Nos anos 1950, o Recife iniciou um processo de transformação de sua paisagem com o espraiamento da mancha urbana e a verticalização do centro e de alguns subúrbios. A transição das residências unifamiliares para os edifícios de apartamentos, que rapidamente se tornariam o tipo predominante de moradia para as classes médias e altas locais, trouxe uma série de desafios aos arquitetos locais. Como respeitar hábitos tradicionais e padrões culturais ligados ao rés-do-chão em um edifício alto? Como estabelecer relações entre o ambiente e o clima local nessa nova forma de morar? Como reinterpretar formas tradicionais de vedação e de proteção solar nessa nova escala?
Esses foram alguns dos desafios que o arquiteto Wandenkolk Tinoco encontrou quando se formou na Faculdade de Belas-Artes do Recife, em 1958. Na escola, foi aluno de Delfim Amorim e Acácio Gil Borsói, dois mestres da arquitetura moderna pernambucana. Após trabalhar com os dois, foi assistente de Amorim na mesma escola. Tinoco desenvolveu uma sólida carreira, tornando-se um dos principais representantes da arquitetura local e exercendo grande influência nas gerações seguintes, tanto pela prática arquitetônica como pela atividade de ensino.
Na década de 1970, pode-se afirmar que Wandenkolk Tinoco chegou à fase madura de sua carreira e passou a projetar para a construtora AC Cruz. Foi nesse período que projetou os edifícios Villas (Villa Bella, Villa Mariana, Villa da Praia e Villa Cristina), nos quais melhor sintetizou sua busca de agregar os valores da casa ao apartamento. Esses edifícios se apresentam como objeto deste trabalho. Após algumas considerações sobre os problemas arquitetônicos advindos dos edifícios altos e a introdução desses no contexto local nos anos 1950 e 1960, essas obras de Wandenkolk serão analisados por meio de quatro temas: a reinterpretação de arranjos espaciais tradicionais nos edifícios altos; o processo de confecção da fachada, com seus jogos de texturas e de luz e sombra e a releitura das formas vernaculares e clássicas; o atendimento aos condicionantes climáticos locais por meio de elementos como varandas, peitoris ventilados e cobogós; e, por fim, a relação entre edifício e cidade.
O Arranha-céu e a verticalização em Pernambuco
Diante da escassez de terrenos nas áreas centrais das metrópoles modernas e do advento de novas tecnologias, como as estruturas de aço e de concreto armado e o elevador elétrico, o arranha-céu apareceu no final do século XIX, consolidando-se como forma arquitetônica marcante no século XX. Como símbolo do progresso e do futuro, tornou-se um objeto de fascínio e uma parte indissociável do imaginário de futuro proposto por arquitetos e artistas modernos (1).
Os arranha-céus transformaram a habitual relação entre cheios e vazios, vedação e estrutura, o que afetou a própria forma de se pensar a arquitetura. Como bem ilustrou Colin Rowe, a estrutura em aço, com o aumento das superfícies envidraçadas e a diminuição dos suportes, liberou as fachadas de expressarem as cargas do edifício e as tradicionais analogias antropomórficas. Consequentemente, não seria mais necessário utilizar uma tradição clássica que, com suas colunas, capitéis e frontões, esteve por séculos associada à concepção da fachada (2). Com a real possibilidade de construção desses edifícios, os arquitetos se depararam com diversas questões. Até que ponto as novas tecnologias iriam determinar a nova forma? Como seriam articuladas as funções neste novo formato? As fachadas deveriam representar intenções estéticas ou deveriam ser deixadas livres, como a expressão de uma nova tecnologia construtiva?
