Na década de 1960, metodologias de estudo da cidade que buscam superar a divisão disciplinar entre Arquitetura e Urbanismo adquirem expressão, quando parte da cultura arquitetônica italiana, questionando os resultados da aplicação dos códigos redutivos do Movimento Moderno na cidade, tais como o empobrecimento d oambiente urbano e a perda da identidade cultural, postula a aplicação de novas abordagens para a Arquitetura em conexão com a análise das estruturas urbanas, entendidas como relações mutáveis, mas constantes no tempo (1).
Tal abordagem inicia-se com Saverio Muratori que, em Studi per una operante Storia Urbana di Venezia (1960), examina o tecido urbano e faz do tipo, enquanto estrutura formal, o conceito básico para explicar o desenvolvimento histórico desta cidade. Para Muratori, o tipo é a chave para compreender a conexão entre os elementos individuais e as formas urbanas; assim tanto as calli, como os campi e os cortide Veneza são considerados elementos tipo vinculados uns aos outros, que perdem o sentido se não são reconhecidos a partir da interdependência constatada. Esta atitude, ao destacar a relação dos elementos entre si e com o todo, propõe um método de análise que pode ser chamado de morfológico e que foi a base para o desenvolvimento de numerosos estudos tipológicos.(2)Os outros expoentes italianos que, à época, propõe uma análise da cidade a partir da relação entre tipologia arquitetônica e morfologia urbana são: Giulio Carlo Argan, Aldo Rossi, Carlo Aymonino e Ludovico Quaroni. Ao situar historicamente este movimento, François Loyer nos dá a dimensão de sua importância:
(…) No início dos anos 1970, a temática adquire maior expressão por constituir um instrumento de contestação do Movimento Moderno. Tratava-se de lutar contra o primado das abordagens econômicas e sociológicas, introduzindo uma perspectiva histórica, capaz de extrair significado do plano cultural. O viés tipológico revelava-se como uma regra implícita mais convincente do que a visão puramente plástica das ordenações impostas pela tradição Beaux-Arts. Fascinaram-se pelo método, aqueles cujo patente interesse era o de restabelecer a continuidade cultural entre passado e presente bem como o diálogo do patrimônio com o projeto. (3)
O planejamento urbano da época apoiava-se sobretudo em bases quantitativas e era dominado por disciplinas variadas tais como a sociologia, a geografia, a economia, e a engenharia de tráfego. Em oposição ao primado de tais abordagens, a Tendenza, como ficou conhecido o movimento na Itália, defende a insubmssão da ciência urbana e sua recuperação, na medida em que a cidade é estudada a partir de seus dados formais, como uma arquitetura, uma construção ao longo do tempo, ligada à cultura da sociedade.
Ao tomar como ponto de partida a forma da cidade, este tipo de análise não deixa de reconhecer a contribuição de outros campos disciplinares, apenas não admite uma relação determinista em que a cidade é mero produto dos contextos econômicos, políticos e sociais; pois considera-se que sua forma também seja o resultado de teorias, posições estéticas e culturais de arquitetos e urbanistas.Os estudos de morfologia urbana rompem com os métodos do funcionalismo que reduzem o projeto e o conhecimento da cidade aos sistemas de circulação e zoneamento. Em oposição às análises quantitativas, a metodologia propõe o estudo de dados qualitativos como o parcelamento do solo e as constantes tipológicas na configuração dos tecidos urbanos. Há também uma mudança de escala no projeto urbano, para o qual, em oposição aos planos globais e às macro estruturas funcionalistas, o fragmento volta a ter relevância.O projeto de partes da cidade deveria então encaminhar-se como desenho urbano, em consonância com parâmetros que regulassem a arquitetura dos edifícios, pois segundo esta abordagem, a qualidade arquitetônica da cidade não se restringe à realização de obras isoladas, mas também à capacidade das novas arquiteturas relacionarem-se a fatos urbanos anteriores: a outras arquiteturas, à paisagem, ao lugar e aos sistemas de infra-estrutura. (4)
Tal método de análise assume algumas classificações de caráter instrumental. Em termos de escala, a estrutura urbana é composta pelos seguintes elementos: o traçado viário, o quarteirão, o lote (ou parcela fundiária), o edifício. Um estudo morfológico é válido quando além de descrever estes elementos, investiga sua interdependência. A partir daí, outros fatores são considerados: os regulamentos de construção, as técnicas construtivas, a cultura de profissionais como arquitetos, engenheiros, construtores e artesãos. Tal análise é capaz de esclarecer a vigência de determinadas formas e o conceito de tipo adquire então valor instrumental no sentido de indicar a origem dos edifícios e suas relações com os outros elementos operantes na forma urbana, assinalando assim sua armação histórica.
