduos com uma área que interpretam como própria, e que se entende que deve ser defendida de intrusões, violações ou contaminações” (7), mas que dão lugar a estruturas líquidas que confrontam com o espaço construído. Delgado diferencia a cidade do urbano. A cidade é um espaço habitado, o urbano não; “o urbano é um espaço que não pode ser morado, [...] se desenvolve em espaços desabitados e inclusive inabitáveis. Em relação com o espaço em que se desenvolve, não está constituído por habitantes possuidores ou assentados, mas por usuários sem direitos de propriedade nem de exclusividade sobre esse marco que usam e que se vêem obrigados a compartilhar a todo momento” (8). Em tal sentido o espaço público é um espaçamento, uma extensão urbana regida pela distância, que se usa de passagem, territorializada por técnicas e práticas simbólicas que a organizam e que são inumeráveis, que proliferam até o infinito renovando-se a cada instante. Interessa explorar esta noção do espaço público como o espaço de ninguém, que se constrói com a distância e admite somente consensos que produzem uma territorialidade instantânea. O dito amplia a atenção que já não se deposita só naquele fixo e determinado que tem o território do espaço público convencional da cidade como também, e especialmente, na topografia móvel do público que se gera na ação dissolvente de indivíduos, do qual resulta uma territorialidade à revelia, oposta à dos espaços projetados. Também aqui é funcional o espaço de borda, posto que o cidadão deslocado e nômade da cidade contemporânea se identifica com a indeterminação das bordas, nas quais recupera pertinência e legitimidade.
Do campo do pensamento, o aporte de Gilles Deleuze e Félix Guattari constitui uma referência válida para este trabalho (9). A profusão de conceitos propostos pelos autores permite pensar a diferença e a multiplicidade que se intui infundem o espaço público e que brindam a potência de uma inerente projetualidade do público. O espaço público pode ser pensado desde o eventual do rizoma do comportamento social e seus processos aleatórios e imprevisíveis ou bem desde a estabilidade da forma física e sua estratificação material, forma que por sua própria fixação e inércia está sempre ameaçada pelos deslocamentos e rupturas da ação social. A ação social se expressa como atividade no espaço público, melhor ainda, como desenvolvimento de atividades que como descargas pulsionais de corpos e objetos, dispositivos e mecanismos, organizações e processos geram concentrações mais ou menos focalizadas (detenções, coagulações) ou fluxos (trânsitos, deslocamentos) não sempre governáveis nem previsíveis. As atividades no espaço público são desestabilizadoras, introduzindo uma temporalidade selada por acelerações, desacelerações, corrimentos, espessamentos, etc. A articulação que um tipo de atividade rizomática e formas físicas consuetudinárias propõem permite uma aproximação não estrutural ao público, uma abordagem dos efeitos não previstos explicáveis pelo devir do público antes que pela prescrição da regulamentação do espaço público.
O conceito de território, por sua parte, é trabalhado pelos autores tanto em um sentido afirmativo, como lugar da distância crítica entre os seres da mesma espécie com as quais se assegura e regula a coexistência dos membros de uma mesma espécie como que também faz possível a coexistência de um máximo de espécies diferentes em um mesmo meio, especializando-o (10). Este território está indicializado, está marcado, tem expressão. Mas também o território é contado em sua dissolução, quando opera na mesma linha de fuga (11) que o desterritorializam, quando ocorre um movimento de abandono de toda regularidade, de quebrantamento da estabilidade. Esta desterritorialização produz diferença e se experimenta como intensidade da transferência, como efeito de vetores que operam em um campo. O jogo do urbano e de seu espaço público é um jogo de territorialidades que se desterritorializam introduzindo o aleatório e eventual como uma condição da expressão. A ação no espaço público bem pode assimilar-se aos que os autores propõem como um plano de contingências, algumas regularidades transitórias cujo tempo não é o de cronos (contínuo, seqüencial) mas o de aión (12), o tempo indefinido dado pelo intervalo no qual coincide um demasiado tarde com um demasiado cedo. O aión é um tempo sem medida, o tempo do acontecimento. Os espaços de borda da cidade são concomitantes com esta temporalidade aiónica que impõe à vida cotidiana âmbitos do desdobramento de uma ação contingente que em seu devir marca territórios, desenhando ou confirmando bordas.
