Introdução
O artigo analisa uma nova tipologia habitacional presente na produção imobiliária nas cidades brasileiras, com estudo de caso na cidade de Campinas – SP. O que distingue esta nova forma de produção da moradia, ou esta variação de formas antigas, é a proposta de padronização arquitetônica e de otimização do espaço nas áreas de dispersão dos grandes centros urbanos.
Na apresentação deste estudo de caso procuraremos destacar os seus aspectos básicos constitutivos e, especialmente, como este tipo de produção imobiliária faz referência a algumas características das vilas antigas implantadas na cidade de Campinas, nas décadas de 1930 e 1940. O artigo procura comparar os aspectos de implantação dos projetos, aspectos construtivos, a forma de produção e os agentes envolvidos na implantação destes conjuntos habitacionais, assim como recurso à idéia de vida em comunidade presente no marketing imobiliário das vilas contemporâneas.
A Nova Sociedade na Dinâmica de Formação do Espaço: as comunidades contemporâneas.
Os estudos sobre o processo de urbanização no Brasil revelaram que, em meados da década de 1990, acentuam-se as tendências à dispersão no território. Com o trabalho intelectual mais sofisticado e a dispersão geográfica, o estado de São Paulo se impõe como uma metrópole onipresente, um lugar funcional para a sociedade como um todo. (1).
Para Milton Santos:
“As cidades são grandes porque há especulação e vice-versa; há especulação porque há vazios e vice-versa… O modelo rodoviário urbano é fator de crescimento disperso e do espraiamento da cidade”. (2)
As pesquisas de Nestor Goulart Reis constataram que nas cidades de porte médio, diferentemente da área metropolitana de São Paulo, estava ocorrendo uma crescente integração de um número elevado de pequenos polos e a multiplicação de áreas de dispersão, inclusive ao longo das principais rodovias. Através das imagens do satélite Landsat de 1970, 1988, 1991 e 2000 pode-se observar que o Vale do Paraíba e Região Metropolitana de Campinas apresentavam áreas mais dispersas do que a Região Metropolitana de São Paulo. A regra deste tipo de implantação urbana baseia-se na implantação e permanência de modo disperso das novas áreas de desenvolvimento urbano, destinadas às indústrias, às áreas residenciais das classes de renda média e alta, mas também aos bairros populares e aos centros comerciais e de serviços. (3).
Este processo de produção do espaço revela que, nas regiões mais urbanizadas, já não subsistem as tradicionais separações entre zona urbana, zona suburbana e zona rural. Elas são caracterizadas pelos sistemas ágeis de transporte flexibilizados e de comunicação, por unidades de produção e consumo móveis, onde grande parte da população passa a ter a vida organizada em escala regional. As relações de trabalho observadas nestas novas regiões revelam que muitas pessoas continuam trabalhando nos polos centrais das cidades, mas que passam a residir em áreas urbanizadas de menor porte, seja pelo custo mais reduzido dos terrenos, seja pela busca de maior segurança. Assim, a expansão de forma dispersa do tecido urbano pode ser caracterizada pela própria descontinuidade, pela presença de núcleos isolados onde, na maioria das vezes, os empreendimentos apresentam espaços de uso coletivo, infraestrutura, serviços e frequentemente edificações com diversificação do tratamento urbanístico, o que as destacam do tecido urbano. (4).