A morfologia urbana é o estudo das formas da cidade. A tipologia construtiva é o estudo dos tipos de construção. Ambas as disciplinas estudam duas ordens de fatos homogêneos; além disso, os tipos construtivos que se concretizam nos edifícios são o que constitui fisicamente a cidade. (5)
Para entender a relação entre tipologia arquitetônica e morfologia urbana em suas implicações para a análise da estrutura das cidades ou mesmo como metodologia de projeto, é necessário definir o conceito de tipo e suas acepções ao longo do tempo. Um percurso histórico demonstra que não existe uma única definição de tipologia construtiva, ao contrário, tal conceito é redefinido sempre em função das investigações que se pretende realizar: o tipo é, portanto um instrumento e não uma categoria.
Em 1825, no terceiro volume da Encyclopédie Methodique - Architecture, o teórico francês Quatremère de Quincy define formalmente tipo e introduz o conceito ao campo disciplinar da Arquitetura. Entretanto, a consolidação desse conceito remete ao século XVIII, pois a idéia de tipo inscreve-se no concento das preceptivas então em voga e nele se relaciona com as noções de caráter, imitação, decoro e origem da Arquitetura. Limitar a compreensão de tipo apenas ao âmbito da teoria francesa da Arquitetura no século XIX, quando Durand já o havia submetido a uma condição operativa em suas lições na École Polytechnique é um equívoco.
Quatremère de Quincy estabelece então a distinção entre tipo e modelo que responde a suas preferências pela etimologia grega frente à latina, pela linguagem especulativa frente aos termos demasiados práticos. Tipo, do grego typos, significa matriz, impressão, molde, figura em relevo ou em baixo-relevo (6) e distingue-se de modelo, do latim modellum, trasladado às artes através do italiano modello, que implica em uma cópia literal e possuiconotações empíricas,físicas e miméticas. O tipo é a idéia por trás da aparência individual do edifício, uma forma ideal, geradora de infinitas possibilidades, da qual muitos edifícios dissimilares podem derivar. Distingue-se do modelo, objeto específico que podeser copiado identicamente.
A palavra tipo não representa tanto a imagem de uma coisa a ser copiada ou imitada perfeitamente como a idéia de um elemento que deve ele mesmo servir de regra ao modelo. (…) O modelo, entendido segundo a execução prática da arte, é um objeto que se deve repetir tal como é; o tipo é, pelo contrário, um objeto, segundo o qual qualquer pessoa pode conceber obras que não se assemelharão em nada entre si. Tudo é preciso e dado no modelo; tudo é mais ou menos vago no tipo. Assim vemos que a imitação dos tipos nada tem que o sentimento e o espírito não possam reconhecer. (…) (7)
O tipo é um elemento importante da dimensão conceitual da Arquitetura. Abarca a essência da arte em particular, mas também resulta no que poderia ser um desdobramento prático da teoria ao guiar a concepção do arquiteto e o julgamento do público. Para Quatremère, a relação entre arquitetura antiga e moderna não era outra coisa senão a modificação do tipo, uma transformação conceitual requerida cada vez que um edifício é projetado. O tipo arquitetônico é o principio que regula as modificações e a chave para a legibilidade do público, pois é por ele que se imprime o caráter distintivo aos edifícios.