Louis Sullivan procurou responder essas perguntas especulando sobre como o edifício alto deveria ser tratado formalmente, ou seja, como “prover significado estético a este estéril empilhamento de andares” (3). Acreditando que a forma deveria ser a expressão direta e honesta da função, Sullivan chegou à sua clássica conclusão de que a forma ideal para o edifício alto deveria partir de sua divisão em base, corpo e coroamento. A base, geralmente ocupada por lojas comerciais, deveria estabelecer uma relação adequada com a rua e com o porte do edifício. Acima dela, seguiriam os pavimentos-tipo de escritórios, refletindo a multiplicação daquele elemento e, no topo, o ático que, com “seu peso e caráter”, amarraria a composição. Além disso, dever-se-ia enfatizar a verticalidade do edifício, pois ele deveria demonstrar “sua força e o poder da altura” (4). Sullivan e seus colegas de Chicago foram pioneiros ao tratarem questões tecnológicas, como a inserção dos elevadores, a estrutura em aço e ferro, o uso do vidro, dando a esses elementos uma forma plástica condizente com seus materiais e funções. Alguns anos depois, Mies van der Rohe e Le Corbusier introduziram o tema do edifício alto de vidro no imaginário europeu, ao criarem imagens paradigmáticas que perduraram como tema arquitetônico fundamental ao longo do século XX. Os arquitetos brasileiros procuraram intermediar entre a forma moderna de habitar, as pressões do mercado, as novas técnicas de construção, as restrições estabelecidas pelos contextos urbanos e as tradições arraigadas de uma sociedade ainda patriarcal, como os marcos produzidos por Rino Levi, Vital Brazil e Lucio Costa atestam.
No Recife, o edifício alto sintetizou a imagem de progresso almejada pelas elites locais e foi também conveniente em uma cidade com pouca superfície disponível. Os primeiros “arranha-céus” locais inaugurados no início da década de 1930 e eram marcado por uma estética chamada Art Déco ou Proto-modernista. Com a abertura da Avenida 10 de Novembro, atual Guararapes, entre 1939 e 1943, verifica-se a consolidação desse tipo na paisagem urbana. Apenas o Edifício Sede da Secretaria da Fazenda (1939-1942), de autoria Fernando Saturnino de Brito e o Edifício Inconfidêcia, de Carlos Frederico Ferreira (1942) apresentavam uma linguagem mais próxima da chamada “Escola Carioca”.
Os exemplos de edifícios residenciais em altura eram ainda quase inexistentes no Recife. Eram experimentos modernistas do pós-guerra por natureza, fruto da chamada escola pernambucana desenvolvida a partir de 1950, com a chegada do carioca Acácio Gil Borsói e do português Delfim Amorim. Esses profissionais foram contratados para ensinar na Escola de Belas Artes de Pernambuco e influenciaram decisivamente as novas gerações de arquitetos. Nesse mesmo período, aconteceu o deslocamento de populações para os subúrbios, como o Derby, Espinheiro, Madalena e Boa Viagem. O litoral começava a se valorizar como área de moradia, além de veraneio, ao mesmo tempo em que o edifício em altura passava a ser visto como uma alternativa de moradia.
A contribuição desses dois arquitetos para o surgimento do edifício residencial multifamiliar no Recife como foi fundamental. Edifícios como Califórnia, projetado em 1953, por Borsói, e Acaiaca, em 1957 por Amorim representam experimentações em busca do edifício em altura residencial adaptado às condições locais, mas acreditamos, sem recorrer à um raciocínio darwiniano, que as melhores sínteses só seriam alcançadas na segunda metade da década de 1960, particularmente nos edifícios Mirage (1967) de Borsói, e Barão do Rio Branco (1969) de Amorim. Nesses edifícios, os arquitetos lançaram mão de uma série de elementos que se tornaram característicos da chamada “Escola Pernambucana”, como a divisão do bloco em base, corpo e coroamento; os jogos dinâmicos de planos e volumes, tirando partido das varandas e armários que sacavam do volume; o uso comedido da cor, como resultado dos materiais de diferentes texturas; o uso de revestimentos pré-moldados, cerâmicas e azulejos; o emprego de artifícios de adaptação climática, como o peitoril ventilado, cobogós e elementos vazados; e a preocupação com arremates e detalhes construtivos (5).
O novo estilo de vida que o edifício em altura representava e o conforto que as novas instalações proporcionava, fez com que esse meio de moradia começasse a se firmar como o principal meio de moradia das classes média e alta. Os arquitetos iniciaram um processo de experimentação, procurando sempre as melhores soluções de adaptação ao clima e à cultura local. Foi nesse panorama que, a nosso ver, o arquiteto Wandenkolk Tinoco deu a sua contribuição decisiva à arquitetura moderna local.