Nas últimas décadas, ocorre uma ocupação cada vez mais intensa nas áreas de dispersão elevando o valor do terreno e provocando um maior adensamento entre as unidades nos empreendimentos. Justificada pela falta de segurança na cidade consolidada, as pessoas que buscam estes novos empreendimentos esperam encontrar em pequenas comunidades um lugar mais seguro. Este tipo contemporâneo de configuração de usos no espaço é, segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, um gueto voluntário, onde se impede a entrada de intrusos mas os moradores podem sair livremente do espaço murado, distinguindo se de um gueto real. Em sua obra denominada Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, Bauman caracteriza o gueto voluntário como um espaço que não sedimenta a comunidade, ao contrário, mostra-se apenas como um laboratório de desintegração social, de atomização e de anomia, embora busquem servir a causa da liberdade diferentemente do gueto real que implica a negação dela. Pela busca da diferenciação em relação a cidade consolidada os guetos voluntários desvalorizam seus bairros vizinhos, se envolvem em estratégias de distinção e exclusão social que convergem para solapar a coesão da vizinhança. Assim, a vida no gueto não contribui para a comunidade, uma vez que o compartilhamento do estigma alimenta o desprezo e o ódio. (5)
Bauman chama a atenção sobre as transformações contemporâneas nas relações sociais nas comunidades:
Deixaram de existir os simpáticos mercadinhos de esquina; se conseguiram sobreviver à competição dos supermercados, seus donos, gerente e os rostos atrás do balcão mudam com excessiva frequência para que qualquer um deles possa substituir a permanência que já não se encontra nas ruas. Também desapareceram o banco local e os escritórios das construtoras, substituídos pelas vozes anônimas e impessoais (cada vez mais produzidas por sintetizadores eletrônicos) do outro lado da linha ou por ‘amigáveis’ embora infinitamente remotos ícones da web sem nome e sem rosto. Também não existe mais o carteiro, que batia à porta seis dias por semana e se dirigia aos moradores pelo nome. Chegaram as lojas de departamentos e cadeias de butiques, e que, espera-se, sobrevivam as funções ou trocas de donos, mas que trocam de pessoal a uma tal velocidade que reduz a zero a chance de se encontrar duas vezes seguidas o mesmo vendedor...Mas, as coisas tampouco parecem mais sólidas dentro da casa da família do que na rua. (6)
Hoje a ideia de “comunidade” é para Bauman a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora. Em sua obra Modernidade Liquida o autor analisa o empreendimento Heritage Park do incorporador George Hazeldon na Africa do Sul, “uma versão atualizada, high tech,da aldeia medieval que abriga detrás de seus grossos muros, torres, fossos e pontes levadiças uma aldeia protegida dos riscos e perigos do mundo”. Neste tipo de empreendimento contemporâneo, a “comunidade” aparece como um bom argumento de venda fazendo referência a comunidades do passado, entretanto a segurança é confiada a câmeras de TVs ocultas e dúzias de seguranças armadas. (7)
Neste sistema, as comunidades são oferecidas como “objeto de consumo” através de grande aparato tecnológico de segurança e da promessa de um modo de vida denominado “cool”, em ascensão na sociedade, mas que, para Bauman, está usurpando o lugar da ética do trabalho para instalar-se como forma mental dominante do capitalismo de consumo avançado onde se defende que, na sociedade atual, você é aquilo de que gosta, portanto aquilo que você compra. (8)
É neste vazio do mundo contemporâneo que a sociedade, de uma maneira geral, busca o aconchego no local onde passará toda a vida, ou se espera passá-la, um local que existe através da “batuta do agente imobiliário”. Estes espaços onde se tenta preencher o vazio de aconchego, podem estar fisicamente cheios, e “no entanto assustar e repelir os moradores por seu vazio moral”.(9)
O conceito de coletivo aproxima-se então do uso equivocado do conceito de comunidade. Os equipamentos oferecidos pelos empreendedores são semelhantes, porém mais refinados, aos projetados, mas nunca executados, para a classe de renda baixa no Brasil. Os serviços são organizados coletivamente, com o mínimo custo e operação eficiente. Neste sistema, o espaço de uso coletivo pode ser visto como estágio importante entre espaços públicos e privados, mas juridicamente, são espaços de uso coletivo regularizado através do direito privado e não do direito público (10).
Atualmente, estes artifícios usados na tentativa de naturalização do modo de vida “comunitário” na verdade representa, segundo Bauman, o distanciamento da comunidade, de fato, pois “a maneira como o mundo nos estimula a realizar nossos sonhos de uma vida segura não nos aproxima de sua realização”. (11).
Já no começo da década de 1990, o filosofo Rafael Argullol chamava a atenção sobre o surgimento de “micrópolis, seja no interior de velhas metrópoles, seja como catapulta de metrópoles em crescimento”, autenticas cidades ficcionais, cenográficas, um tipo de subcidade regida pelo isolamento e pela claustrofilia. (12)
Vilas contemporâneas e as vilas antigas em Campinas: apresentando os estudos de caso
A Lei de Uso e Ocupação do Solo da cidade de Campinas, cuja primeira versão data de 29 de dezembro de 1988 (Lei nº 6031), foi reformulada em 2001 estabelecendo novas diretrizes para os padrões construtivos e urbanísticos e definindo as macrozonas e suas respectivas zonas. Em 2004, mais uma reformulação foi anexada à lei principa:l a Lei de Vila, inspirada na legislação da cidade de São Paulo, onde uma legislação similar foi aprovada em 1994. (13). Em Campinas, esta nova legislação permite a construção de vilas em terrenos de até 15.000 m².
Tabela 1: Quadro comparativo das dimensões dos lotes (mínimo e máximo) e da taxa de ocupação permitidos na legislação urbanística de Campinas: Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 6031), reformulada em 2001 que estabelece o tipo habitacional HMH (Habitação Multifamiliar Horizontal, Lei EHIS (Empreendimento Habitacional de Interesse Social) de 2004 e a Lei de Vilas (Lei 12.169) de 2006.
