“Je vous salue, ruines solitaires, tombeaux saints, murs silencieux! C' est vous que j' invoque ! (...) Combien d' utiles leçons, de réflexions touchantes ou fortes n'offrez-vous pas à l' esprit qui vous sait consulter !” (2) (C-F Chasseboeuf , Comte de Volney, Les ruines, 1792)
Na busca por alternativas para os tristes escombros da arquitetura da modernidade, na tentativa de identificar as etapas do complicado processo de agonia, morte e reencarnação de uma arquitetura que, parafraseando Mario Pedrosa, foi condenada ao moderno pela própria história, nos lançamos com dedicação e persistência ao interrogatório de ruínas e fragmentos, preferindo os métodos próprios da história e da arquitetura, mas sem desprezar aqueles da arqueologia e da arte.
Ao refletir sobre os inexoráveis rastros da passagem do tempo na arquitetura, David Leatherbarrow fala de memória quando afirma que “embora o uso e o desgaste subtraiam, eles também permitem um tipo significativo de adição. Ao longo do tempo e do uso, conjuntos arquitetônicos ganham legitimidade ao fazer a crônica dos padrões de vida que acomodaram. O tempo não passa na arquitetura, ele acumula. Se ele passasse, não deixaria traços – o que acaba ocorrendo. Tudo ao nosso redor exibe sinais de história, desenvolvimento ou deterioração. Todas as coisas físicas, especialmente corpos e edifícios, se oferecem à experiência visual como sedimentações de ações e comportamentos. Se um rosto é reconhecível, é porque o tempo escreveu sobre sua pele, ou superfície, sinalizando as maneiras como ele se conduziu no mundo”. Ao fornecer argumentos para o nosso debate, o autor elenca ainda valores imateriais ligados à memória que vão se somar ao já complexo desafio colocado pela preservação de uma arquitetura que envelhece mal e prematuramente a sua materialidade e que, por definição e princípio, é privada do direito de se tornar antiga ou de permanecer enquanto ruína.
A preservação da arquitetura, inclusive aquela do Movimento Moderno, tem como um de seus objetivos contrariar o envelhecimento, impedir e até reverter o arruinamento. O campo disciplinar da preservação começou a ser construído no século XIX a partir do estudo da restauração e da conservação de edifícios da Antiguidade e da Idade Média, e durante o século seguinte continuou concentrando suas práticas e reflexões nos mesmos objetos. Nas últimas décadas, com a ampliação da noção de patrimônio, que abarcou inclusive a modernidade recente, e o incremento dos debates no campo da preservação, têm sido inevitáveis as revisões de noções e critérios e o enfrentamento de paradoxos conceituais, bastante acentuados quando o objetivo é tentar garantir a sobrevida de ruínas de monumentos da arquitetura moderna.
Se decidíssemos pelo prolongamento, no tempo e no espaço, da agonia dos fragmentos da modernidade – concordando que, em sua maioria, são privados tanto de valor estético como dos tradicionais valores de antiguidade e autenticidade - sempre poderíamos recorrer a procedimentos de conservação, de anastilose, de consolidação de estruturas ou até de restauração, mesmo que as discussões sobre o restauro da arquitetura do século XX ainda estejam embrionárias e inconclusas, e mesmo cientes do risco calculado de transformar os alvos das intervenções em fetiches ou memoriais de tristes lembranças. Ainda, uma alternativa possível para essas ruínas - mais controvertida, embora podendo se justificar pelos fundamentos conceituais do Movimento Moderno - seria a eliminação sumária, considerando a prematura obsolescência das obras, o alto custo de uma intervenção de restauro e a falta de interesse estético e histórico da matéria de que são constituídas. Alternativa corroborada pela possibilidade real de reproduzir clones idênticos, na maior parte das vezes "cópias melhoradas" das obras originais porque livres das patologias construtivas de origem; perfeição formal do clone seria garantida pelo aprimoramento dos procedimentos de reprodução, pelos avanços da tecnologia e pelo amplo suporte documental conservado cuidadosamente em universidades e instituições.
