Introdução
Entre os estudantes de Arquitetura, os assuntos de tecnologia tendem a uma popularidade menor que os assuntos de projeto. Enquanto neste o aprendizado se dá fazendo, e se premia criatividade, os assuntos de tecnologia tendem a se tornar áridos, em especial quando reduzidos a uma rotina de exposição, abstração, exercícios e prova. Já os assuntos das artes, mesmo se teóricos, são beneficiados por uma experiência estética associada. Mas nas matérias de tecnologia os docentes são desafiados a conquistar o interesse dos alunos, mais que somente sua atitude disciplinada ou conformada.
Dos assuntos de tecnologia, a acústica arquitetônica (1) chama a atenção por sua particular complexidade, considerando tanto o fenômeno físico associado, como o necessário processamento fisiológico pelo ouvido humano. Uma dificuldade adicional reside no privilégio que possui o sentido da visão na apreensão dos espaços, ou mesmo na sua concepção abstrata; modelos de edifício são rabiscados, impressos e projetados numa parede; é uma representação sofisticada, mas meramente visual, os outros sentidos (como a audição) sendo, não raro, ignorados.
Sheridan e Van Lengen (2), cujo artigo é recomendado para se aprofundar algumas das informações aqui apresentadas, argumentam que o ambiente construído possui existência tanto aural como visual, e esclarecem que, num nível psicológico, pistas audíveis podem sugerir orientação, escala e sutilezas da interação humana. Ainda, aqueles autores afirmam que à medida que o som pode ser integrado no processo de projeto e avaliação, o aspecto sonoro de edifícios pode ser articulado para se obter um ambiente construído mais rico e mais satisfatório, respondendo aos ouvidos tanto como aos olhos. Mencionam um potencial de ferramentas aurais para facilitar concepções de volume, constrição, passagem e calma. Algumas abordagens de ensino estão relacionadas a um tal entendimento.
Uma possível abordagem é a de se aplicar procedimentos experimentais para tornar a acústica dos ambientes mais concreta e interativa, pelo menos (criatividade, neste caso, exige-se é do docente, e mais: o sucesso depende de um equipamento muitas vezes dispendioso, de exaustivos testes e bastante sorte com fatores críticos como a carga elétrica nas baterias, a voltagem da rede, a norma técnica com que foram feitos os plugues, o estado dos contatos, formato de arquivos, interferência eletromagnética, pessoas, ruído).
Outra abordagem é a introdução de simulação de edifícios como atividade curricular: salas de concerto sendo projetadas, modeladas e ouvidas por meio do complicado processo de auralização.
O artigo presente propõe uma terceira via: a exploração das conexões entre música e arquitetura.
É fato físico que um dado recinto (ou seja, parte de um edifício) tem resposta acústica particular. Ainda se pode argumentar que uma determinada composição musical pode exigir uma resposta acústica particular para se expressar adequadamente. Um famoso estudo de caso desta relação entre obra musical e edifício envolve a Paixão Segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach, e a igreja de São Tomás em Leipzig. Pode-se explicar em termos acústicos por que a música soa adequada lá, e não simplesmente em alguma outra igreja (e os maus exemplos se espalham pelo mundo, em muitas igrejas onde esta música é apresentada, mais comumente na sexta-feira da Paixão; eu gostaria de citar particularmente a Catedral Metropolitana de Curitiba, extremamente reverberante, onde já ouvi a Camerata Antiqua de Curitiba desperdiçar o que poderia ser uma bela interpretação). Diversos outros casos de especificidade entre uma obra musical e uma edificação podem ser encontrados quando se combina informação biográfica sobre os compositores e a história de teatros, igrejas e salas de concerto onde atuaram. Sempre que se encontra a evidência de uma composição sendo feita para um ambiente em particular, existe a oportunidade de se explorar a hipótese de uma conexão entre música e arquitetura que não é apenas poética ou formal (arquitetura como música congelada, atribuída a Schelling, Valery ou Schopenhauer), mas muito concreta.
Uma descoberta científica pode resultar disto, ou não. Mas alguma ilustração de acústica arquitetônica certamente será aproveitada. A informação a respeito dos ideais estéticos por detrás da obra musical, alguma relação disto com a técnica, ou com a estética arquitetônica, questões técnicas do uso da voz ou dos instrumentos, dados biográficos sobre compositores e as circunstâncias sob as quais as obras musicais foram criadas – tudo pode proporcionar um pano de fundo convidativo ao aprendizado. E do ponto de vista da pedagogia, talvez o mais válido seja despertar interesse pela acústica arquitetônica.
Alguma exposição teórica de assuntos relacionados não deve ser descartada. Deveria incluir:
- descrição do som, tanto física como fisiológica;
- propagação do som no ar (diferenças entre baixas, médias e altas freqüências);
- absorção do som por diferentes materiais (e sua relação com os interiores de Arquitetura de cada época);
- gênese da reverberação num espaço enclausurado;
- propriedades acústicas qual listadas por Beranek (3): intimidade, brilho, calor, textura e muitas outras;
- bases da teoria musical: definição e exemplos de ritmo, melodia e harmonia;
- relação cronológica dos estilos musicais e relação sistemática dos principais gêneros musicais.
Apresenta-se agora uma série de exemplos do nexo proposto entre arquitetura e música. Como critério de organização foi preferida a cronologia. Isto organiza bem os estilos musicais; já os gêneros musicais aparecem sem uma ordem particular.
Propositadamente, esta série de exemplos foi limitada à tradição da música ocidental. A música anterior à Idade Média não foi incluída, pois há poucas fontes a respeito. Ainda, o aspecto de isolamento acústico dos edifícios não é considerado. É verdade que um suficiente isolamento é condição mínima para praticamente toda música acontecer adequadamente. Um arquiteto deveria ser capaz de especificar portas e janelas; mas o projeto destes elementos constitui tarefa de engenharia. Já a escolha da forma dos recintos e seu completo revestimento e acabamento, porém, é tarefa do arquiteto. Esta é uma razão para explorar a adequação acústica, mais que outros aspectos da acústica num currículo de arquitetura.