Visando analisar o tipo de produção imobiliária que esta lei está viabilizando, observamos uma região ao longo da Rodovia Dom Pedro I, uma área típica do tecido urbano espraiado, formado nas últimas três décadas em Campinas. Nesta área, a partir do século XXI, foram lançados empreendimentos imobiliários que apresentavam a tipologia de vila contemporânea. Os estudos de caso referem-se a lançamentos entre 2005 e 2010, representativos desta nova forma de produção do espaço urbano.
Especificamente, foram analisados sete exemplos de vilas contemporâneas: a Vila do Charme, Paineiras House, Vila das Camélias, Portal Primavera, Residencial Aragona, Village Tivoli e o Vila Naturale. Este último empreendimento foi o único não aprovado, junto ao setor de planejamento da Prefeitura Municipal de Campinas, através de Lei de vilas e sim pela legislação de ZEHIS ( zona especial de habitação de interesse social) de 2006, que foi utilizada pelo setor imobiliário para viabilizar oferta de moradias à classe média com parâmetros construtivos mais rentáveis.
Tabela 2: Dados analisados dos sete exemplos de vilas contemporâneas, correspondentes a lançamentos na cidade de Campinas, entre 2005 e 2010: a Vila do Charme, Paineiras House, Vila das Camélias, Portal Primavera, Residencial Aragona, Village Tivoli e o Vila Naturale, Campinas. Casos representativos desta nova forma de produção do espaço urbano.
Nota. Os dois primeiros empreendimentos da tabela, em azul, estão próximos ao Shopping Iguatemi, já os em verde estão próximos ao Shopping Dom Pedro. *O Vila Naturale foi o único empreendimento estudado que não foi aprovado através da Lei nº 12.169 de 2006
O entendimento do sucesso desta nova tipologia habitacional – a vila contemporânea, que vem sendo tão recorrente nos grandes centros urbanos, remete à imagem que o marketing a ela associado faz da concepção do ideal de vida em comunidade. Se compararmos estes discursos com as narrativas dos utópicos socialistas, desde a antiguidade, às Utopias Anárquicas, passando por Saint Simon, por Robert Owen, observando a concepção de Falanstério de Charles Fourier, o Familistério de Jean Baptiste Godim ou a Icária de Etienne Cabet, se percebe claramente como fazem-se encantadores.
Na maioria das situações, veicula-se a ideia de uma sociedade que convive perfeitamente em determinado espaço, onde encontra algumas facilidades da vida urbana somadas à tranquilidade do campo. Fazendo uso de pérgulas e pequenos canteiros para simular a presença da “natureza” no espaço, a ideia de um “natural” artificializado, a ideia de um paisagismo do espaço comum, como nas cidades jardins, encontrado, de certa forma, de maneira extremamente reduzida, nos empreendimentos do tipo vila construídos na atualidade. Também, tem-se a pretensão de agregar valor de qualidade da habitação com elementos que remetem a tipos construtivos mais sofisticados, ou simulando estilos arquitetônicos de outro período histórico, que revela certo romantismo.
Para Argullol, esta dinâmica ocorre nas subcidades ou cidades ficcionais onde a interiorização simulada da natureza acompanha a interiorização, não menos simulada, das funções da antiga cidade (14)
A análise dos empreendimentos contemporâneos foi referenciada por estudos sobre o modo de concepção e implantação das antigas vilas no município de Campinas, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, procurando entender de que maneira este conceito se estabelece culturalmente, como é reapropriado, tanto para a unidade habitacional como para o espaço físico da cidade. Entendendo que o termo vila foi recuperado de um repertório arquitetônico e urbanístico do passado, procurou-se comparar as vilas antigas com as vilas contemporâneas. Se observarmos o programa das antigas vilas, por exemplo, é possível perceber que em média uma unidade habitacional apresentava dois dormitórios, sala para um ambiente, um único banheiro e cozinha com dimensões compactas. Em alguns casos apresentava terraço de entrada e uma pequena área coberta no quintal, que, em muitos casos, eram bem maiores que os disponíveis nas vilas contemporâneas. Como é o caso da Vila Estanislau em Campinas.