A autoridade das ruínas - que predominou na Europa Ocidental por mais de quatrocentos anos desde o final do século XV, e continua se manifestando de forma significativa até os dias de hoje, mesmo que cambiante na sua conotação - intriga quem se debruça sobre a preservação de uma modernidade que se afirmou rejeitando as doutrinas inspiradas por essa mesma autoridade. Historicamente, até o século XVIII, “ruína” queria dizer “ruína romana”, valorizada não por ser intrinsecamente “bela” no seu estado de decrepitude, mas por remeter a uma forma íntegra idealizada, por testemunhar o poder e o esplendor de uma civilização desaparecida, assinalando a imponderabilidade do destino e as conseqüências avassaladoras da passagem do tempo. Durante o Renascimento, fragmentos e escombros de monumentos, de edificações, de túmulos e de esculturas da Antiguidade romana se tornam as principais referências culturais dos artistas, passando a ser recolhidos, colecionados, decifrados, estudados, desenhados, copiados, interpretados, classificados, e sempre cada vez mais valorizados. O confronto permanente, ao mesmo tempo nostálgico e melancólico, com esses “restos lacunares de civilizações decadentes ou desaparecidas”, foi mantendo vivo o gosto pelas ruínas e pelas manifestações artísticas que delas se inspiravam, expresso na arquitetura através da manipulação de fragmentos e de referências históricas e pelo estudo e registro cada vez mais sistematizados das formas materiais, procedimentos que irão alterar definitivamente as maneiras de pensar, projetar e construir.
A partir de meados do século XVIII, a Europa Ocidental conhece um verdadeiro surto de “ruinomania” provocado, em um primeiro momento, pela sistematização da arqueologia como ciência que se dá nos sítios e nas escavações de Herculano e Pompéia. Ruínas dos monumentos da Antiguidade clássica, sem perder a autoridade, começam a ganhar um novo lugar e uma nova dimensão estética nas obras de arquitetos, poetas, pintores e escritores europeus. Em sua Enciclopédia ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, publicada na França entre 1751 e 1772, Diderot explica o que seriam as ruínas, “as belas ruínas”, para a pintura – “a representação de edifícios quase inteiramente arruinados” – para em seguida precisar: “só se pode falar de Ruína para palácios e túmulos suntuosos ou monumentos públicos. Não se fala de Ruína para a casa de um camponês ou de um burguês; nesse caso se fala de edificação arruinada”.
No instigante quadro cultural do século XVIII apresentado na sua obra A Invenção da Liberdade, Starobinski discorre sobre a melancolia das ruínas e sua poética, referindo-se a fragmentos da Antiguidade impregnados de pátina e cicatrizes, marcas que conferem valor à matéria e assinalam a dimensão da passagem do tempo. Na mesma obra, anuncia, em linhas gerais, as principais características do século XIX, como a negação de certa "qualidade dilacerante das coisas perdidas" e "do tempo que passou", em favor do entendimento, do registro científico, da organização do conhecimento sobre épocas desaparecidas através da escrita da história, e também da restauração dos monumentos do passado: "o sentimento das ruínas do século XVIII sofreu a concorrência do despertar do pensamento histórico moderno, que despoetizou os documentos do passado à medida que sua pesquisa se tornava mais metódica”. As primeiras obras de restauração de monumentos, reconstituição de edificações arruinadas, deixam de ser exercícios idealizados por arquitetos concorrentes ao Prix de Rome. A partir do século XIX, com os primeiros canteiros de restauro de Viollet-le-Duc na França e os questionamentos da Revolução Industrial na Inglaterra, instaura-se na Europa o debate que contrapõe procedimentos de restauro considerados enquanto atividade técnica e cultural e a legitimidade de permanência das ruínas. Consolidadas, conservadas, às vezes transportadas para salas de museus, isoladas do seu sitio de origem, as ruínas vão ter um grande impacto sobre a arquitetura produzida na época, seja nos projetos novos, seja nos projetos de restauro, ambos trabalhando com a mesma noção de história, com a pesquisa e a valorização do passado.