Música medieval
Na música medieval, são dois os principais gêneros existentes, cada qual com seu interesse para a acústica arquitetônica: a música sacra e a música secular.
A música sacra medieval é mais ou menos sinônimo de canto gregoriano, considerado a forma mais antiga de música ainda em uso (4). É fundamentalmente relacionado à arquitetura das catedrais românicas. O nome vem do papa Gregório I (590-604), que criou algumas regras para a música e assim estabeleceu uma espécie de monopólio na liturgia. Canta-se em solo, ou em coro em uníssono (todos seguem a mesma melodia, sincronizados). O ritmo segue a fluência com que se lê ou recita o texto sacro, e as melodias são improvisadas dentro das regras estabelecidas. Isto faz do canto gregoriano uma notável fonte de melodias originais. Seria fácil argumentar que os tempos lentos se devessem ao caráter contemplativo da música. No entanto, uma explicação no mínimo tão convincente observa que somente os tempos lentos permitem a compreensão do texto (pode-se imaginar como uma única voz, numa imensa igreja, dificilmente poderia ser ouvida e compreendida), e ainda um efeito harmônico (tempos rápidos causariam uma superposição das notas ressonantes com as notas presentes, levando a dissonâncias). O canto gregoriano tem sido objeto de estudo e prática nos mosteiros beneditinos, que mantém a tradição viva por quase quinze séculos. Esta música somente atinge sua beleza quando num tal espaço, onde predominam materiais duros como pedra, que preservam quase todas as freqüências audíveis por dez segundos ou mais.
Um desenvolvimento subseqüente é registrado no século XII, quando Leoninus (compositor da Notre Dame em Paris) empregou vozes paralelas no chamado Organum. Estas vozes cantavam uma melodia similar, distantes entre si de um intervalo de quarta ou quinta, o que soava duramente. Trata-se da ars antique.
O principal movimento da música secular é dado pelos trovadores (troubadours é palavra francesa para inventores de texto e melodia). Desde o século XI, diversos artistas, tanto de origem nobre quanto popular, criaram e entoaram cânticos de amor, fé, guerra, pastoreio e outros temas. Ilustrações do período mostram a música sendo feita ao ar livre. Esta hipótese ainda é reforçada pelo uso de tambores, barulhentos e existentes desde tempos antigos, mesmo nas tribos onde não havia edifícios como hoje os conhecemos. Abundantes ilustrações da época medieval sugerem seu uso. Outro instrumento que aparece em algumas ilustrações é o krummhorn, cujo zumbido poderia fechar diversas lacunas que aparecem na música ao ar livre, mais ainda quando não se conhecia uma harmonia simples que permitisse preencher tudo com acordes, como qualquer um faria, hoje, ao violão.
Sumer is icomen in (chegou o verão) é o nome do round (canção circular inglesa) mais antigo. Pertence ao domínio publico. Um round (como frére Jacques) é uma melodia repetida por outra voz, e por outra e mais outra, antes que termine, de modo a criar um efeito polifônico. Requer alguma precisão rítmica. Aqui há uma nova tendência, já que foi apelas o desenvolvimento da escrita musical permitiu tal precisão. Assim, vozes diferentes são sincronizadas, e vai surgindo uma harmonia. Um exemplo é a missa da coroação de Carlos V, que aconteceu na catedral de Rheims, na França. A música foi escrita por Guillaume de Machault (1300-1377) e é classificada como ars nova.
Renascença
A polifonia foi uma invenção da música secular e chegou, enfim, às igrejas. Em Veneza, Giovanni Gabrielli (1555-1612) escreve para a basílica de São Marcos várias Canzoni, música polifônica para instrumentos de metal. Ele tinha a planta em cruz da basílica como princípio organizatório dos grupos instrumentais, dispondo cada um num dos eixos ortogonais.
E o lado de fora das igrejas segue sendo um ambiente mais afeito à inovação musical. Sheridan e Van Lengeniiobservam que se a Arquitetura gótica promoveu a racionalização da música, a Renascença, ao inverso, trouxe um aumento da tensão sonora entre novos sons que as pessoas foram aprendendo a ouvir, e a arquitetura da igreja. Andamentos se tornam mais rápidos, ritmos mais complexos e a polifonia mais freqüente. Ocorrem também melhorias na construção dos instrumentos. Nota-se o esforço consciente dos contra-reformadores para fazer um espetáculo visual. Tais elementos iriam, por fim, levar a uma divergência entre a música clássica e a arquitetura sacra. A música extrapolou seu contexto arquitetônico e pediu um novo tipo de espaço para ser adequadamente ouvida.
A igreja católica decidiu proibir a polifonia, considerada uma má influência da música secular, que com o tempo mostrou-se perniciosa para a comunicação da doutrina. Por exemplo, não eram raras as peças que misturavam vozes diferentes, textos diferentes, idiomas diferentes e até mesmo a imitação de miados, latidos e grunhidos (como no bizarro Contrapuncto Bestiale de Adriano Banchieri). Mas a igreja tolerava a polifonia de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), que obteve um certo equilíbrio entre clareza e polifonia. Sua música é de uma beleza etérea, de frescor e melancolia. Como um exemplo, pode-se mencionar a Missa Papae Marcelli, que escreveu para mostrar ao Concílio de Trento que a polifonia poderia ser aceitável. Palestrina atuou na capela de Santa Julia, na basílica de S. João Latrão e na igreja de Santa Maria Maior, em Roma. Hoje, é considerado um liturgista, mais que um compositor (5).