Nabil Bonduki, em sua análise sobre as origens da habitação social no Brasil, esclarece que desde o surgimento do problema habitacional em São Paulo no final do século XIX até a década de 1930, existiram várias modalidades de moradia para alojar os setores sociais de baixa renda e média renda, todas construídas pela iniciativa privada, produzidas para locação, um sistema denominado pelo autor como rentista. No que se refere à tipologia construtiva, o autor destaca que as modalidades mais difusas desta produção habitacional foram o cortiço-corredor, o cortiço-casa de cômodos, o correr de casas geminadas e vários tipos de vilas dentre elas a “vila de empresa” e a “vila particular”:
... a produção rentista propiciou o surgimento de várias modalidades de moradia para aluguel. Uma delas foi a vila operária, sob a forma de pequenas moradias unifamiliares construídas em série. Desde a emergência do problema da habitação popular em São Paulo, tal modalidade de alojamento foi sempre recomendada, pelo poder público e pelos higienistas, como a solução melhor e mais salubre para a habitação operária..... Existiam duas modalidades muito diversas de vilas operárias: uma, o assentamento habitacional promovido por empresas e destinado a seus funcionários; outra, aquele produzido por investidores privados e destinado ao mercado de locação. (15)
Quanto aos agentes envolvidos nesta produção, na Primeira República predominou a ação de inúmeros investidores interessados em aplicar seus capitais na produção de moradias de aluguel, o chamado sistema rentista. Isso perdurou até a era Vargas marcada por transformações que desestimularam os investidores no setor e pelo início da intervenção estatal e da ação dos próprios trabalhadores-moradores através do auto empreendimento da moradia.
Nabil Bonduki destaca que, na cidade de São Paulo foi reduzido o número de vilas construídas por empresas para os seus próprios trabalhadores, exceção feita aos trabalhadores especializados, como o caso das vilas de companhias ferroviárias e de energia elétrica, ou o caso das indústrias têxteis que precisavam manter os trabalhadores especializados próximos da fábrica. A maior parte de vilas de empresas paulistanas não foi construída com o intuito de atrair trabalhadores, elas “eram edificadas por serem uma alternativa segura de investimento”. (16)
Os casos de vilas antigas em análise na cidade de Campinas são exemplares das décadas de 1930 e 1940. Este foi um período onde muitas glebas foram loteadas para fins habitacionais populares através do sistema rentista, que viabilizava aos investidores a aplicação de capitais na produção de moradias de aluguel. Mas, é também um período no qual o poder local começa a estabelecer uma política municipal voltada à produção de habitações populares, característica da era Vargas. A partir de uma legislação municipal datada de 1940, embora a propriedade do terreno a lotear e o investimento para construir pudessem ser de um só proprietário ou de vários, assim como a comercialização do imóvel, depois de edificadas as unidades, cada uma deveria pertencer a um único proprietário. (17)
Em alguns casos, a intervenção do poder público local foi ainda mais direta. É o caso da Vila Jequitibás. Implantada em um loteamento existente desde a década de 1930. A área do projeto foi adquirida pela prefeitura em 1936 e a vila foi construída para oferecer habitação aos funcionários públicos municipais e aos operários municipais. As plantas, que apresentavam algumas variáveis, foram fornecidas pela própria prefeitura. (18)
Em outro exemplo estudado, o da Vila Itapura, o pedido de aprovação data de 1937. A área foi loteada pela companhia Rossi Borgui, o projeto era destinado a habitações populares e o anúncio do empreendimento pela empresa mostrava as vantagens da aquisição dos terrenos para investimento ou até mesmo o inicio da formação de uma fortuna.
No caso da Vila Estanislau, os proprietários do terreno eram vinculados às tradicionais famílias da elite cafeeira de Campinas e negociaram acordos com a municipalidade para lotearem a gleba para fins habitacionais populares. Estanislau Ferreira Penteado estabeleceu então a parceria com a Prefeitura Municipal, que lhe concedeu isenção fiscal. O projeto da Vila Estanislau, do início da década de 1940, foi modelar estabelecendo parâmetros para uma política publica de habitação municipal e destinava-se a casas de aluguel tendo a prefeitura determinado a cobrança de valores baixos. O núcleo construído possuía cerca de 50 mil m² totalizando 170 moradias. O projeto foi inteiramente elaborado pela diretoria do Departamento de Obras e Viação. No total, somava três casas com quatro dormitórios, 124 com três dormitórios e 43 com dois dormitórios. Também compunham o conjunto serviços como padaria, açougue, mercado, confeitaria, casa de lacticínios e armarinhos e uma escola, um clube recreativo e a praça de esportes. (19)
A Vila Cury, construída na década de 1940, está relacionada à implantação da Fábrica de Chapéus Cury que se instala na cidade na década de 1920. Em 1940 a fábrica dispunha de 350 funcionários e a Vila Cury foi um empreendimento de um dos acionistas da fábrica, aparecendo aí como investidor do mercado imobiliário. Das 48 casas construídas, 30 foram destinadas aos operários da fábrica. A vila se localizava próxima à fábrica, mas não era suporte para a infraestrutura da mesma visto que sua construção ocorre 28 anos depois da implantação da fábrica na cidade. O projeto da Vila Cury data de 1944 e o término da construção da vila com 48 residências é de 1948. (20)
Na consulta ao arquivo Municipal de Campinas verificou-se que, a partir da década de 1930, ocorrem vários pedidos para aprovação de parcelamento de gleba com lotes destinados a habitação popular, assim como requerimentos para aprovação de conjuntos com a tipologia de vila. Em muitos casos, nos terrenos oriundos do processo de parcelamento das glebas eram construídos conjuntos de casas destinadas a classe operária, como é o caso da Vila Nair em estudo.