O Arquiteto Wandenkolk Tinoco e o Edifício-quintal
Nascido em 1936, o arquiteto Wandenkolk Walter Tinoco formou-se na Escola de Belas Artes de Pernambuco no ano de 1958, onde foi aluno dos mestres Borsói e Amorim. Os arquitetos formados em Pernambuco nesse período estavam muito atentos aos meios de adaptação climática. Essas preocupações estiveram presentes nas primeiras obras de Tinoco na década de 1960, mas pode-se afirmar que foi a partir dos anos 1970 ele chegou a uma síntese mais acurada do edifício alto no panorama local.
Nesse período, ele buscou em seus edifícios em altura uma proximidade com o solo. Segundo suas palavras, ele procurou “levar ao apartamento alguns valores que estão arraigados ao chão” (6). Tinoco buscou na cultura nordestina elementos que pudessem ser levados a essas casas superpostas para amenizar a transição da casa térrea. Ele gostaria de proporcionar às pessoas algo que “não fosse muito distante do que era quando elas moravam em casas” (7). O quintal foi o elemento das casas térreas eleito por Tinoco como o que mais marcava a forma de morar na casa, pela fluidez entre interior e exterior e pelo contato com a terra que proporcionava:
“Nós do Nordeste convivemos bem com os espaços ajardinados e os quintais. Gostamos do cheiro da terra. Talvez até pela herança disponível da cultura do engenho de cana, que cultivava os campos abertos e verdes” (8).
Nesse processo de experimentação, Tinoco desenvolveu diversos esboços nos quais procurava uma espécie de articulação do quintal ao programa do edifício, por meio de grandes jardineiras suspensas dispostas nas bordas do andar, unindo a vegetação à composição das fachadas do edifício. Dessa forma, seria assim possível amenizar a aridez das fachadas ortogonais, além de possibilitar a criação de um jogo de saliências e reentrâncias que proporcionava aos seus projetos uma grande riqueza ao volume do edifício, riqueza essa que “se reporta à exuberância da nossa paisagem tropical” (9).
Embora não pudessem ter sido concretizados em toda sua plenitude, devido aos custos altos com a impermeabilização, Tinoco tentou colocar esses esquemas em prática nos edifícios que desenvolveu para a Construtora AC Cruz. Dirigida por Antônio Callou Cruz, uma grande parceira de sua carreira. Segundo Callou Cruz, a construtora procurava valorizar a figura do arquiteto, pois a “a plástica, a beleza, aliada a uma boa funcionalidade era fundamental para atrair os clientes” (10). Cruz reconhece que as soluções ousadas e originais de Tinoco foram responsáveis pelo destaque que a empresa teve naquela época. Dentre os edifícios construídos por Wandenkolk Tinoco nesse período, destacam-se o Villa Bella, de 1974; o Villa Mariana, de 1976; o Villa da Praia, de 1977 e o Villa Cristina, de 1978.
O Villa Bella, primeiro produto da parceria com a construtora AC Cruz, foi projetado juntamente com o arquiteto Ênio Eskinazi, ex-estagiário e sócio de Tinoco entre 1966 e 1974. Localizado no Espinheiro, no Recife, tem um programa simples com três quartos, sendo um deles uma suíte. Foi nele que Wandenkolk introduziu pela primeira vez as jardineiras e o jogo de reentrâncias e saliências nas fachadas. O Villa Mariana, localizado no bairro de Parnamirim, possui dois apartamentos por andar, com quatro quartos cada um, sendo um deles uma suíte. Nesse edifício Wandenkolk dispôs as jardineiras mais largas já projetadas e pode-se antecipar que se trata de sua grande obra prima. O Villa da Praia, localizado no município vizinho do Recife, Jaboatão dos Guararapes, tem três quartos, sendo um deles uma suíte. Localizado próximo à praia, ele possui uma volumetria mais dinâmica, tendo em vista a necessidade de proporcionar vista para o mar aos dois apartamentos de cada pavimento. Por último, o Villa Cristina apresenta-se bastante recuado em relação à rua e possui quatro apartamentos por andar, cada um com três quartos, com uma suíte.