A música sacra da Renascença requer espaços enormes, revestidos de pedra – como eram as igrejas e basílicas onde atuaram os mestres da época. Com a arquitetura, tornou-se uma aliada da igreja católica e seu desejo de permanência. Quase dois séculos mais tarde, estava ainda em uso, e não reduzida a curiosidade histórica, como hoje quase se poderia dizer. Uma evidência é dada pela biografia de Mozart. Em 1770, aos 14 anos de idade, viajou com o pai Leopold à Itália. Lá, adentrando a Capela Sistina, ouviu uma única vez o Miserere de Gregorio Allegri (1584-1652), peça coral para até 5 vozes, que tinha uso restrito ao interior do Vaticano. Chegando ao local de hospedagem, escreveu a peça quase completa de memória, e teve de voltar ao Vaticano para, em nova escuta, finalizar sua versão. Esta obra de Allegri exemplifica a música da Renascença, quando o canto a capela (i.e. sem instrumentos) era o gênero principal, e a polifonia estava em voga.
Barroco
Um ponto de inflexão da Renascença para o Barroco é colocado, usualmente, na primeira apresentação de L’Amfiparnaso, commedia harmonica de Orazio Vecchi (1550-1605). Aconteceu em Modena, na Itália, em 1594, e esta comédia musical foi publicada em 1597. No palco, os personagens típicos da commedia dell arte faziam mímica, somente, enquanto seus papéis eram cantados por corais polifônicos com quatro e cinco vozes. Imagine-se a confusão quando um personagem falava e o público ouvia um coro a várias vozes! Isto levou à ridicularização da polifonia e, emblematicamente, no ano exato da morte de Palestrina. Dez anos mais tarde, em 1607, em Mantua, Claudio Monteverdi apresentou Orfeo, no palácio do duque Vincenzo Gonzaga I. Era o nascimento da ópera. O público tem acesso, enfim, ao drama de forma compreensível: os personagens cantando melodias individuais, uma de cada vez, livres da polifonia.
Se nas artes visuais o termo barroco é associado com ornamentos, ofuscamento, tensão, na música ele significa principalmente a simplicidade. A ópera barroca desenvolveu-se principalmente como monódia, sobre as bases da harmonia então disponível. Havia tendência similar na música instrumental. A divisão entre solista e orquestra foi se tornando clara. Contrastes como forte e piano, maggiore e minore, solo e tutti, allegro e adagio deram aos ouvintes um senso de ordem. Tal música podia soar adequada em espaços grandes, como igrejas e salas de palácios.
Antonio Vivaldi era compositor e diretor do Ospedale Della Pietá, um orfanato onde mães solteiras deixavam as filhas, em geral de pais aventureiros que vinham ao Carnaval de Veneza. Ainda, lá eram abrigadas meninas de família, cujos pais não queriam arcar com os custos de sua educação (6). Para aquelas garotas criadas no anonimato, Vivaldi escreveu mais de 600 concertos instrumentais. As pinturas de Gabriel Bella (La cantata delle orfanelle per i Duchi del Nord) e Francesco Guardi (Concerto di dame al casino dei Filarmonici) mostram uma sala de concerto de dimensões generosas e donzelas tocando e cantando de um balcão para os visitantes. Uma análise das duas pinturas, tentando definir as dimensões das salas e o material das superfícies, leva a uma surpresa: se a música de Vivaldi era ali tocada, tinha de enfrentar um tempo de reverberação de cerca de 3 segundos em 1000 Hz. Se a hipótese é real, mostra que não faz sentido tocar um Vivaldi puro como se fosse Mozart, como se conhece de diversos conjuntos de música. Antes, é uma colagem de verdadeiros efeitos sonoros. Para conhecer sua riqueza, vale a pena ir além das Quatro Estações e conhecer belos concertos como Il favorito, Il sospetto, Il piacere, a Festa de São Lourenço ou o Grão Mogol (7).
Com Johann Sebastian Bach, a música barroca chega a seu auge. Rica em diferentes gêneros e em variedade, retoma a polifonia (em desuso desde o final da Renascença), e presta-se a importantes considerações sobre acústica. Um primeiro exemplo pode ser vivenciado na sua profícua música para órgão, como a famosa e Toccata e Fuga em Ré menor (1750), provavelmente escrita e tocada na catedral de Arnstadt, na antiga Alemanha Oriental. Os primeiros compassos mostram longas pausas, que se supõe que sejam preenchidas com a reverberação dos últimos acordes.
As obras de Bach são tidas como as melhores peças polifônicas, e não somente devido à qualidade matemática; é música pura. Bach recebeu diferentes influências. Isto inclui melodias italianas e danças francesas. A despeito das regras da polifonia, encontram-se na sua música instrumental afetuosas passagens, como o Largo do Concerto em ré menor para dois violino e orquestra, ou em suas notáveis suítes para orquestra (conhecida é a ária da terceira suíte, em Ré). Foram compostas no período em que Bach era compositor da corte em Köthen, utilizando-se, entre outros espaços, da Sala dos Espelhos.
Posteriormente, Bach mudou-se para Leipzig onde, ao lado do cargo de Kantor na igreja de São Tomás, tocava música nos cafés locais, no verão, como no Café Zimmermann. Ele reciclava alguma música instrumental feita em Köthen. Isto inclui os concertos de Brandenburgo (enviados como um portfólio ao marquês de Brandenburgo, que nunca chegou a contratar Bach) e os concertos para cravo e orquestra, com um, dois, três e quatro cravos solistas. Embora exista muita diferença entre uma sala de palácio e um jardim de café (Kaffeegarten), ambas as situações acústicas podem ser justificadas para a sua música instrumental.