Análise comparativa entre as vilas contemporâneas e as vilas antigas em Campinas
Nos empreendimentos analisados, muitas vezes, o marketing envolvido sob o sistema de venda das agências é sedutor. Na maioria dos casos, existe um stand de venda com uma unidade decorada onde ainda são oferecidas facilidades na forma de pagamento. O consumidor se convence da qualidade do espaço justificado através da praticidade e possibilidade de viver em uma casa com tranquilidade, facilidades de serviço e comércio no entorno e segurança de viver sob “vigilância” 24 horas por dia.
O caso da Vila do Charme é interessante, pois se localiza dentro de um bolsão residencial chamado AMOPAHI (Associação dos Moradores do Parque da Hípica) que compreende alguns pequenos condomínios fechados além de casas e lotes isolados. Esta vila é formada por onze unidades habitacionais dispostas de maneira que não se percebe a clara divisão de lotes.
As unidades habitacionais na Vila do Charme e no Paineiras House com áreas de 110,75 m² e 140,41 m², respectivamente, apresentam dimensões maiores do que a média dos outros exemplos estudados, que é de 90 m². Em relação a número de ambientes, geralmente todos possuem: três quartos de dimensões compactas, três banheiros, sendo um lavabo e os dois restantes no piso superior onde um deles compõe uma suíte. No piso inferior, além do lavabo e escada de acesso ao piso superior, encontra-se uma sala para três ambientes compactos. Cozinha e lavanderia muito compactas, uma pequena varanda e um quintal de dimensões reduzidas. Observa-se que os usos da tradicional classe média estão dispostos em cada unidade, entretanto, sempre com dimensões reduzidas.
Muitos argumentos que compensem a falta de área de lazer comum como também o uso de medidas compactas nos ambientes são utilizados como apelo na comercialização destas vilas como, por exemplo, a forte segurança oferecida por uma vila de acesso fechado como também a localização, geralmente em áreas consideradas nobres na cidade.
Também se pode observar que o entorno dos condomínios vilas é, em alguns casos, caracterizado por lotes unifamiliares com dimensões generosas, o que torna os empreendimentos uma tipologia, de certa forma, diferenciada de seus vizinhos. Esta situação é verificada no condomínio Paineiras House; já no caso da região do entorno do shopping Dom Pedro e também do clube Hípica de Campinas já é registrada uma multiplicidade maior desta tipologia.
Ao se observar a comercialização de alguns empreendimentos estudados como é o caso da Vila do Charme e da Vila das Camélias, aparentemente o empreendedor participou do processo de incorporação, construção e vendas do condomínio o que possibilita maior lucro para o mesmo. Como forma de incremento deste lucro ofertam-se elementos que conferem status ao empreendimento.
Em muitos casos se enfatiza o modo de vida denominado “cool”, já usado há algum tempo em empreendimentos que apresentam alguns elementos diferenciados. É uma pratica que permeia a cenografia advinda do cinema que, segundo Argullol, consegue conceber o cenário urbano para encenar diferentes narrativas. (21). Muitas vezes os folders de propaganda fazem alusão a situações e lugares sofisticados no entorno apresentando a localização deles em relação ao comércio e serviços, as empresas envolvidas na incorporação e a imagem de uma família feliz.
Quando se fala na otimização do espaço das residências vê-se no empreendimento Vila Naturale um bom exemplo onde, em uma área de 77 m² , os empreendedores conseguiram agrupar o padrão de planta que responda a demanda de mercado: três dormitórios com suite no piso superior e salas de jantar, estar e televisão além de área de serviço e cozinha no inferior, ainda disponibiliza churrasqueira no pequeno quintal.
Na Vila Estanislau, implantada em Campinas na década de 1940, cada unidade compreendia três dormitórios com área de 77 m², porém dispunha apenas de sala de jantar. É importante considerar que em alguns casos, a área total de cada unidade construída nas novas vilas equivale às das vilas antigas, porém estas propunham usos menos elaborados para a unidade residencial, não tinha sala de estar e sala de televisão, apenas sala de jantar. Naquela época se fazia mais uso do espaço público, havia mais convivência entre as pessoas.