Reinterpretando arranjos tradicionais
Em sua busca da adaptação do edifício alto à cultura local, Tinoco se viu na necessidade de lidar com padrões culturais preestabelecidos e com resquícios de uma sociedade patriarcal que priorizava uma divisão rigorosa entre os setores social, de serviço e íntimo. Em todos os seus projetos, essa a divisão está presente. Essas áreas são articuladas de forma fluida por meio de um ponto de distribuição, como se fosse um vestíbulo, apenas com separações visuais (11). A área social tem seus ambientes, as salas e varandas, bastante integradas, já os setores íntimos são mais delimitados por conta da privacidade. No entanto, Tinoco procura garantir o resguardo desses espaços, sem interromper a fluidez da circulação. Para tal, faz uso de artifícios, como os lavabos e o recuo das circulações. Procura ainda deixar pequenas frestas que permitem vislumbrar que há algo além. O setor de serviços, no entanto, é separado do restante da casa, comunicando-se com os ambientes sociais somente através da cozinha.
Tinoco traz da casa térrea elementos como os terraços e quintais, os jardins e as salas de almoço. Os primeiros foram reinterpretados na figura das varandas, tratadas em todos seus edifícios como um espaço que orquestra a vida da família. Como nas casas térreas modernas, há uma interpenetração dos espaços interiores e exteriores. No caso do Villa Bella, elas perpassam toda a extensão frontal das salas, integrando-se de forma extremamente fluida. Já os jardins foram dispostos de forma suspensa, como jardineiras que acompanham as janelas. Um caso singular foi o do Villa Mariana, no qual vastas jardineiras, de um metro de largura, perpassam toda a fachada principal. Nesse projeto, Tinoco conseguiu chegar mais próximo de seus esboços de quintais. Ainda como resquício dos padrões culturais nordestinos, a copa está presente nos Villas da Praia e Cristina, local despojado de reunião da família, funcionando como um anexo à cozinha, sem divisões físicas entre ambas. No primeiro edifício, ele ainda serve como mirante para a paisagem, ao sacar o volume principal.
A atenção de Wandenkolk à forma de morar tradicional não se traduz em uma forma de projetar não-moderna. Pelo contrário, o ato projetual de Wandenkolk é um exercício de disciplina, associado à racionalização, à modulação dos elementos estruturais e à procura da redução de custos. A disposição da modulação é muito semelhante nos projetos dos Villas. No Villa Mariana, tratado com um volume retangular simples como o Villa Bella, os cinco eixos estruturais são dispostos transversalmente em relação à maior lateral. Essa modulação foi diferente no Villa da Praia, tendo em vista a necessidade de as duas unidades desfrutarem da melhor vista para o mar, levando a um volume mais movimentado. É como se o volume retangular puro tivesse sua parte central, a torre de circulação e as áreas sociais dos dois apartamentos rotacionadas em 45 graus em relação às alas privadas dos apartamentos. O resultado é de um dinamismo marcante na composição.
A tessitura das fachadas
Um aspecto comum a todos os projetos de edifícios em altura de Wandenkolk Tinoco é a divisão do conjunto em base, corpo e coroamento. A base é disposta de forma mais larga em relação ao volume principal, visto que a legislação permitia um menor recuo dos limites do terreno. Desse modo, é obtida uma área de lazer, e, ainda, uma garagem coberta para os automóveis. No Villa Bella, ele solta o volume do chão, dispondo-o sobre pilotis, com a garagem semi-enterrada, e acima desta última a área de lazer com jardins nas laterais. Tratamento semelhante é dado ao Villa da Praia, que dessa vez ganha jardins mais generosos, proporcionados pelo amplo terreno.