O gosto pelas ruínas entra no século XIX de mãos dadas com o Romantismo, ampliando seu foco de interesse para a Idade Média cristã, para os escombros de abadias, igrejas primitivas, catedrais e castelos arruinados, o principal foco de trabalho dos arquitetos restauradores. Chateaubriand, nos seus repetidos elogios às ruínas, trata não só dos elegantes e tradicionais fragmentos da Antiguidade greco-romana, como também das “ruínas sagradas dos monumentos cristãos da Inglaterra, principalmente aqueles situados no Norte, às margens dos lagos de Cumberland, nas montanhas da Escócia até as Órcades”. Artistas como Diderot, Chateaubriand, Victor Hugo, John Ruskin, Hubert Robert, Pannini, Piranèse, J.A. Koch, C.D. Friedrich, John Soane, Turner, entre outros, fazem de túmulos e fragmentos de edifícios, as personagens principais de suas obras passando inclusive a misturar ruínas reais a paisagens e enredos imaginários, em um competente exercício de prospecção do futuro.
Invadidas pela vegetação e confundidas com a paisagem natural, as ruínas vão compor, segundo os filósofos e escritores desse período, uma nova unidade passando a estabelecer relações diferentes com as respectivas ambiências, como assinala G. Simmel: “(...) seca e umidade, calor e frio, atritos externos e decomposição interna atacando juntos durante séculos, conduzem as ruínas a uma unidade de tom e a uma uniformidade da pátina (...), a uma redução das cores a um mesmo denominador comum que é impossível de ser imitado por qualquer novo material (...) aproximando-as das cores da paisagem natural que passou pelas mesmas vicissitudes (...) para as confundir em uma unidade pacificada (...) o valor estético das ruínas associa desarmonia (...) e apaziguamento formal”. Para John Ruskin, as edificações decadentes e arruinadas, vitimadas pelas intempéries e pela passagem dos anos, assumem uma categoria estética entre o sublime e o pitoresco e passam a ser impregnadas de um forte sentido moral. “A ruína não é o triunfo da natureza, mas um momento de transição, um frágil equilíbrio entre a persistência e a decadência”, pontua ainda G. Simmel, reconhecendo um novo sentido para este tipo de sobrevida atingida pelos monumentos.
A poética romântica das ruínas inspira a contemplação e o devaneio diante da invasão do esquecimento, afirma Starobisnki, mas continua reconhecendo que ninguém sonha tranqüilamente diante de ruínas recentes, aquelas que fazem sentir o massacre, que são logo que possíveis desentulhadas para abrir espaço para a reconstrução e para o esquecimento. Porque a poesia da ruína, segundo o autor, é a poesia de fragmentos que sobreviveram parcialmente à destruição permanecendo imersos no tempo e na ausência: "para que uma ruína seja bela, é preciso que a destruição seja bastante longínqua, e que se tenha esquecido as suas circunstâncias precisas". E para que a ruína, além de bela, possa existir plenamente, é imperativo que não se tenha conservado nenhuma imagem do edifício intacto, e que seus fragmentos não se limitem a sinalizar catástrofes, abandono, decadência, saques, rejeição, ou qualquer outra triste circunstância que possa ter ficado impregnada em atormentados fragmentos.
Assim, as ruínas recentes, incluindo aquelas da modernidade, perdem a poesia e junto a legitimidade, sejam elas conseqüência da ação tempo - que, ao resvalar por superfícies de ferro e cimento e trabalhar massas informes e carcomidas pela poluição, lhes arrancam pedaços e expõem ferrugem, manchas e fissuras - sejam originadas pela ação do homem, quando podem se tornar também terríveis testemunhos de sangue e perversidade. “Os homens têm uma atração secreta pelas ruínas. Este sentimento deve-se à fragilidade da nossa natureza, e a uma conformidade secreta entre os monumentos destruídos e a rapidez da nossa existência”, pontua Chateaubriand em sua obra Génie du christianisme. E continua explicando que as ruínas históricas de maior valor são aquelas agradáveis ao olhar, porque testumunhas do passado e frutos da ação da natureza ao longo dos séculos, e não da ação destrutiva do homem.
No seu ensaio sobre a estética das ruínas, publicado em 1907, Georges Simmel pontua que a atração estética em relação à ruína é resultado da destruição do equilíbrio entre matéria e espírito presente em uma obra de arquitetura. Se num primeiro momento a arquitetura representa a vitória do espírito sobre a natureza, esse equilíbrio entre matéria e inteligência é destruído quando o edifico desaba. O resultado não é ausência total de forma – a ruína não é um simples monte de pedras - mas uma nova forma que tem sentido próprio e inteligibilidade. Essa percepção do combate entre a obra da natureza e a obra do homem, falha no momento em que a intervenção do homem perturba a erosão natural ou precipitando a destruição, ou mesmo se opondo a ela ao se lançar em operações de conservação e restauro.