Na corte - a despeito do grande tamanho das salas dos palácios- a música era apresentada para o reservado deleite da nobreza. Assim, podia ser ouvida com intimismo, pois os ouvintes chegavam próximos aos músicos, como mostram as pinturas da época. Uma delas, mostra o rei prussiano Frederico no palácio Sans Souci, em Potsdam, arredores de Berlim, tocando flauta, e o próprio Bach, de costas, ao teclado. Frederico também escrevia música e chegou a convidar Bach a desenvolver variações sobre um tema seu, que se tornou a célebre Oferenda Musical. O som direto para os ouvintes tinha um peso especial, não encontrado nas salas de concerto de hoje. O efeito era o de se preservar alguma clareza, a despeito da reverberação. É o caso, também, das seis suites para violoncelo solo. Esta música requer, de fato, alguma reverberação,como para ocultar algumas mudanças de arco (para cima e para baixo); e o grande volume das salas de palácio, associado aos pisos em pedra, garante isto. Mas o arco também é ouvido em algumas mudanças e ataques mais enérgicos: pois é música de dança, e os acentos rítmicos devem ser ouvidos.
Por outro lado, nos Kaffeegarten de Leipzig, (como em outros lugares), a reverberação certamente inexistia. Havia outros meios para a música se fazer ouvir, como a formação de conjuntos maiores e um ataque mais forte pelos instrumentos de cordas, madeiras e metais. E a música de Bach, aqui, se tratava mais provavelmente de um fundo musical, nada semelhante ao ideal sacrossanto que atingiu depois de Mendelssohn (que no século XIX provocou a redescoberta de Bach, quase esquecido).
E como foi mencionado acima, o “outro” emprego de Bach em Leipzig originou um famoso ensinamento em acústica arquitetônica. É fato bem conhecido que a Paixão segundo São Mateus, composta para a igreja de São Tomás, não poderia soar adequadamente na igreja, caso esta tivesse a forma em que se encontrava na Idade Média. Ocorre que, à época de Bach, como uma igreja protestante, ela recebera diversos acréscimos na forma de arquibancadas em madeira ricamente gravada e ornamentada, também contendo cortinas, pois dali os vereadores da cidade assistiam às cerimônias religiosas com suas famílias e colaboradores próximos. Havia uma capacidade estimada de 1800 pessoas (8). A comunidade ao redor do coro tinha o efeito de um colchão de absorção acústica. Assim, a polifonia empregada podia se fazer ouvir. Isto é relatado por Beranek (1979) e também pelo organist Hope Bagenal (apud Rasmussen, 1986), que estimou o tempo de reverberação da igreja à época de Bach em cerca de 2,5 segundos (sendo que a igreja medieval tinha de 6 a 8 segundos). Ilustrações da igreja antes e depois podem ser encontradas em Eidam (9). Deve se notar que, em 1886, a igreja se tornou novamente mais reverberante, devido a uma nova reforma.
Enquanto Bach errava de emprego em emprego, Georg Friedrich Haendel gozava de uma longa popularidade em Londres. Embora também usasse polifonia, sua música é mais conhecida pela grandiosidade; isto se pode dizer, naturalmente, do oratório Messias, cuja primeira audição se deu em condições relativamente modestas em Dublin, Irlanda, mas posteriormente teve solene apresentação na Abadia de Westminster, Haendel celebrizou-se, na época, pelas suas óperas, exibidas no Haymarket. Também escreveu duas famosas suítes para o ar livre. Uma delas é a Música dos Reais Fogos de Artifício, por ocasião de um concerto no Green Park alusivo ao jubileu da Paz de Aachen e final da Guerra dos 30 anos, em 27/04/1749. Uma orquestra numerosa – capaz de fazer o som se ouvir num grande raio - inclui uma caixa clara em repique preenchendo diversas passagens. Provavelmente, era maneira de acrescentar textura, preencher os vazios, assim como fazia o krummhorn na música medieval. Além disto, os instrumentos de sopro preferem um ataque claro no início das frases, para marcar melhor o ritmo de modo a compensar a falta de retorno do som, como aconteceria num palco. Outra delas é a Música Aquática, que acompanhava um solene cortejo fluvial, de motivação política, que o rei Georg I decidiu fazer pelo Tâmisa em 14/4/1759. Uma cuidadosa reconstrução do evento foi feita, em 2003, pelo The English Consort. Trata-se de um filme gravado ao ar livre que demonstra que a música tinha sua efetividade mesmo sem reverberação (o que, na reconstrução, não se logrou foi um nível de ruído de fundo semelhante ao de há 250 anos, o que equivaleria a parar a cidade de Londres).
Este sub-gênero da música para apresentações ao ar livre foi explorado por outros compositores da época. Mencione-se o profícuo Georg Phillip Telemann (1681-1767) na Alemanha, e Jean-Baptiste Lully (1632-1687), compositor da corte de Louis XIV em Versalhes, na França.
Classicismo
A música deste período é usualmente relacionada a três nomes principais: Joseph Haydn (1732-1809), Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) and Ludwig van Beethoven (1770-1827). Todos eles atuaram principalmente em Viena. Embora compreenda obras de música sacra, música de câmera e ópera, o período clássico é particularmente importante pelo surgimento da música orquestral. Este fato é relacionado a um processo de mudança social cujo ponto de partida foi testemunhado pelo jovem Mozart.
O menino-prodígio de 12 anos estava em Londres, quando ocorreu o que foi chamado o primeiro concerto burguês. Foi nos Hanover Square Rooms, Fig. 12, promovido por Johann Christian Bach, que ainda inovou ao substituir o cravo por um piano. Ingressos eram vendidos a pessoas comuns: a música se libertava da corte. O estilo daquele filho de Bach (que já quase nada tinha a ver como o estilo do pai) teria exercido influência sobre Mozart.
Sheridan & Van Lengen2explicam a gênese da música orquestral, que aconteceu no final deste período, mais claramente com Beethoven. Afirmam que os objetivos visuais e acústicos da sala de concertos foram alinhados ao buscar emoldurar e apoiar uma representação convincente da música. As sinfonias de Beethoven figuram entre as obras orquestrais mais populares que alguém já escreveu.