Neste sentido Argullol nota que a arquitetura e a arte, sob o amparo hegemônico da tecnologia, põe-se a serviço da formação de fortalezas de civilização frente ao vazio selvagem que invadiu, com marginalização e agressividade, os espaços urbanísticos do passado. (22)
Assim, pode-se observar no caso do Vila Naturale, embora o folder de venda apresente uma situação praticamente paradisíaca, o empreendimento, além de estar ao lado de uma estação de tratamento de esgoto, está localizado muito próximo a uma favela e também, a Rodovia Dom Pedro I apresenta picos de trânsito tanto na período da manhã como nos finais de tarde.
No Village Tivoli verificou-se uma sistemática onde as construtoras de maior porte criam uma espécie de grife ou padronização de seus empreendimentos denominando-os como Village e como segundo nome hora aplicam nomes de cidades da Europa, hora nomes femininos como, por exemplo, Village Carmem e em outros casos, palavras que remetem à natureza. Na rua onde foram implantados, pode-se observar a presença de cinco condomínios construídos nos mesmos moldes e pela mesma construtora, neste caso, não há alteração nem sequer das cores usadas nas paredes e nem de elementos arquitetônicos que buscam a “identidade” de cada um, ou seja, acorrem como cópias de uma matriz que tem como objetivo, desde o princípio, a otimização do espaço.
Já na busca da diferenciação se observa o empreendimento Portal Primavera que revela adornamentos projetados para a fachada do conjunto em geral, apresentando um estilo norte americano que confere ao conjunto ideia de aconchego, a ideia de casinha de vila, da casa de campo americana como cottage, o bangalô americano.
Alguns parâmetros podem ser definidos considerando a questão da cenografia e observando elementos pontuais nas casas de vila construídas na primeira metade do século XX e nas vilas contemporâneas, podendo desta maneira se estabelecer uma comparação observando semelhanças e diferenças que elucidam a avaliação de até que ponto é licita a atitude dos empreendedores contemporâneos quando remetem seus “produtos” às vilas do passado, implantadas sob um contexto espaço-temporal totalmente diferente do atual e para um público cujos anseios se mostram díspares da sociedade que se formava no começo do século XX. A breve análise de elementos pontuais como fachada, planta do térreo, planta do primeiro pavimento e área comum, tanto nos casos do passado como nos contemporâneos apresenta grande importância para o entendimento mais apurado e conclusivo no que tange a tipologia estudada.
O projeto de fachada da tipologia de vila do século XX apresenta certo ornamento com floreiras embaixo das janelas, detalhes nas portas de entrada e pequena cobertura para as mesmas; também é perceptível que na época não se pensava a área frontal do terreno como local para automóvel, ou seja, a mobilidade, quando pensada, era feita em escalas muito menores que a atual, os muros eram baixos com pequenos portões de acesso; pode-se dizer que a questão da violência e de segurança não era tão determinante em um projeto como hoje.
Já na análise da fachada do projeto contemporâneo fica claro o recurso ao uso de elementos decorativos, ou seja, o pachwork cenográfico que tenta despertar o interesse do “consumidor” para usufruir um espaço “charmoso” que remete ora a outro lugar, ora a outro tempo apresentando varanda, decoração com colunas, faixas, domus e pode-se observar também o uso de pérgulas na tentativa de remeter ao contato com a natureza. É interessante notar que, neste caso, não há o pequeno muro, como no projeto do passado, neste caso propõe-se viver em perfeita sociabilidade e harmonia com os ”iguais” a você, e como proteção dos perigos afora se constroem grandes muros com cercas elétricas e guaritas de vigilância, o acesso ao mundo externo é garantido apenas pelas frestas dos portões que asseguram a ”desejada” reclusão.
Quando se observa a planta do pavimento térreo da casa de uma vila antiga vê-se apenas sala de jantar, cozinha e banheiro, todos com dimensões reduzidas, embora seja sabido que estas residências eram destinadas a classes menos favorecidas da sociedade e por isso apresentavam evidências da redução dos custos da construção, pode-se conjecturar, mais uma vez, que a vida social para esta comunidade, acontecia nas ruas, nos espaços públicos, naquele tempo, sem televisão, a convivência familiar ocorria em torno das refeições, a cultura de um modo geral, naquela época, parecia ser menos individualista, os usos embora ocorressem em espaços reduzidos propunham uma maior convivência entre os membros da família. Já no caso contemporâneo , verificando o pavimento térreo da unidade familiar do tipo vila, percebe-se a maior variedade de usos. Neste caso se propõem para parte térrea garagem para dois veículos, áreas para três salas, incluindo a sala de televisão e de visitas, lavabo, cozinha, área de serviço e quintal com churrasqueira, todos os atributos almejados pelo “consumidor” deste “produto”.