O arquiteto Auguste Perret é considerado como um dos continuadores da poética das ruínas no século XX pelo fato de, em 1933, ter definido a arquitetura a partir da beleza potencial de um hipotético estado arruinado: "L’architecture, c’est ce qui fait les belles ruines” (3). Porém, procurando entender esta afirmação do arquiteto no contexto da sua obra e do discurso original (4), seria possível afirmar que estamos diante não propriamente de um elogio às ruínas ou da arquitetura enquanto ruína – que aproximaria o arquiteto das posturas contra a restauração de John Ruskin - e sim de uma confirmação da arquitetura enquanto verdade estrutural e construtiva, tão cara ao mestre do arquiteto, Viollet-le-Duc, que afirmava: "toute forme qui n’est pas ordonné par la structure doit être repoussé” (5). Prospectivamente, não é possível ter certeza se A. Perret incluiria a arquitetura moderna, em toda sua verdade estrutural e construtiva, ao lado de templos gregos e catedrais góticas, monumentos nos quais, segundo ele, a "aparência é ditada pela verdade estrutural”, condição do arquiteto para que um edifício fosse um potencial gerador de belas ruínas. Provavelmente, guiado, sobretudo pela razão, o arquiteto alinharia os monumentos modernos a outros citados por ele como a igreja de Val-de-Grace e o Palácio de Versalhes. Essas obras, apesar da indiscutível magnificência, estariam, sempre segundo A. Perret, condenadas a serem reduzidas, no futuro, a meras massas informes de entulho, conseqüência das respectivas condições construtivas e estruturais; coincidentemente esse é o estado em que temos encontrado os escombros modernos, apesar de toda sua “verdade estrutural”.
Ainda nas primeiras décadas do século XX, outro arquiteto, o alemão Albert Speer, considerado como uma espécie de “arqueólogo do futuro”, é apresentado como grande defensor das ruínas. Em 1934 (6), de acordo com o próprio depoimento, ele expõe sua "Teoria do Valor das Ruínas" para A. Hitler, que nunca escondeu uma grande reverência pelos fragmentos da Antiguidade, apreciando-os inclusive mais do que os edifícios classicizantes projetados pelo seu arquiteto. Segundo essa teoria - inspirada pela estética romântica, mas também fazendo eco às considerações sobre o valor dos monumentos de Aloïs Riegl - todos os edifícios deveriam ser projetados com o objetivo primeiro de dar origem a belas ruínas. Ao tomar a Antiguidade de Grécia e Roma como parâmetro, Speer aponta ainda, de forma oportuna, para a identificação do III Reich com os valores morais e militares dessa Antiguidade e explica: "A idéia era que os edifícios de construção moderna estavam mal adaptados para formar essa ‘ponte da tradição’ para as gerações futuras solicitada por Hitler. Era difícil imaginar que ferrugem e montes de entulho pudessem comunicar esta inspiração heróica que Hitler admirava nos monumentos do passado. Minha ‘teoria’ foi concebida para enfrentar esse dilema. (...) Hitler deu ordens para que no futuro os edifícios importantes do Reich fossem erguidos em consonância com os princípios desta ‘lei das ruínas’.”
No momento em que Speer elege a ruína como o programa principal da sua arquitetura, ele passa a projetar e construir edifícios prioritariamente em função de um estado de arruinamento que deveriam assumir em um futuro distante, séculos distantes, conforme muito bem observa Chistophe Laurent. Quando se compreende porque o arquiteto alemão, na busca pela perfeição da sua obra, que incluía a excelência construtiva, rejeitava a possibilidade de usar os novos materiais então disponíveis, principalmente o concreto: não contribuiriam para a formação de belas ruínas. Speer procurou combinar na sua obra sistemas estruturais e técnicas construtivas favoráveis ao tipo de arruinamento perseguido, acompanhando os pressupostos da sua "Teoria do Valor das Ruínas", e gerando contradições que ele próprio tentou explicar: "era indispensável que as ruínas suscitassem essa inspiração heróica que Hitler encontrava nos monumentos do passado. Este foi o dilema que minha teoria teve que resolver: utilização de materiais próprios e respeito por certas considerações da estática deveriam propiciar a construção de edifícios que, feitos ruínas, depois de centenas ou milhares de anos, se parecessem com seus modelos romanos".