Estes conceitos confrontam decididamente com uma idéia de cidade e de espaço público normatizada e, enquanto tal, estruturada e definida. A cidade contemporânea e o espaço público – sua mais relevante expressão – não desaparecem sob a ameaça que sofre sua razão estrutural, mas se transformam em um fenômeno de multiplicidade. Na cidade estruturada (pela história, pelo planejamento, pela memória coletiva) o espaço público formal convive com o público próprio da cidade emergente da complexidade do presente. A cidade atual é uma cidade desafiada, suspeitada, descrida dos atributos de sistema pela qual é entendida como uma unidade complexa de partes em tensão. O espaço público da cidade estruturada é um território organizado a partir da existência de lugares primaciais geradores de centralidade, lugares geográficos nos que se produz uma fixação espaço-temporal de formas, usos e significados historicamente amalgamados (praças fundacionais, edifícios institucionais, etc.) capazes de produzir territórios definidos pela pauta de centralidade que implicam. Os próprios processos urbanos da modernidade industrial antecipadamente alteraram a estabilidade somente registrável na cidade pré-moderna. A metropolização e a suburbanização introduziram logo na experiência do espaço público um grau de distanciamento e indiferença que, transcorrido o longo processo de desenvolvimento capitalista, se expressa na atualidade como um estado de exacerbação de tendências registráveis na história recente. De tal modo, os atuais processos de dispersão, gentrificação e divisão da cidade intensificam a percepção do espaço público como uma dimensão desestabilizada e errática da cidade, inteiramente anômico, degradado e desvalorizado.
As considerações realizadas constituem um marco teórico necessário com o qual se procura entender o espaço público pelas noções de borda, antes que pelas certezas das estruturas, aceitando que no presente de nossas cidades, em ocasiões o espaço público se oferece como uma referência estável e certa, um espaço estratégico para o exercício da cidadania e em outras, pelo contrário, se constitui em um âmbito dominado pelo eventual e o contingente, territórios instáveis e indeterminado da ação tática de sujeitos desamparados.
Bordas como fenômeno do público
Tanto o conceito de borda como o de centro, contribuem para explicar a noção de território. Em trabalhos anteriores se tratou de explicar que os elementos materiais e simbólicos de centralidade são constitutivos, no sentido de determinação categórica, do espaço público como um território definido, no qual se projetam domínios e se determinam jurisdições de maneira inequívoca (13). O espaço público de uma cidade é um caso de territorialidade definida pela convergência espaço-temporal do direito público e uma extensão física sobre a qual esse direito tem efeito jurisdicional. O motivo deste trabalho é entender que os processos da territorialidade do espaço público na cidade contemporânea, e seus fenômenos de distopia e desterritorialização, não são processos lineares simples mas que ao contrário sua fenomenologia apresenta dificuldades epistemológicas e metodológicas que a arquitetura e o urbanismo devem revisar num intento de recuperar pertinência como práticas projetuais na cidade. Para isso se propõe deslocar o olhar desde os aspectos constitutivos da centralidade geradora de territórios levando-a às bordas, que marcam o limite, margem ou confim do público e onde precisamente se avivam os conflitos físicos e sociais, materiais e simbólicos, da cidade contemporânea. Em síntese, e reiterando, se trata de apreciar o fluxo que vai do espaço público (material, normativo, estruturado e estruturante) ao público (narrativo, simbólico, fluente, débil).
O espaço público se vive como a pré-existência que dá lugar à experiência particular e própria, experiência de ação que o modifica dando lugar a episódios do público. O público é o efeito dessa ação de viver na realidade eminente da vida cotidiana, na qual os homens se vêem incorporados a determinadas situações tal como eles mesmos as definem no contexto de sua vida na cidade.