Em relação ao corpo do edifício, Tinoco tentou diminuir o impacto causado pela diferença de escala entre a casa e o edifício. Assim, ele soluciona essa disparidade de alturas com a marcação da horizontalidade do edifício, ou seja, ele ressalta as linhas horizontais que distinguem os pavimentos trazendo o edifício mais para perto do chão. Nos Villas da Praia, Bella e Cristina, os saques dos armários e as reentrâncias das janelas altas que perpassam toda a fachada, salienta a separação dos andares. No Villa Mariana, onde as janelas ocupam toda a fachada do andar, as jardineiras são os elementos que marcam os diferentes níveis. Os edifícios projetados por Tinoco possuem uma composição que parte, na maioria das vezes, de sólidos prismáticos retangulares e chega a um resultado dinâmico por meio de reentrâncias e saliências. Todos esses elementos geram no conjunto um belo jogo de claro e escuro obtidos por meio das reentrâncias, representadas pelos planos e vidro, e pelas saliências, nos armários e jardineiras.
O coroamento é tratado com o intuito de enfatizar sua distinção e de emoldurar a composição. No Villa Bella, o coroamento é destacado com o uso do mesmo material da fachada posterior, o concreto aparente. Semelhante a ele, o Villa da Praia possui ainda um grande pano de vidro no último apartamento, correspondente a um pé-direito duplo, que destaca a moldura do volume. No Villa Cristina, o coroamento é enfatizado também pela diferenciação, de cores e de aberturas das janelas, que agora mantêm tamanho e ritmo regulares, contrapondo-se às do corpo do edifício. No Villa Mariana ele é diferenciado somente pelo recuo em relação ao corpo do mesmo e pelas aberturas predominantemente verticais que se contrapõem à horizontalidade do volume.
O arquiteto dispõe, ainda, nas esquinas dos volumes, um tratamento inusitado. Nelas são feitas duas arestas de forma a incitar um “arredondamento” das mesmas: “uma aresta fala como se fosse uma palavra, ou uma frase, um pensamento, mas se você tem duas arestas você cria um diálogo, perdendo a frieza do monólogo” (12). Essa seria uma maneira de afastar a dureza da esquina, pois, segundo o arquiteto, “os edifícios lisos, cúbicos são muito duros e não se incorporam ao meio” (13). O tratamento dado às esquinas de alguns desses projetos é bastante original. No Villa Bella, a lateral voltada para a rua, a jardineira é dividida em duas, e a janela de canto contribui para a desmaterialização da esquina. Já no Villa Mariana isso é feito no mesmo elemento, com destaque para as pestanas inferiores, enquanto que no Villa da Praia, armários sacam para formar uma esquina dupla.
Wandenkolk articulou materiais modernos com os tradicionais em soluções plasticamente ricas e de fácil execução, tendo em vista a pouca disponibilidade de mão-de-obra capacitada. O racionalismo projetual associa-se às condições do canteiro de obras, tendo em vista a confecção do material in loco e a participação ativa do arquiteto no detalhamento da execução. Os produtos padronizados, contudo, não são deixados de lado, mas utilizados de forma a tirar partido de sua flexibilidade em diferentes aplicações. Com esse trabalho, Tinoco alcança uma primorosa composição nas fachadas de seus edifícios, que unem diversas texturas a um dinâmico jogo de reentrâncias e saliências.
As cores são outro importante componente na tessitura das fachadas. Tendo o branco como a base de todas as composições, Tinoco articula tons relacionados com a natureza, como o verde, o ocre e o marrom. As cores são obtidas por meio do uso de pastilhas cerâmicas, geralmente em conjuntos de duas tonalidades, e que, pelo seu tamanho diminuto, se desmaterializam em grandes superfícies uniformes. No Villa da Praia, Tinoco desenhou uma placa de 40 por 40 centímetros com o motivo estampado do edifício que, segundo ele, alude a uma camisa estampada, o que confere ao edifício um “caráter mais praieiro e alegre” (14). A essas placas são contrapostas superfícies azuis que marcam as reentrâncias das jardineiras dos quartos. Nos Villas da Praia e Bella, Tinoco aplicou também placas de concreto aparente de tamanhos diversos em composições geométricas. A disposição desses diferentes tratamentos, todavia, não é aleatória, mas auxiliam na leitura dos elementos, como a estrutura, a marcação dos andares e a diferenciação da base e do coroamento. Por fim, integram-se ainda às fachadas as plantas das jardineiras, proporcionando vários tons e formas que se reportam à paisagem da zona da mata nordestina.