A Terceira Sinfonia de Beethoven (a Heróica) foi estreada em 1804 no Palais Lobkowitz em Viena, na sala posteriormente chamada de Eroica, preservada até hoje e relativamente pequena. Mas as orquestras de então eram menores, e os instrumentos não eram potentes como os atuais. A sala era, provavelmente, grande e vazia o suficiente para se preencher com energia sonora.
A Quinta Sinfonia foi estreada no Theater an der Wien, um local histórico de Viena, que ainda pode ser visitado. A Nona Sinfonia foi estreada no Kärntnertortheater, também em Viena. Rasmussen observou que o local perfeito para se executar esta sinfonia seria encontrado quando o teto pudesse subir antes do último movimento, do coral, soando como numa catedral (a Sala São Paulo concretiza este ideal).
Mas a tendência pelo crescente tamanho das salas de concerto continuaria. Diversas salas foram construídas no século XIX, incluindo a primeira Gewandhaus em Leipzig e a Musikverein em Viena. Se as casas de opera eram similares aos teatros, agora as edificações eram construídas para ali soar a música instrumental, mais pura.
A partir da época de Haydn, a melhor contraposição à música sinfônica é dada pela música de câmera. A expressão foi usada pela primeira vez em 1550 para a música voltada para a câmera da corte, para ser tocada ou cantada suavemente, sem cânones e sutilezas rítmicas (10). Foi no século XVIII que ganhou popularidade na esfera burguesa, mas é freqüentemente considerada um gênero artístico superior, de menos apelo às massas. Foi desenvolvido em grande parte no período clássico e preservou um caráter intimista. O quarteto de cordas é provavelmente a formação mais expressiva que surgiu nesta época. Haydn, Mozart e Beethoven escreveram significativos quartetos de corda. Como podem ser tocados numa sala de estar, há pouca informação dos locais onde tais obras foram estreadas. É música intimista. Ouvi um violinista de célebre quarteto inglês comparar esta formação com uma festa de aniversário para a qual se convida somente os quatro melhores amigos. A situação contrasta com a sinfonia – outro tipo de festa, para que se convida mais de cem pessoas (11)
Intimidade maior é atingida, talvez, somente com algumas das sonatas para piano de Beethoven, dedicadas a nobres que apoiavam sua atividade, ou a algum amor secreto, e isto fica mais evidente com os compositores do Romantismo. Deve-se considerar que uma carta de amor, em geral, não se faz ser lida diante do público.
RomantsmoNo século XIX, a música tomou um rumo diferente, quase, em cada cultura européia. É tarefa difícil descrever, resumidamente, o que aconteceu (Carpeaux fala, antes, de Romantismos4).
A beleza clássica e o rigor formal são explodidos na busca por conteúdos dramáticos, freqüentemente por meios extra-musicais: por exemplo, sob a influência da literatura. A música sinfônica do período se caracteriza pelo som orquestral, possante, de nuvens de harmonia e timbre, e a clareza passa para o segundo plano. Este processo certamente está relacionado às mudanças ocorridas nas salas de concerto, como relatam Sheridan & Van Lengen (12):
Os músicos eram posicionados de modo a formar o ponto focal da audiência e tão próximos quanto possível do bojo doas espectadores-ouvintes. Inicialmente, volumes simples, retangulares eram as formas mais comuns, mas estas, ao final ,cederam lugar a auditórios em forma de leque, para trazer uma parte maior da audiência para perto dos músicos. Mas a proximidade não garantiu uma melhor experiência auditiva. À medida que os leques se alargaram, produziram maiores lacunas temporais entre a experiência do som direto proveniente do palco e o som refletido proveniente das paredes laterais. Quando tais lacunas cresciam, o intimismo acústico, ou a sensação de proximidade com o músico diminuía.
Uma notável expressão da música de concerto, que se manteve popular até hoje, é Johann Strauss II (1825-1899). Várias obras do “rei da valsa” foram estreadas na sala principal (a sala dourada) da Sociedade dos Amigos da Música (Musikverein) de Viena. Ele usava reger segurando o violino.
O compositor tcheco Antonin Dvorak (1841-1904) escreveu seu famoso concerto para violoncelo e orquestra para a segunda Gewandhaus em Leipzig. O espaço volumoso daquela sala (destruída em guerra) pode ser explicado como próprio para as grandiloqüentes frases do instrumento solista. O compositor, mais tarde, mudou-se para os Estados Unidos, e lá escreveu uma das suas mais belas peças, a Sinfonia do Novo Mundo, estreada na esplendorosa Carnegie Hall, onde vigiam semelhantes condições acústicas.
No período Romântico, há pelo menos um exemplo notável de música escrita para o ar livre: obra de belo apelo heróico é a Abertura 1812 de Piotr Tchaikovsky (1840-1893). Descreve o embate entre as forças de Napoleão e as forces do Czar. Diz-se ter sido apresentada pela primeira vez em 1893, junto à igreja de Santa Maria em São Petersburgo; no entanto, por diversos motivos, acredita-se ter sido executada do lado de fora. A música é aberta por uma cantilena dos violoncelos, a duas vozes. Lembremos que os sons graves se impõem melhor do lado de fora, já que o ar absorve predominantemente os sons agudos.O segundo tema, das trompas, pode ser ouvido com clareza ao ar livre. Dentro de um espaço levemente reverberante já se ouviria borrado: Ao final, quando a batalha chega a uma apoteose em que triunfa o hino do Czar, são disparados canhões, como indicado na partitura. O princípio que orientou Lully e Haendel em suas obras barrocas para o ar livre se manteve pelo menos por um século mais. E como alternativa aos utilizar instrumentos poderosos, um amplificador melhor que o edifício ainda estava para ser inventado. Mas pode-se intuir que Tchaikovsky escolheu o local tirando partido de uma ou mais paredes externas para a reflexão do som.