A cidade contemporânea como fenômeno histórico que se especifica em nossas cidades, fica determinada pelas tendências próprias da mundialização (capitalismo transnacional de base pós-industrial, modo informacional de produção, recolhimento da subjetividade) que caracterizam a condição contemporânea da vida urbana, com efeitos particulares segundo o caso que se considere. Ao articular-se essas tendências históricas estruturais com a conjuntura local suscitam-se problemáticas e fenomenologias particulares nas cidades e no espaço público, que constituem o objeto deste trabalho e o objetivo amplo da pesquisa na qual o mesmo se baseia. Esta problemática se manifesta como desajustes das coordenadas espaço-temporais que até agora ofereceram referência, identidade e sentido ao espaço urbano. No caso de algumas cidades argentinas, fenômenos tão díspares como a ampliação do impacto e a incidência dos meios de comunicação no corpo social, a generalização de formas de consumo dirigido, o declínio de funções tradicionalmente cobertas pelo Estado, a debilidade dos sistemas de representação política e, em geral, a ação convergente de distintos dispositivos de disciplinamento social, provocaram um radical declínio do sentido hierárquico do espaço público dando lugar a fenômenos complexos e novos merecedores de estudo.
Deslocamentos
É evidente que o espaço público urbano já não se explica só como a contraparte física substantiva de uma sociedade civil, entendida esta como sujeito histórico da cidade. A desvalorização do valor simbólico do espaço público, a conseqüente degradação de sua imagem e as disfunções que apresenta, expressam a condição crítica do espaço público em nossas cidades, crescentemente reguladas por lógicas econômicas, leis de mercado e parâmetros relativos somente à produção e ao consumo. Prosperam as formas desagregadas, prevalecem os interesses e os olhares setoriais (para uns é um espaço técnico, viário e de infra-estruturas, para outros é o âmbito do perigo e a negação da alteridade, espaço da oportunidade e do abuso, da transgressão e a anomia, etc.) pelo qual a hipótese de que o espaço público é fator de continuidade cognitiva, perceptiva e valorativa da cidade perdeu entidade em uma aproximação empírica e fenomenológica da cidade ainda que sobreviva na formalidade do sistema legal.
O problema que se apresenta radica na dissociação entre as formas físicas, os usos sociais e os significados culturais do espaço público urbano. Tal dissociação leva às aludidas territorialidades instáveis do espaço público e a processos incertos e indeterminados na cidade.
O problema da dissociação se explica inicialmente por um jogo de derivas, de deslocamentos e descentralizações que estaria ocorrendo toda vez que a relação estrutural entre formas, usos e significados se altera em um algum grau e modo. Em tal sentido, se reconhecem quatro deslocamentos significativos:
Do espaço público ao público. O espaço público como categoria constitutiva da cidade tem implicações físico-espaciais e sócio-culturais que o caracterizam como o âmbito geral, comum, coletivo, universal e superior de integração social em um espaço físico único. Apresenta-se como um fator de continuidade e integridade da cidade física, conformando um estado de fato e de direito que se sustenta em ao menos três campos que o legitimam: Estado, Sociedade e Cultura. Para o Estado, o espaço público é tudo aquilo que lhe compete e cai em sua jurisdição; para a Sociedade, é o âmbito de ação da cidadania e a integração do vínculo intersubjetivo, e para a Cultura, é o sistema de representação de um imaginário coletivo, no qual se inclui a alteridade, a diversidade e a diferença em um sistema simbólico socialmente compartilhado. Estas noções de espaço público supõem uma correspondência entre a forma física que se percebe (ruas, praças e parques, edifícios, espaço e âmbitos) os usos que a ação social pratica no espaço físico (serviços educacionais, administrativos, sanitários, de segurança e justiça, de dispersão, recreação e culto, etc.) e os significados assumidos ou derivados dessa ação (cidadania, comunidade, civismo). Advém o público quando estas relações se quebram ou transgridem, tomando prioridade a ação intersubjetiva de indivíduos que acontece prescindindo da normativa (jurídica, política, social, cultural). Os exemplos são muito variados: ocupações abusivas de calçadas com fins particulares ou privados, congregação social em lugares insólitos; vandalismo e ocupações intempestivas de grupos; invenções de espaço público dos shoppings centers, parques temáticos, etc.