Quatremère estabelece uma relação entre as etimologias dos termos tipo e caráter. Tipo deriva do termo grego typos, no sentido de gravar ou imprimir. Caráter, do grego characteer, traz o significado de marca e de traço distintivo: um verdadeiro tipo possui caráter próprio, e este permanece impresso em sua forma.
Cada um dos principais edifícios deve encontrar em sua destinação fundamental, nos usos que lhe concernem, um tipo que lhe é próprio. A arquitetura deve tender a se conformar, da melhor forma possível, a este tipo se quer imprimir, a cada edifício, uma fisionomia particular. É da confusão entre estes tipos que nasce a desordem tão comum que consiste em empregar indistintamente as mesmas ordenações, disposições e formas exteriores em monumentos destinados aos usos mais diversos. (8)
A diatribe dirigida às barrières de Paris - 47 portas alfandegárias projetadas por Claude-Nicolas Ledoux nos estertores do Ancien Regime – é expressão da polêmica em torno da invenção de um novo tipo. A eloquência das formas elementares e o caráter distintivo destes monumentos dignifica a autoridade citadina e assinala a passagem ao domínio austero da urbanidade (9). Ledoux compõe variações sobre temas: o templo grego, os portais amurralhados, o esquema palladiano da rotunda. Contudo, a mistura de tipos antigos e modernos é violentamente contestada por Quatremère, pois para ele apenas o arco triunfal seria adequado ao tema. Enquanto o emprego das massas imponentes e da mais austera das ordens gregas é considerado por ele motivo de encômio, as licenças de toda espécie encontradas algures – arcos inseridos em frontões, ábacos comuns a duas colunas, modilhões, bossagens e colunas submetidas aos piores gêneros de tortura (10) – justificariam sua exprobração.
Com Jean-Nicolas-Louis Durand em suas lições na École Polytechnique, a tipologia arquitetônica passa a ser um instrumento indispensável, com indicações projetuais, mas assume um caráter operativo. A tipologia já não se relaciona mais com os conteúdos a representar, tal como nas pesquisas dos arquitetos ilustrados; passa a ser a catalogação de protótipos que já definiram e deslindaram usos e ofícios semelhantes. A expressão doedifício é dada pela conveniência e disposição das partes e nesse contexto, os tratados de arquitetura tendem a transformar-se em manuais que oferecem modelos exemplares.
O método de composição arquitetônica de Durand (11) compreende três etapas: em primeiro lugar, a descrição dos elementos da arquitetura, tais como colunas, pilastras, abóbadas, escadas, etc; em seguida o traçado das formas gerais de associação destes elementos- em abstrato, a partir da distribuição conforme eixos e modulação reticular, e também conforme as exigências distributivas dos vários temas- e, finalmente, o estudo de modelos exemplares. A geometria concreta e elementar dos projetos dos arquitetos ilustrados se dissolve numa abstrata retícula cartesiana, que permite, em função da economia de meios, a regularidade por um lado, e a medida, em seu mais amplo sentido, por outro. (12) Havia neste método o propósito prático de transmitir aos alunos na École Polytechnique um mecanismo compositivo simplificado com objetivo operacional: viabilizar o sistema de Bâtiments Civils na capital e nas cidades do interior da França.
A composição será o instrumento utilizado pelos arquitetos para enfrentar a variedade de programas propostos por uma nova sociedade, pois tal diversidade não poderia ser satisfeita com os tipos conhecidos. A composição passa a ser o mecanismo capaz de resolver a relação entre forma e programa, ou forma e função, convertendo-se no conceito básico para entender a arquitetura do século XIX e seus novos edifícios de caráter institucional, tratados como monumentos e utilizados como pontos de referência dentro de um sistema que os relaciona a traçados e infra-estruturas nas grandes intervenções urbanas do período.