No período Romântico, uma evolução importante acontece na ópera e é também consciente da Arquitetura. O gênero se tornara muito popular, e o texto deve ser compreendido, e isto fez com que o local ideal fosse principalmente seco, ou com que tivesse bastante clareza. Um exemplo é dado pelas óperas de Giuseppe Verdi (1813-1901), apresentadas em diversas casas de ópera pela Itália. Quando o país se encontrava sob o jugo austríaco, Verdi (cujo nome era entendido como um acrônimo de Victor Emmanuel Rei d’Italia) foi considerado herói e redentor da nação. Mas não se resumiu ao gênero operístico; compôs uma apreciada Missa do Réquiem, que foi estreada na Igreja de São Marcos, em Milão.
Na Alemanha, Richard Wagner (1813-1883) escreveu diversas óperas, e delas fazia não somente a música, mas também os libretos e a cenografia. Como se não bastasse, sob o patrocínio do rei Ludwig II da Baviera, criou sua própria casa de ópera, chamada Festspielhaus em Bayreuth. Ali, introduziu algumas características novas como o fosso de orquestra oculto e uma série de nichos reverberantes ao longo das paredes laterais, já que os assentos seguiam a forma de leque, mas a sala era retangular. Na música de Wagner, a orquestra de ópera atinge seu papel mais importante até então. Um maior tempo de reverberação é útil para se produzir mais facilmente os momentos de apoteose que Wagner previu para sua música.
No período romântico também proliferou a música intimista, e algumas das melhores peças surgiram em circunstâncias curiosas. É o caso de Franz Schubert, cuja genialidade melódica era freqüentemente comparada à de Mozart. Compôs canções (Lieder) para seus amigos, que se reuniam na sua sala de estar. Eles chamavam tais encontros de Schubertíades. Escreveu melodias sensíveis para dar música aos versos de poetas alemães como Goethe e Herder e criou uma rica coleção de padrões (quase filigranas) nos acompanhamentos ao piano. Provavelmente para transpor esta atmosfera para um concerto público, produziu música de câmera baseada em várias destas melodias. Um exemplo marcante é o quinteto da Truta, para cordas e piano.
Romantismo tardio
Ao final do século XIX, o Romantismo na música desenvolveu uma tendência ao desespero, e este sentimento se refletiu, de certa forma, na prática da composição. As obras musicais se tornaram mais longas. As orquestras se tornaram gigantescas, e soam poderosamente. Compõe-se para grandes palcos e para salas de concerto bastante reverberantes. Um típico compositor deste período foi Gustav Mahler (1860-1911), primeiro marido de Alma – posteriormente, esposa de Walter Gropius. Sua Segunda Sinfonia é conhecida como a Ressurreição. Ouve-se muita percussão. Um coral dramático aparece no (incomum) quinto movimento. A obra foi estreada na volumosa Filarmônica de Berlim, destruída na 2ª. Guerra.
Outro compositor, Richard Strauss (1864-1949) teve como sua obra mais conhecida, provavelmente, o poema sinfônico Assim falou Zarathustra. A abertura (mais tarde conhecida como fundo musical para as cenas lunares no 2001 de Stanley Kubrick) apela para o tímpano e os metais em fortíssimo, logo sugerindo um espaço generoso. Era precisamente o caso da sala do museu em Frankfurt, onde teve sua première. Era um auditório de 1800 lugares.
Em 1908, Nicolai Rimsky-Korsakov (1844-1908) estreou sua Sheherazade para violino solo e orquestra no Clube da Nobreza em São Petersburgo. Esta obra dramática, que alterna um violino choroso e escuros tutti orquestrais, deve ter encontrado um ambiente propício na principal sala, cujo nome hoje homenageia o compositor Dmtry Shostakovich.
Impressionismo
No início do século XX, um movimento já disseminado nas artes visuais tomou proporções importantes na música: o impressionismo. Há uma tentativa consciente de causar sensações, num entendimento sinestésico da efetividade da arte. Na música, os timbres (as cores dos sons) são reconhecidos como importante material expressivo.
Uma das obras mais conhecidas do período, o Bolero de Maurice Ravel (1875-1937), usa a orquestra inteira para explorar as diferenças de timbre e intensidade. O mesmo tema, de apelo sensual, é repetido diversas vezes num gradual crescendo – o dirigente Kurt Masur usa a figura poética das diferentes amantes para caracterizar cada variação (13). A obra foi estreada na Ópera de Paris. Inicia com um oboé sozinho, cujo timbre brilhante se impõe no espaço acusticamente quente (provavelmente seria incorreto interpretá-lo numa versão melosa, cheia de rubato, como o fazem orquestras populistas, a exemplo do ídolo kitsch André Rieu). As variações progressivamente incluem mais instrumentos, até o pleno tutti. As últimas variações são de alta intensidade sonora.
A riqueza de timbre não é encontrada somente na música sinfônica, valendo-se dos diferentes instrumentos da orquestra. Existe também na música de câmara, que ganha um tratamento diferenciado. A Sonata (única) para violino e piano Claude Debussy (1862-1918) foi estreada em 1918 na Salle Gaveau, e a Sonata (também única) para violino e piano de Ravel foi estreada em 1937 na Salle Erard, ambas em Paris. Estas obras de cunho impressionista, amadas pelos violinistas, requerem ao lado da perfeita afinação e escolha de dedilhado um delicado trato da qualidade sonora. Isto inclui a diversificação do timbre, utilizando, por exemplo, o efeito flautado, obtido ao se passar o arco sobre as cordas com pouquíssima pressão, não apoiado, mas suspenso. Os dois locais mencionados são de tamanho entre pequeno e médio, e contém um balanço de materiais absorvendo altas freqüências (carpete), médias (cortinas) e baixas freqüências (estuque, vidro e painéis de madeira, soltos no meio). A qualidade sonora depende do músico e de seu instrumento.