Do lugar à distopia. O conceito de lugar supõe uma sólida correspondência entre formas, atividades e significados, com uma marcada estabilidade espaço-temporal que dá identidade, memória e referência à sociedade. O lugar tem um forte efeito organizador do espaço urbano gerando uma topologia que facilita a compreensão e valoração da cidade. Ademais, a existência de um sistema de lugares significativos, associados a formas relevantes e usos pertinentes que brinda a cidade com uma dimensão de totalidade, um sistema complexo, mas integrado. Cada lugar público conforma um núcleo de centralidade material e simbólica (a praça, a escola, a rua principal) que territorializa o espaço urbano gerando uma topologia de continuidades perceptivas, cognitivas e valorativas que alcança à sociedade em seu conjunto. Na distopia o lugar muda, ainda que não desaparece. Perde intensidade, se desajustam as relações ou se dissociam os termos gerando-se experiências desconcertantes que quebram a possibilidade de compreender a cidade como uma entidade total, contínua e estruturada. São exemplos a respeito dos fenômenos da urbanidade emergente: corredores, áreas vagas, bairros fechados.
Do território à territorialidade. A noção de território supõe um estado de fato fundado em um direito. É uma integração espaço-temporal de um sistema normativo (leis, valores, crenças) que se aplica sobre uma extensão geográfica (a cidade, um bairro, uma quadra) na qual um poder (o Estado, as instituições intermediárias) exerce sua jurisdição. Vê-se destorcido pela proliferação de poderes formais e informais que operam no espaço público no contexto de uma sociedade contraditória e conflituosa. O território é conseqüência de feitos de centralidade que o constituem (lugares), mas seus efeitos se dispersam em sua extensão espacial e se agravam em suas bordas. A borda é o ponto de extinção do domínio e da jurisdição que determinam o território; ali o sistema entra em crise ao estipular-se a necessidade de uma articulação com uma outra territorialidade, diferente. O espaço público tradicional se define como um território estável e preciso; à maior consolidação física e social da cidade lhe corresponde uma configuração da territorialidade pública mais estável, isto é, bordas precisas, limites precisos. As perturbações da condição contemporânea desafia a estabilidade que se vê alterada por invasões e sabotagens, transgressões e rupturas que fazem do espaço público um território eventual sobrevivendo episódios de territorialização / desterritorialização tão desconcertantes como intensos e produtivos. Na territorialização eventual do público a atenção se desloca para os limites do território antes que para sua centralidade constituinte. São exemplos os territórios instantâneos das tribos urbanas, os efeitos diretos de um bairro fechado.
Do projeto à projetualidade. O projeto como instrumento de aplicação do conhecimento disciplinar da arquitetura e do urbanismo supõe certeza epistemológica e metodológica. Em geral se aceita que a partir de um programa e um local e, reconhecidas algumas condições objetivas de produção, o projeto urbano-arquitetônico propõe a devida forma, com ajuste às expectativas de usos e conforme sistemas simbólicos. O projeto satisfaz assim o objetivo superior de sintetizar uma contradição presente com um sentido de progresso e superação atando ao propósito estético o valor ético. A aceitação da incerteza e da probabilidade acima das certezas e das possibilidades tanto quanto as condições de indeterminação e eventualidade dos processos urbanos estampados pelas economias de fluxo, a terciarização, a informatização, a massmediatização da vida urbana, etc, modificam os supostos positivistas do projeto fazendo surgir a projetualidade como uma prática de contingência, um tipo de operação imprevista na que os elementos disponíveis estabelecem relaciones instantâneas de sentido antes que estruturas representativas de ordens e valores estabelecidos. A projetualidade sobrevém no ponto em que formas, atividades e significados estando co-presentes produzem um sentido para a contingência e uma expressão para o acontecimento.
O reconhecimento destes deslocamentos abre frentes problemáticas das quais as mais relevantes são de ordem operativa e ética. Operativa, posto que as disciplinas projetuais reconhecem uma construção histórica que se cristalizou no predomínio de métodos dedutivos de determinação da forma arquitetônica do tipo análises–diagnóstico–proposta e suas retro-alimentações; éticas, porquanto é necessário mitigar, em um momento de extrema debilitação das visões ideológicas, o risco de uma aceitação onisciente e passiva destes deslocamentos. Efetivamente, estes estados de fato se apresentam como originados em processos fortemente performativos e dotados de grande potencial de projetualidade, pelo que se naturalizam pelas práticas cotidianas e, portanto, resultam eximidos de qualquer juízo de valor e carentes de tensões de mudança. Ao contrário, reconhecer estes estados de fato relativos ao espaço público não implica aceitar automaticamente seus deslocamentos, mas muito mais entender as problemáticas que habilitem aos arquitetos e urbanistas a trabalhar novas hipóteses para a compreensão e a ação no espaço público, antepondo uma atitude crítica e reflexiva que descubra em cada caso – em cada incidente do público – como põem em tensão tais deslocamentos o sentido que historicamente tem tido o espaço público, com vistas a sua reproposição.