Valorizado e explorado largamente pela Arquitetura Moderna pela sua grande durabilidade e plasticidade, promovido e elogiado desde o final do século XIX como material sólido e resistente, quase indestrutível, o concreto armado é o material de construção da modernidade; é adotado como a melhor solução para a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra, inclusive do ponto de vista da economia e da rapidez, passando a ser desde então largamente utilizado. A partir dos últimos 30 anos do século XX, porém, o concreto já não tem conseguido esconder sua resistência à conservação e à restauração, passando a se deteriorar rapidamente e a se transformar em escombros piores e mais grotescos do que as ruínas mais assustadoras que possam ter povoado os pesadelos de antiquários, arqueólogos e artistas durante quase quatro séculos de Grand Tour.
As formas arquitetônicas modernas, geometricamente puras, verdadeiras e luminosas, têm envelhecido muito mal, sendo precocemente transformadas em fragmentos grotescos, reveladores de esqueletos mal formados, e de toda a sordidez que pode estar embutida na pedra falsa (7). O próprio A. Perret se pudesse ter observado a degradação das superfícies e estruturas de concreto de suas obras iria, com certeza, rever seu elogio às virtudes estéticas do concreto: "le béton, c’est de la pierre que nous fabriquons, bien plus belle et plus noble que la pierre naturelle” (8). Mesmo John Ruskin duvidaria da própria teoria diante das pavorosas ruínas da arquitetura moderna, entranhas de cimento e ferros retorcidos à mostra. E se conjecturássemos ainda, a presença das ruínas modernas ao longo da história, ousaríamos afirmar que, em face desses escombros despoetizados e informes, teria sido impossível sonhar com o Renascimento da arquitetura ou até mesmo com a permanência romântica das ruínas.
As explicações para essa decadência formal, e para a significativa perda simbólica das ruínas modernas, não estaria apenas na impropriedade dos materiais e das técnicas construtivas experimentais utilizadas, responsáveis pelo arruinamento prematuro. Mesmo levando em conta a sedução exercida ainda hoje pelas ruínas, não é possível simplesmente transportar o tema para a contemporaneidade associando-o inclusive às teorias da restauração, e desprezando toda sua carga histórica e simbólica, e a maneira como ela foi se transformando ao longo do tempo. Primeiro porque o concreto, que foi pensado para durar mais do que qualquer outro material, envelheceu e continua envelhecendo muito mal e não produz belas ruínas como aquelas da Antiguidade ou da Idade Média, quando as próprias pedras eram referência de sublime beleza. Depois porque o olhar sensível voltado para os fragmentos materiais onde se apóia a memória, assim como a posterior transformação desses fragmentos em inspiração e padrão estético, devem ser contextualizados nos períodos históricos específicos em que se manifestam, ressaltando especialmente a contemporaneidade, quando a conservação e a preservação, começaram a se banalizar até quase ganhar o mesmo estatuto da construção nova.
As imagens da destruição estampadas nas ruínas contemporâneas, incluindo aquelas do patrimônio arquitetônico moderno, são hoje, na sua maioria, memória de catástrofes ou de fracassos. E a forma que temos encontrado para lidar com vestígios tão repugnantes e tão duramente conotados tem sido a destruição e o apagamento, nos apressando em implodir, remover entulho, limpar, tentando apagá-los da memória ao dissolver qualquer rastro que possam ter deixado. Conscientes de certa “vilania” adicional dos materiais construtivos modernos, especialmente do concreto que apresenta potencial de reciclagem quase nulo e é considerado um dos maiores produtores de emissões poluentes.