Mais século XX
A Sagração da Primavera de Igor Stravinski (1882-1971) teve sua premiere no teatro Champs-Elysées em Paris, e o balé Pássaro de fogo, na Ópera de Paris. Ambas as peças fazem uso intensivo de percussão e metais, numa orquestração vigorosa. O fato pode ser explicado pela mesma razão apresentada para o Bolero de Ravel: teatros e casas de ópera têm acústica em geral seca, pois são providos de poltronas estofadas, cortinas de veludo e piso acarpetado. Tudo isto, buscando a clareza, para que os espectadores compreendam o texto do libreto. Mas quando um compositor escreve uma obra orquestral para tais espaços, uma abordagem mais maciça é necessária para compensar a falta de amplificação e de reverberação.
Erik Satie (1866-1925) escreveu muita música de piano para um cabaré. Criou sua própria “música ambiente” (14), termo que ele mesmo utilizou. Se tais composições eram feitas para ser tocadas, indiferentemente se as pessoas estavam conversando ou ouvindo, é de se esperar que tenha características que chamem a atenção. Embora soe calma, a música de Satie atinge especial brilho porque faz freqüente recurso às oitavas superiores. De acordo com a psicoacústica, os sons mais agudos cobrem os mais graves (efeito do mascaramento).
A Toccata da 5a. Sinfonia de Charles Maria Widor (1844-1937) faz parte de uma obra orquestral com órgão solista e foi apresentada pela primeira vez em 1937 na igreja St. François de Sales em Lyon, uma construção moderna, em pedra, tentando reconstituir uma igreja medieval. Uma simples melodia, ricamente ornamentada por padrões rítmicos, alcança seu efeito mais expressive através da acústica. Uma gravação em MIDI, sem reverberação (que pode ser facilmente obtida na World Wide Web) soa muito limitada. É uma prova moderna de que música para órgão e música sacra ainda estão ligadas a igrejas, ou espaços de semelhante acústica.
Música eletrônica
No século XX, muitas mudanças importantes aconteceram, certamente na música, mas também na maneira de ouvir das pessoas.
Em 1900, Wallace T. Sabine apresentou a formula empírica para cálculo do tempo de reverberação, empregada até hoje. Mas havia ainda um meio século antes que a acústica, como ciência, pudesse dar sustentação ao projeto de salas de concerto. Sheridan & Van Lengen2 indicam a limitação das preocupações acústicas da maior parte da arquitetura do Modernismo, regredindo numa série de espaços infinitamente reflexivos, internamente especulares.
Os mesmos autores apresentam uma notável exceção no pavilhão Philips em Bruxelas, projeto de Le Corbusier em 1964. Edificação propositalmente efêmera, foi local da primeira audição do Poème Eléctronique de Edgard Varése (1883-1965). A música foi composta para o edifício e sua instalação eletrônica, o som sendo distribuído por autofalantes no meio do público. Este tipo de música se tornou conhecido como música eletrônica. O conceito é mais ou menos correspondente ao de um estilo musical, mais de década, ainda, antes que os computadores se tornassem populares. Mas o significado prático da eletrônica para a música tem sido muito maior que o de um simples estilo.
Há um famoso Adagio para cordas de Samuel Barber (1910-1981), considerado a mais popular música fúnebre utilizada para velar presidentes dos Estados Unidos da América. Esta peça teve sua primeira audição numa transmissão coast-to-coast em 1938. Isto é: as pessoas ouviram-na com o condicionamento acústico pré-definido do estúdio de radio, provavelmente aumentando o brilho e a qualidade tonal, mas adicionando à música uma nova qualidade, extra-arquitetônica e, quem sabe, etérea. Tornou-se o obsessivo tema do filme Platoon, de Oliver Stone (fundo musical para o martírio de jovens soldados na armadilha do Vietnã). Aliás, percebe-se um novo vínculo entre a música e a arquitetura nas salas de cinema, com sua acústica completamente seca, as salas são cobertas de carpete e veludo para que prevaleça o efeito surround.
Dois dos maiores regentes do século XX não apenas rivalizavam, como divergiam em sua forma de disseminar a música. Herbert von Karajan (1908-1989) e a Filarmônica de Berlim se tornaram conhecidos mundialmente com o apoio da indústria fonográfica, através das mídias mais diversas: TV, LP, CD e LD. Qualquer ouvinte tinha acesso à música com todas suas notas. A música é apreciada, mas a acústica pode passar despercebida. E as técnicas de edição e mixagem aos poucos foram sendo aplicadas para retocar gravações. Mas Sergiu Celibidache (1912-1996), à frente da Filarmônica de Munique, não queria ser gravado. Argumentava que somente a experiência musical ao vivo faz sentido, com instrumentos, músicos, regente e arquitetura. Estas orquestras ocupam salas de concerto notáveis: em Berlim, a notável arena projetada por Hans Scharoun; em Munique, o Gasteig, centro cultural projetado por Raue, Rollenhagen e Lindemann.
O rock’n’roll surge como uma expressão muito impactante da música popular, combinando harmonias primitivas (que não passam do barroco) com ritmos simples e melodias modestas. Seu significado social, no entanto, foi grande (15) se considerado o poder simbólico associado com as letras e todo o caráter do cantor, do guitarrista ou da banda como um todo. E a amplificação eletrônica é elemento fundamental. Famosos concertos com amplificação avassaladora foram dados por grupos como Pink Floyd (incluindo um episódio da morte de peixes num lago próximo) ou Deep Purple (que alegavam ser recordistas mundiais de ruído nos anos 70).