A análise do pavimento superior pode revelar que a flexibilização de usos e espaços pode gerar, de certa forma, uma sociedade cada vez mais engessada no que diz respeito à sociabilidade. No pavimento superior da vila antiga não havia banheiro, apenas eram dispostos dois dormitórios, supõe-se que o uso era apenas para o dormir e a privacidade de cada membro da família não era contemplada como nos projetos atuais. Já neste mesmo pavimento da unidade da chamada vila contemporânea há quartos com mesas para os computadores que garantem a conectividade do “cidadão globalizado”. É interessante pensar que o marketing destes empreendimentos remete a uma sociabilidade das vilas do passado, entretanto o próprio espaço construído, embora proponha esta grande diversidade de usos, não propicia a almejada sociabilidade.
Nas áreas de convívio, percebe-se grande diferença na concepção e diversas formas de ocorrência tanto nos casos implantados contemporaneamente como nos estabelecidos no passado. Na primeira situação, nota-se que nos dias de hoje, há uma tendência dos empreendimentos, de uma maneira geral, oferecerem as mais diversas formas de espaços de convívio, seja de lazer, alguns tipos de serviços e em alguns casos até mesmo lúdicos, evidenciando a ideia de encenação, da não espontaneidade de formação de usos e da tentativa, cada vez maior da interiorização e privatização da vida pública. Sobre este processo Argullol afirma que os projetos urbanísticos, ainda que globais e minuciosos, são por demais esqueléticos e estão desprovidos de carne (23)
Entretanto, nos casos da maioria das vilas contemporâneas estudadas, como tratam da busca limite do aproveitamento do espaço, os empreendedores tornam-se ainda mais impudentes, pois forjam em seus empreendimentos áreas de recuos obrigatórios como área de lazer e ainda as divulgam como atrativo. Estes empreendedores ainda fazem uso, na fronteira do aceitável, de uma legislação que, a princípio não prima pela qualidade do espaço do qual supostamente deve ordenar. Nas vilas do passado as áreas de convívio e lazer eram vistos como públicas, ocorriam nas ruas, nas praças e na vida que se criava em torno destas. Nos casos verificados, notou-se que, naquele tempo, embora estas áreas fossem espacializadas e locadas quando a vila era projetada na totalidade, não havia a imposição de sofisticados e diversificados usos que se confere nos dias de hoje, o convívio deveria acontecer de maneira espontânea.
A sociabilidade “espontânea”, idealizada nas diversas formas, vendida nos empreendimentos contemporâneos torna-se peça fundamental para o entendimento do sistema regido pelo lucro. O fato é que por trás de todo este discurso, os empresários usam brechas para simplificar, cada vez mais, os projetos arquitetônicos e urbanísticos, reduzindo seus custos e agregando valores ilusórios para o comprador do produto final, onde a definição do espaço público e do espaço privado é mediada sob aspectos do lucro do empreendedor.
Conclusão
A Lei de Vila vigente em Campinas desde o ano de 2004 estipula que esta tipologia só poderá ser implantada em terrenos com área máxima de três mil metros quadrados, com variação máxima de 5% e que podem ser construídas nas macrozonas 3,4,5 e 6, considerando o zoneamento de acordo com a lei de uso e ocupação do solo criada em dezembro de 1988.
Entretanto, de acordo com as pesquisas realizadas nos arquivos da Prefeitura Municipal de Campinas, como nas pesquisas de campo, se observou que é importante a reflexão a respeito do local no qual esta tipologia vem sendo implantada. Do ponto de vista do empreendedor, para que ocorra lucro na construção, ela tem que fechar um cálculo onde o tamanho do terreno, o número de unidades possíveis de construção e seus respectivos custos possibilitem excelentes dividendos ao mesmo. Desta maneira se percebe a ocorrência das vilas em regiões que dispõem de lotes com dimensionamentos maiores e próximos a polos de atração.
Foi verificado, nos bairros tradicionalmente mais populares, embora estejam situados nas zonas de vigência da Lei de Vila, que não há a ocorrência deste sistema tipológico. Podem-se conjecturar algumas razões para a ocorrência de tal fato, entre elas as dimensões originais dos lotes de tais bairros, que não possibilitam ao propositor obter lucro suficiente. Outra razão seria a não existência de um mercado e respectivo marketing para a tipologia de vila nestes locais de segmento mais popular da sociedade. Embora o princípio desta lei seja a possibilidade de maior adensamento o que, historicamente, é concebido para os bairros operários.