O dinamismo é uma característica marcante dos edifícios de Wandenkolk. Apesar de a maioria desses projetos partirem de simples sólidos prismáticos retangulares, ele consegue uma grande movimentação com o saque de volumes nas fachadas. Isso pode ser visto no Villa Mariana, onde largas jardineiras sacam do prisma principal, e nos Villas Bella e Cristina, onde os saques são realizados pelos armários dos quartos e pelas jardineiras. O mais dinâmico edifício analisado é o Villa da Praia que. Como visto, aparenta torcer-se em torno do eixo da torre de circulação vertical, impressão reforçada pelo saque dos armários e jardineiras e da varanda.
Fazendo o edifício respirar
Como Tinoco está sempre preocupado com o conforto e o bem-estar dos moradores, a adaptação climática é significativa em sua obra. Para tal, ele parte primeiramente da setorização, que é utilizada como forma de orientar os cômodos para a melhor ventilação e insolação, de acordo com a necessidade de permanência das pessoas nos mesmos. Além disso, a disposição interna dos espaços é feita de forma a permitir a passagem fluida dos ventos.
Apenas a atenção com a inserção de seus edifícios em situações urbanas específicas pode levar Tinoco a comprometer a melhor orientação, como no caso do Villa da Praia, cuja intenção de dotar ambos os apartamentos com vista para o mar fez com que os quartos de um deles recebesse um pouco da insolação, mas que ele tratou de criar artifícios de proteção.
Em todos os seus edifícios, fez saques nas fachadas, reinterpretando os antigos beirais das casas. As saliências das jardineiras e dos armários funcionam como uma proteção às janelas que se encontram recuadas. Dessa forma, ele pode dispor de janelas altas que, protegidas das chuvas, permanecem constantemente abertas, ventilando os ambientes. Assim também se conseguiu o controle da luminosidade.
O arquiteto aplicou soluções utilizadas na arquitetura moderna brasileira, como os brises, geralmente projetados para as áreas de serviços, como no Villa Cristina e Villa Bella e na pernambucana, como os peitoris ventilados, geralmente acoplados às jardineiras (15). Enquanto que no Villa Bella a aplicação se restringe ao peitoril dos quartos, no Villa da Praia é estendido à toda a varanda e sala. Ainda em busca da amenização da temperatura por meio da circulação de ar, o arquiteto fez saídas de ar nas bandeiras das portas e nas janelas altas das áreas de serviço em todos os seus edifícios.
A relação com a rua
Tinoco procurou inserir seus edifícios de forma harmoniosa na paisagem urbana, buscando uma arquitetura discreta, longe do monumental. Procura inserir o edifício no tecido urbano sem que a sua presença seja destacada no conjunto; todavia, não se rende a referências formais pré-concebidas nem busca reproduzir o que já existe, mas procura fazer referência ao dinamismo da cidade na inquietude de suas fachadas:
“Na paisagem urbana o seu edifício não pode se desligar dos edifícios ruins que estão juntos. Ele tem que ser um pouco ruins também. Contudo ele tem que ser ruim com cuidado, porque ele tem que ser ruim ao se integrar, mas ser bom ao ser visto isoladamente. Para que dentro da paisagem urbana ele não choque. Ele não pode falar mais alto, pois há uma força maior que é o conjunto. Esses são valores que contemplam a coletividade em detrimento da individualidade” (16).
Por outro lado, ele afirma que “o edifício tem uma aura e deve existir um limite entre ele e as coisas ao seu redor” (17). Consequentemente, ele dispôs seus edifícios recuados em relação à rua, para que para que assim o observador pudesse ter a vista plena dos mesmos. Eram criados adros na parte frontal, que tratou - com escadas, plataformas e jardins suspensos - para criar uma promenade architecturale no percurso de acesso a esses. As bases, utilizadas como garagem e área de lazer, são geralmente mais largas do que o corpo do edifício e, com seus jardins suspensos, ajudam nessa transição entre o edifício e a rua. A entrada ocorre sempre pelo pavimento de lazer no mezanino, sobre plataformas suspensas do solo.