Os autofalantes não somente adicionam potência ao sinal: eles também ajudam a sincronizar o que os músicos fazem com aquilo que a audiência escuta, evitando atrasos inaceitáveis. Nas igrejas reverberantes, hoje, promovem o aumento da clareza, levando para mais próximo dos fiéis a frente de onda inicial. Quem está próximo das caixas, ou sob seu cone de projeção, ouve como se estivesse muito próximo do leitor.
Associado a alguns dos meios eletrônicos mencionados, o automóvel (espaço limitado, acusticamente quase morto) é um dos últimos episódios rumo à independência da audição com respeito à arquitetura. Depois do som automotivo, invenções como o walkman e o ipod declaram certa independência da música em relação à Arquitetura. Isto não equivale dizer que, no final do século XX, a música ao vivo perdeu seu uso. É o momento máximo da música, em seus diversos gêneros, está sempre atrelada à arquitetura ou, no mínimo, a um arranjo físico.
No século XXI, uma invenção fabulosa da indústria de computadores – a transmissão wireless – prometia resgatar o sentido da música de órgão. Depois, mostrou-se capaz de complicar a vida dos organistas. A tecnologia wireless permite que se utilize o teclado situado no altar de uma igreja para acionar os comandos de um órgão de tubos no coro. Assim, ninguém teria de se virar para enxergar o músico. No entanto, o atraso com que o som chega aos ouvidos do organista (a rigor, a última pessoa a ouvir) mostrou-se perigoso para a interpretação musical, comprometendo a clareza e o fraseado. Em 2009, assisti ao tropeço de um celebrado virtuose dos teclados organista executando o Hallelujah de Haendel.
O século XXI, na música, começa quase inseparável da Internet, que oferece uma vasta gama de possibilidades. Música digital gratuita, com video, e diversas interpretações ao vivo. Embora a world wide web forneça vários sítios de simulação acústica, mostrando uma relação próxima entre a apresentação musical e a edificação, não pode ser considerada uma prática. Mas surge a possibilidade de uma nova consciência a respeito da acústica arquitetônica. Pelo menos, os arquitetos interessados podem se beneficiar, e as novas gerações podem, com isto, desenvolver uma nova sensibilidade para o espaço físico – com o apoio virtual. Ainda mais alentadora parece a idéia que, preenchidas as necessidades básicas dos cidadãos, a música e a arquitetura sejam mais e mais consumidas, e ao vivo.
Observações finais
O autor tem aplicado a abordagem descrita para ensinar acústica desde 1999, no terceiro e no quarto ano de um curso superior de Arquitetura e Urbanismo. Os estudantes têm demonstrado um maior interesse pelo tema “salas de concerto”, tanto que, desde então, o tema tem aparecido em ao menos dois dos cerca de quarenta projetos finais de graduação.
O exercício de buscar uma conexão acústica entre música e Arquitetura, mesmo que possa ser historicamente imperfeito, ou não associado a uma conexão artística propriamente, pode ser útil como um meio de criar interesse pela acústica arquitetônica – um assunto difícil de ser ensinado em aulas tradicionais. Em acréscimo, um componente importante da formação complementar de futuros arquitetos pode ser estimulado: a cultura musical.
notas
1
Os dois principais problemas usualmente tratados pela acústica arquitetônica: o isolamento dos sons externos e o tratamento dos sons originados no próprio ambiente. A adequação acústica trata do segundo tema.
2
SHERIDAN, Ted; VAN LENGEN, Karen. Hearing Architecture Exploring and Designing the Aural Environment. Journal of Architectural Education, ACSA, 2003, pp. 37–44.
3
BERANEK, L. L.. Music, Acoustics and Architecture. Krieger Publishing Company, 1979.
4
CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
5
CARPEAUX, Op.Cit.
6
Österreichischer Rundfunk – ORF (televisão Austríaca), The red priest: don Antonio Vivaldi. Documentário exibido pela TV Cultura em 8/5/2011, informação catalográfica disponível em http://tvsales.orf.at9, acesso em 22/05/2011
7
Seleção feita por Emmanuele Baldini, violino-spalla da OSESP e convidado como solista de dois concertos realizados com a Camerata Antiqua de Curitiba em 20 e 21 de maio de 2011.
8
RASMUSSEN, S. E.. Experiencing Architecture. Tradução portuguesa “Arquitetura Vivenciada”. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1986.
9
EIDAM, K.. Das wahre Leben des Johann Sebastian Bach. München: Piper, 1999.
10
Brockhaus Riemann Musiklexikon, 3. ed. Mainz: Piper & Munich: Schott (1999).
11
Lindsay string quartet, durante uma master class na Escola de Música e Belas Artes do Paraná nos anos 80.
12
SHERIDAN; VAN LENGEN, Op. Cit.
13
Arte France, Bolero, documentário de 2007, exibido na série Classicos da TV Cultura em 22/05/2011.
14
LEGER, F.. As funções da pintura. Tradução portuguesa.
15
SANDOW, G.. Breaking Barriers: Classical Music in an Age of Pop, JPMS 42-63. Disponível em http://www.gregsandow.com/juil.htm, 1998. Acesso em 24/3/2007.
sobre o autor
Aloísio Leoni Schmid é Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPR e dos Programas de Pós-Graduação em Construção Civil e Design da UFPR. Ao lado da atividade principal de pesquisa, desenvolvendo software para simulação de edifícios, pesquisa o significado de conforto, as relações entre música e arquitetura. É co-fundador e atual coordenador do Curso de Tecnologia em Construção de Instrumentos Musicais – Luteria da UFPR. Foi Coordenador de Cultura da UFPR entre 2007 e 2008. Violinista amador, coordenou o projeto de extensão “Quarteto de Cordas UFPR: uma experiência educativa” entre os anos 2007 e 2009. Autor do livro “A idéia de conforto: reflexões sobre o ambiente construído” (Curitiba: Pacto Ambiental, 2005).