Observou-se que as vilas foram implantadas em bairros voltados à classe média ou classe média alta. Em muitos casos, a área total do empreendimento ocupou um ou dois lotes anteriormente destinados a uma única casa. Em média, este tipo de implantação permite a construção de 7 unidades em uma área destinada a apenas uma única habitação, no que se refere à legislação vigente para o terreno e para o entorno, até o momento da aprovação do novo enclave. Por se constituir um condomínio fechado, cada unidade nova habitacional possui um valor de mercado superior ao de uma única unidade habitacional do tecido urbano do entorno.
A comercialização desta nova tipologia, para estas classes está diretamente ligada à possibilidade de viver em casa e não em apartamento, a ideia do ser “cool” morar em uma vila onde os relacionamentos ocorrem de maneira harmoniosa e que em determinado espaço se convive com pessoas semelhantes a você.
Os novos empreendimentos vendem a ideia de comunidade socialmente “feliz” intrínseca ao lugar, e a sociabilidade talvez ocorresse, no começo do século XX, justamente porque existia a vida pública. Como afirma Argullol, hoje ocorre a cenografia, até muito mais elaborada que a de outrora, porém não existe a vivência, não ocorre de fato a desejada socialização. Segundo Argullol: a cenografia é o signo que melhor define a cidade contemporânea, é o lugar do ‘representar’ do encenar, é a única cidade possível. (24).
notas
1
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 90.
2
SANTOS, Milton. Op. Cit., p. 96.
3
REIS, Nestor Goulart. Notas Sobre a Urbanização Dispersa e Novas Formas de Tecido Urbano. São Paulo: Via das Artes, 2006, p. 76.
4
REIS, Nestor Goulart. Op. Cit., p. 122.
5
BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: J.Zahar, 2003, p. 111.
6
BAUMAN, Zigmunt. Op. Cit., p. 47.
7
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida.Tradução Plinio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 109.
8
BAUMAN, Zigmunt. Op. Cit.. 2003, p. 50.
9
BAUMAN, Zigmunt. Op. Cit.. 2003, p. 46.
10
REIS, Nestor Goulart. Op. Cit., p. 122.
11
BAUMAN, Zigmunt. Op. Cit.. 2001, p.129.
12
ARGULLOL,Rafael. A Cidade Turbilhão. Revista do Patrimônio, IPHAN, Rio de Janeiro, n-23, pp.59-68,1994.Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=\\Acervo01\drive_n\Trbs\RevIPHAN\RevIPHAN_Thumbs.docpro&pasta=&pesq=cidade%20turbilhão> .Acessado em : 28 de ago. 2010, p. 60.
13
TREVISAN, Ricardo Marques. Condomínios Tipo Vila em São Paulo. Dissertação de Mestrado. 2006. FAU. Universidade de São Paulo,São Paulo,2006.
14
ARGULLOL,Rafael. Op. Cit., p. 61.
15
BONDUK, Nabil Georges. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade,1998, p. 47.
16
BONDUK, Nabil Georges. Op. Cit., p. 49.
17
RIBEIRO, Daizy Serra. Campinas no Estado Novo: Política de Habitação Popular na Formação da Cidade Industrial. Tese doutorado. Departamento de História, IFCH, Unicamp, Campinas, 2007, pp. 116-119.
18
RIBEIRO, Daizy Serra. Op. Cit, p. 122.
19
RIBEIRO, Daizy Serra. Op. Cit, p. 124.
20
ZAKIA, Silvia Amaral Palazzi. Vila Operária Cury. Pesquisa Histórica e Fontes Documentais. Trabalho para Mestrado em Urbanismo. 1998. PUCC, Campinas, 1998, p. 34.
21
ARGULLOL,Rafael. Op. Cit., p. 60.
22
ARGULLOL,Rafael. Op. Cit., p. 61.
23
ARGULLOL,Rafael. Op. Cit., p. 59.
24
ARGULLOL,Rafael. Op. Cit., p. 60.
sobre os autores
José Luiz Rogé Ferreira Grieco é Arquiteto e Urbanista formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2004) e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Urbanismo da mesma instituição (2011). Atua como autônomo na área de projeto arquitetônico e urbanístico além de prestar consultoria à Prefeitura Municipal de Jaguariúna acompanhando o processo de revisão do Plano Diretor e a implantação do Plano Local de Habitação de Interesse Social do município.
Ivone Salgado é Arquiteto pela FAU USP (1978), doutora em Urbanismo pelo Institut d’ Urbanisme de Paris (1987) e possui Pós-Doutorado no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2008). Atualmente é professora do Programa de Pós-graduação em Urbanismo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do CEATEC da PUC-Campinas, Bolsista Produtividade CNPQ-2 e Pesquisadora Principal de Projeto Temático financiado pela FAPESP com pesquisa sobre a formação da disciplina Urbanismo no século XIX.