Advertidos estes problemas, o reconhecimento destes deslocamentos permitiria traçar melhores hipóteses para a ação na cidade. Permitiria também uma revitalização da crítica dos processos urbanos que não só ponderaria o maior ou menor enquadramento em um conceito de cidade como sistema, como também no conceito de multiplicidade rizomática do público.
Consideração final
A cidade contemporânea, que no contexto deste trabalho se reconhece cindida, apresenta uma imagem descontínua e heterogênea, o que significa fortes fraturas ou perturbações cuja compreensão e valoração social interessa reconhecer. A mera existência de bordas, fronteiras ou limites, não constitui em si mesma fenomenologia urbana original, mas é um problema social, meio-ambiental ou técnico-funcional, que se atualiza no presente. É signo de fratura do laço social (por proscrição, negação, segregação ou guetificação de grupos ou segmentos sociais), de degradação ambiental e desvalorização da paisagem e de desfuncionalidade por incompatibilidade de usos, déficit de serviços e obsolescência de infra-estruturas.
Na cidade cindida se reconhece a existência de uma cidade central, historicamente sedimentada, com maior grau de estruturação, com gradientes de centralidade (centros regionais, centro urbanos, centros de bairro) que é reconhecida como a cidade oficial, a que estabelece a referência tácita a respeito da qual se medem as diferenças que propõem as cidades outras, a do subúrbio residencial, a marginal e pobre, a cidade tomada dos bairros fechados, a cidade deslocada dos enclaves comerciais de dispersão, o espraiamento das periferias de crescimento extensivo, a dos corredores viários aos que se acrescentam usos variados outrora próprios da cidade central (conjuntos habitacionais, salas de cinema), etc. Em cada um destes estados da cidade cindida é possível verificar as tensões entre espaço público e o público, lugares e distopias, territorializações e desterritorializações, projetos e emergência de projetualidade. Sob a síndrome da cidade cindida a fenomenologia do múltiplo prima sobre a fenomenologia do mesmo ao debilitar-se a unidade urbana, sendo as bordas a manifestação desta problemática que se resignifica no contexto da hipótese da cidade cindida. Neste marco as bordas são expressão de uma desintegração extrema de bairros, modos de vida, condições sócio-econômicas e ambientais antes que interfaces necessárias, suturas ou transições entre partes da cidade aceitavelmente equivalentes.
O estudo da fenomenologia das bordas, tal como é experimentada pelo habitante urbano cotidianamente, pode melhorar a compreensão do espaço público e potencializar a atuação projetual em territórios do público. Em tal sentido, não só deve-se buscar tal fenomenologia nas marcas persistentes e inerciais do espaço público físico como também nas marcas efêmeras e espontâneas das contingências e eventualidades do público. Precisamente, a aleatoriedade resultante de ações espontâneas, intencionais mas não estruturadas, intensas mas não previsíveis, de pessoas ou grupos de atuantes da cidade gera na ordem física do espaço público uma territorialidade diferente, sobreposta ou imposta, que enerva o espaço público convencional, desbordando inclusive seus limites físicos.
O jogo entre coincidência / não coincidência entre espaço público e o público, esta ocorrência de fatos que em ocasiões significam uma articulação estrutural – e por ele previsível e legal – de formas, atividades e significados, e em outras uma desconcertante desarticulação, demonstra a complexidade atual da cidade contemporânea. Tampouco é original a ocorrência do inesperado em um espaço pautado, mas sim é igualmente indicativa da problemática contemporânea a intensidade com que este jogo se desenvolve.