Ao retomar o fio desta rápida reflexão sobre as ruínas, contemplando mais uma vez as telas de um Panini e as gravuras de um Piranèse, comparando-as às imagens desoladoras dos escombros da arquitetura moderna que têm reiteradamente povoado nossas pesquisas (e nossos pesadelos...), nos vemos obrigadas a admitir que não conseguimos encontrar interesse, conveniência técnica e nem fundamentos que justifiquem a conservação de ruínas da arquitetura moderna ou mesmo a permanência dessas ruínas como referência histórica ou estética. Nossa tentativa otimista de procurar alternativas de sobrevida para os tristes escombros da modernidade ficou assim, senão definitivamente frustrada, pelo menos adiada. Parece que, por enquanto, o destino mais provável desses ingratos fragmentos vai continuar sendo o de se perder definitivamente da História para ir se somar ao entulho anônimo que ameaça o Planeta.
notas
NA
Nota das autoras: Gostaríamos que esse texto e suas imagens fossem lidos também como mais uma denúncia do absurdo estado de abandono e arruinamento em que se encontram muitos dos extraordinários monumentos da Arquitetura Moderna brasileira, vítimas de ignorância, de incúria e de irresponsabilidade, tanto oficiais como não oficiais.
1
Este artigo foi elaborado a partir do texto das mesmas autoras “Considerações sobre a impossibilidade de sonhar diante de ruínas recentes”, apresentado e publicado nos anais do “III SEMINÁRIO DOCOMOMO Norte-Nordeste - MORTE e VIDA SEVERINAS: Das Ressurreições e conservações (im)possíveis do patrimônio moderno no NORTE E NORDESTE DO BRASIL” - João Pessoa, maio de 2010.
2
“Eu vos saúdo ruínas solitárias, túmulos santos, paredes silenciosas. Eu vos invoco! (...) Quantas lições úteis, reflexões fortes ou tocantes, ofereceis ao espírito que sabe vos consultar!”
3
“Arquitetura é aquilo que faz as belas ruínas”
4
"The Renaissance was in my opinion a retrospective movement; it was not 'rebirth' but decadence, and one may say that even though, after the end of the middle ages, certain men of genius produced monuments that were masterpieces, such as the Val-de-Grace, the Dome des Invalides and the Palace of Versailles, these edifices are merely magnificent stage decorations; their structure does not dictate their appearance as at Hagia Sophia or Chartres. Versailles is badly constructed, and when Time will have exerted its mastery over this palace, we shall not be left with a ruin, but with a mass of unidentifiable rubble. This is not Architecture; Architecture is what makes beautiful ruins." declaração de Auguste Perret em aula no Institut d´Art et d´Archéologie de Paris, em 1933, citado em: Concrete: The Vision of a New Architecture, A Study of Auguste Perret and his Precursors, Peter Collins, p163. Consultado em: http://www.greatbuildings.com/buildings/Notre_Dame_du_Raincy.html
5
“Toda forma que não é imposta pela estrutura deve ser rejeitada”. E. E. Viollet-le-Duc, in: ”Entretiens sur l’architecture”.
6
A “Teoria do Valor das Ruínas” de A. Speer foi publicada pela primeira vez em 1969, em alemão, e em 1970 em inglês, no livro de autoria do arquiteto: Inside the Third Reich (London, Weidenfeld & Nicolson). Porém, segundo alguns autores como Hans-Ernst Mittig, não há provas de que esta teoria tenha existido antes de 1969, data de publicação do livro de memórias do arquiteto, já que não se encontrou sua pista nas publicações do período nacional-socialista.
7
Vitruvio considerava o concreto romano como um material destituído de nobreza, uma pedra fictícia ou pedra falsa, aconselhando que ele fosse escondido por revestimento de pedras verdadeiras
8
“O concreto é a pedra que nós fabricamos, muito mais bela e mais nobre do que a pedra natural”
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(Peter Collins. Concrete: The Vision of a New Architecture, A Study of Auguste Perret and his Precursors by Peter Collins)
sobre as autoras
Cecilia Rodrigues dos Santos é arquiteta, com mestrado pela Universidade de Paris X-Nanterre/França, e doutorado pela FAU-USP, professora adjunta e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem como principais temas de especialização e trabalho a arquitetura moderna e contemporânea e a preservação do patrimônio cultural
Ruth Verde Zein, Arquiteta, FAU-USP 1977, Mestre e Doutora, PROPAR-UFRGS 2000/5, professora e pesquisadora da FAU- Universidade Mackenzie.