Todos esses edifícios possuem uma comunicação visual direta com a rua, sendo separados dela apenas por gradis. Alguns deles tiveram guaritas adicionadas alguns anos após a conclusão da obra, em algumas de forma a não interferir, em outros casos, as guaritas comprometem a transição pretendida por Tinoco o projeto.
Em relação aos recusos para a visada plena do conjunto arquitetônico, o mais bem sucedido foi o do Villa Cristina, onde o terreno amplo permitiu um vasto recuo na frente, o que tornou possível a disposição de uma grande escadaria e de um amplo mezanino de lazer que avança em direção à rua. Tinoco procura sempre dispor um caminho de entrada em seus edifícios, a partir do qual se podem ter diversas visadas e experiências do objeto arquitetônico. Como ele afirma, trata esse percurso como uma analogia com o gênero musical, no qual, antes do corpo principal da música, há uma introdução que descreve um pouco do que está por vir e prepara o espectador (18). Continuando no Villa Cristina, a experiência do percurso tem início na escada, situada na lateral direita do conjunto. Ao subir, o observador vai descobrindo aos poucos o espaço de lazer e seus jardins, para então adentrar o espaço de acesso aos apartamentos pelo hall. Nesse ambiente, existe um belo painel escultural com elementos de concreto que permitem a entrada de frestas de luz.
No Villa da Praia, onde o terreno é delimitado por três ruas, sendo uma delas exclusiva para pedestres e para estacionamento de automóveis, Tinoco incorporou visualmente a rua ao terreno do edifício e dispôs suaves plataformas que guiam o transeunte em direção ao lobby do edifício. Esse recuo não está presente nos Villas Mariana e Bella. No primeiro, a localização em uma grande avenida permitiu a visualização total do mesmo. A entrada era feita por uma grande escadaria helicoidal quadrada. A partir dessa, descortina-se a paisagem do mezanino de lazer, com seus jardins e árvores que foram preservadas. Esse percurso foi interrompido com a construção da citada guarita. Já no segundo caso, o terreno pequeno não permitiu a criação do adro, mas características clássicas são postas em destaque. O início do percurso se dá numa escadaria e segue uma colunata que ladeia o espaço de convívio dos moradores e conduz em direção aos elevadores.
Assim, Wandenkolk Tinoco conseguiu uma agradável inserção desses edifícios na paisagem urbana. Procurou ainda uma relação com a terra e a vegetação, ao trazer o verde para as alturas e fazer o edifício comportar-se como uma grande árvore. Conseguiu ainda manter uma relação com o pedestre por meio da permeabilidade visual dos gradis e do recuo frontal, que permitem a total visualização do volume sob diferentes ângulos e visadas. Finalmente, buscou compatibilizar o edifício alto com a escala do observador ao manter uma horizontalidade na composição, ao invés de salientar a verticalidade do arranha-céu, como preconizava Sullivan.
Considerações finais
O edifício alto constitui um tipo arquitetônico primordial do século XX, proporcionando desafios aos arquitetos na medida em que transformou as habituais relações entre revestimento e estrutura, entre cheios e vazios, e provocou problemas ao se inserir em paisagens urbanas consolidadas. Com o edifício em altura sendo também adotado como moradia, coube aos arquitetos intermediar essa transição da residência unifamiliar para o apartamento.
Acreditamos que, no Recife, o edifício alto para moradia já surgiu moderno. Começou a ser desenvolvido nos anos 1950, mas só a partir do no final da década de 1960 é que produziu seus melhores frutos. A contribuição de Wandenkolk Tinoco com o seu “edifício-quintal”, foi fundamental. Foi nos edifícios Villas, feitos em parceria com a AC Cruz, onde Tinoco melhor conseguiu atingir essa síntese.