A prática projetual de, para e no espaço público se retrai frente a este jogo. O projetista formado em uma matriz convencional necessita de dados certos (um programa funcional, um lugar, certos recursos), e contextos produtivos (normas, consensos, tradições) determinados e estáveis para desenvolver o projeto, conseqüências do qual proporá uma particular configuração (estruturação) de formas, atividades e significados. Nas situações de distopia e desterritorialização, o projetista fica bloqueado pela incerteza e pela indeterminação das situações que deve enfrentar, pelas pluridimensionalidade e conflitividade das situações projetuais que o convocam. Como intervir com um sentido público no bairro fechado, cuja vizinhança se auto-segrega e entrincheira atrás de cercas agressivamente guardadas? Como intervir na cidade marginalizada, auto-organizada sobre a base de uma legalidade paralela à da cidade integrada e oficial? Como intervir nas áreas centrais tradicionais nas que se degrada o patrimônio arquitetônico e urbano, se acelera a especulação imobiliária e aumentam as disfunções de serviços e infra-estruturas? Como intervir nas áreas vazias, espaços abandonados com vestígios de seus passados industriais, ferroviários ou portuários, cuja reinserção urbana só se pensa em termos de unidades de negócios no marco da hegemonia neoliberal? É evidente que o espaço público apresenta desafios tanto na ordem ontológica de sua centralidade simbólica como na fenomenologia que o expressa.
Este trabalho, entre monográfico e ensaístico, é em si mesmo indicativo da tensão que se percebe no campo disciplinar e procura formular, uma e outra vez, perguntas que devolvam o olhar em direção às potencialidades e vigências do saber urbano-arquitetônico: Pode a arquitetura e o urbanismo incluir ou abarcar em sua epistemologia e metodologia a instabilidade dos territórios do público? Que relações se estabelecem entre a forma arquitetonicamente determinada (fachadas, exteriores e interiores sistematizados para o uso público) e os dispositivos para-arquitetônicos (elementos físicos levianos ou leves, fixos ou móveis, permanentes ou efêmeros) que proliferam no espaço urbano? Que relações se verificam entre os usos que a forma habilita ou infere e os que a ação social estabelece? Que valoração social se infere destas ações espacializadas? Existe possibilidade para a ação projetual quando há disjunção entre formas e usos? Se se aceita a pertinência destas perguntas estar-se-á aceitando por sua vez a crise disciplinar e, com isso, a necessidade de revisar os constructos mais consolidados das disciplinas projetuais. Para isso será conveniente acudir em colaboração com os estudos de antropologia e sociologia urbana, de políticas de desenvolvimento e gestão local, de manejo de recursos e desenvolvimento sustentável, etc, será necessário buscar melhores correspondências entre o pensamento e a prática projetual com ajuste a novos paradigmas que incluam inevitáveis doses de incerteza e indeterminação, de multiplicidade e devir, de eventualidade e contingência. A aposta é a recuperação de uma boa vida pública em nossas cidades, o que não depende somente da insistência na rearticulação estrutural de formas, atividades e significados dos espaços públicos mas também de administrar a projetualidade inerente do público, reconhecendo as bordas como espaços físicos instáveis que se re-desenham constantemente marcando e desmarcando uma e outra vez o complexo devir da vida urbana.
notas
1
Dicionário on-line na Internet da Real Academia. Ver http://buscon.rae.es/diccionario/drae.htm.
2
Ver: ARROYO, Julio. Espacio público. Fenomenologías complejas y dificultades epistemológicas. Apresentação aceita no VII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, Universidade Federal de Bahia, 2002.
3
Ibidem.
4
Ibidem, p.129.
5
DELGADO, Manuel. El animal público. Barcelona, Anagrama, 1999, p. 14.
6
Ibidem, p. 25.
7
Idem, p. 30.
8
Idem, p. 33.
9
DELEUZE, Gilles y GUATTARI, Félix (1980). Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia. Valencia, Pre-textos, 1997.
10
Ibidem, p. 325.
11
Idem, p. 517.
12
Idem, p. 517.
13
Ver: ARROYO, Julio. Espacio público. Fenomenologías complejas y dificultades epistemológicas. Cit. SCHUTZ, Alfred (1974). El problema de la realidad social. Bs. As., Amorrortu, 1995.
[tradução de Ivana Barossi Garcia]
sobre o autor
Julio Arroyo, professor. Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo, Universidade Nacional do Litoral, Santa Fé, Argentina.