Tinoco procurou trazer para o apartamento os elementos da casa térrea local, como a divisão setorial em diferentes níveis, que foram lidos como a articulação das três áreas com um ponto central de distribuição dos fluxos, sem descurar a fluidez espacial. Agregou ainda os jardins e quintais, interpretados como varandas e jardineiras, os beirais, entendidos como os saques horizontais nas fachadas que protegem as aberturas. Tinoco tratou as fachadas de forma singular, por meio de reentrâncias e saliências em sólidos prismáticos regulares, criando jogos de claro e escuro, luz e sombra, e integrou na composição o verde das plantas e a quebra das esquinas. Ele procurou também adaptar a moradia em altura ao clima quente e úmido da região, mediante a disposição dos ambientes e a adoção de elementos de ventilação e proteção contra a insolação. Por fim, ele procurou relacionar seus edifícios com o dinamismo da cidade, com a vegetação e com o chão. Marcou a horizontalidade da superposição de pavimentos-tipo, a fim de assim trazer o edifício para uma escala mais compatível com a do observador. Tratou ainda da permeabilidade visual do exterior com o interior e projetou percursos arquitetônicos que conduzem o pedestre desde a rua até os elevadores.
Apesar de continuar projetando até os dias atuais, Tinoco reconhece a dificuldade de levar adiante essas ideias, que passaram a ser vistas como desperdício pelo mercado imobiliário, o que leva a uma sensível perda de qualidade da arquitetura local (19). Em uma cidade hoje massacrada por muros, guaritas e cercas elétricas, esses edifícios são também significativos por demonstrarem que o edifício alto não é necessariamente irreconciliável com a cidade, e por poderem servir de reflexão para a prática arquitetônica em nossas cidades contemporâneas.
notas
[Este texto foi fruto da pesquisa Valores da Arquitetura Moderna e Contemporânea, 1970-2000, financiada pelo CNPq e pela FACEPE]
1
Sobre esse fascínio sobre os arranha-céus norte-americanos ver: VAN DER LEEUWEN, Thomas. The skyward trend of thought: The metaphysics of the American skyscraper. Cambridge, The MIT Press, 1988. COHEN, Jean Louis. Scenes of the world to come: European architecture and the American challenge, 1893-1960. Paris/Montreal, Flammarion/CCA, 1995.
2
ROWE, Colin. “Chicago frame”, In: The Mathematics of the ideal villa and other essays. Cambridge, The MIT Press, 1976, p. 89-118.
3
SULLIVAN, Louis. “The Tall Office Building Artistically Considered”, In: Kindergarten Chats and other writings. New York, Dover, 1979, p. 208.
4
Idem, p. 206.
5
Sobre esses edifícios ver: BORSOI, Marco Antonio. “A continuidade do moderno em Pernambuco”, Projeto, n. 114, set., 1988, p. 56-59.
6
Entrevista concedida por Wandenkolk Tinoco em 09 de janeiro de 2007.
7
Entrevista concedida por Wandenkolk Tinoco em 30 de novembro de 2007.
8
“Jardins Suspensos de Wandenkolk” Revista Sim. Recife, n. 45, abr. 2006, p. 44.
9
Entrevista concedida por Wandenkolk Tinoco em 15 de dezembro de 2007.
10
Entrevista concedida por Antonio Callou da Cruz em 07 de outubro de 2007.
11
“Jardins Suspensos de Wandenkolk”, Op. cit.
12
Entrevista concedida por Wandenkolk Tinoco em 09 de janeiro de 2007.
13
Idem.
14
Idem.
15
Criado por Augusto Reynaldo, o peitoril ventilado é uma solução de ventilação muito utilizada na Arquitetura Moderna Pernambucana, tendo como exemplo a adoção desse elemento em edifícios como o Acaiaca de Delfim Amorim, e o Oásis de Glauco Campelo, dentre outros.
16
Entrevista concedida por Wandenkolk Tinoco em 09 de janeiro de 2007.
17
Idem.
18
Entrevista concedida por Wandenkolk Tinoco em 30 de novembro de 2007.
19
Idem.
referências bibliográficas
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sobre os autores
Fernando Diniz Moreira é Arquiteto pela UFPE (1990), Mestre em Desenvolvimento Urbano pela UFPE (1994) e Ph.D. em Arquitetura pela University of Pennsylvania (2004). Atualmente, é professor adjunto do Depto. de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, diretor-geral do Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI) e pesquisador nível 2 do CNPq.
Ana Carolina de Mello Freire é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Bolsista PIBIC, 2007-2008. Atualmente é Analista Judiciária, apoio especializado em Arquitetura do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região.