Nas reformas da Paris de Haussmann e na expansão projetada por Cerdá para a cidade de Barcelona, os tipos residenciais são o resultado da implantação urbana, baseada nos traçados viários e nos regulamentos que definiam o gabarito dos conjuntos edilícios a partir da largura das vias. Verifica-se nestes casos uma alteração do conceito de tipologia: o tipo passa a ser estabelecido primeiro em função do projeto urbano para só depois passar por estudos distributivos e compositivos, a partir do exame das necessidades que deveriam atender.
Há uma interação contínua entre o plano para a expansão de Barcelona (1859) e o objetivo maior de Cerdá de formular princípios gerais para o projeto racional de cidades expressos na Teoría general de la urbanización y aplicación de sus pricipios y doctrinas a la reforma y ensanche de Barcelona (1867). A teoria era usada para justificar o plano e este, por sua vez, funcionava como base empírica e elucidava a teoria.
A idéia de uniformidade era essencial para Cerdá. Todas as partes da cidade são projetadas de acordo com os mesmos princípios, teriam o mesmo valor e seria possível estender a retícula ortogonal, que define a área urbana, ad infinitum usando sempre o mesmo sistema.
O tipo urbano de Cerdá, o quarteirão, aceita arranjos variáveis, dentro de uma taxa de densidade máxima, e constitui o elemento básico do tecido urbano. Depois de definir a estrutura geral do projeto do Ensanche, a partir do sistema de ruas e quarteirões– em sua terminologia, vias e intervias, respectivamente – Cerdá passou ao estudo da composição dos quarteirões. Prescreveu exigências mínimas que assegurassem a salubridade e a boa circulação sem prefigurar nenhuma solução arquitetônica específica. Dentro de um esquema de ordem geral, os proprietários tinham liberdade de construir os edifícios. As tipologias tradicionais da cidade de Barcelona são rechaçadas por Cerdá que as considerava insalubres. (13)
No caso de Paris, a tipologia arquitetônica está relacionada com a modalidade de parcelamento, consequência das formas de apropriação do solo então vigentes. No século XVIII, a antiga escala de parcelamento, fundada sobre a propriedade familiar, começaria a tender para a criação de loteamentos nos grandes terrenos, ainda vazios, da capital. A nobreza, grande proprietária de terras, promoveu a abertura dos primeiros loteamentos nos quais seriam construídos imóveis de renda. (14)
Na Paris do século XIX, tanto as grandes residências urbanas, como as mais modestas, aproximavam-se, no que diz respeito à distribuição dos espaços, do hôtel particulier, tipo de residência aristocrática, consolidado no século XVII. Esse tipo de edifício articulado em meio a generosas parcelas fundiárias era dotado de extensa fachada, voltada para um jardim, e formada pela linha de aposentos para recepção. A área de convívio social, no térreo, ficava bem separada dos cômodos íntimos, no pavimento superior, e das áreas de serviços domésticos e empregados, nos fundos. Várias escadas, localizadas de forma estratégica, separavam por completo os diferentes fluxos.
Mais do que a difusão de um tipo arquitetônico, a adaptação de algumas características do hôtel particulier ao imóvel de renda parisiense, representa a difusão de um modo de vida luxuoso entre a pequena burguesia. O jardim é substituído pela rua e esta será a fachada privilegiada ocupada pelos cômodos de representação. As superfícies são reduzidas e o apartamento se organiza horizontalmente, espaços de recepção e espaços privados, que no hôtel particulier ocupavam andares diferentes, nos apartamentos estarão em um mesmo nível, voltados para a rua ou para o pátio interno no quarteirão.
O tipo imóvel de renda parisiense se diferencia da casa particular pela ruptura na escala de parcelamento. Do ponto de vista fundiário, os terrenos e quarteirões rasgados pelos bulevares de Haussmann aumentaram de valor. Os novos parcelamentos, resultantes da abertura de vias através do tecido urbano antigo, propiciavam a construção do tipo de imóvel que entraria em voga na segunda metade do século XIX. Devido ao recorte dos quarteirões, o lote haussmanniano tinha poucas chances de ter uma forma regular, e enquanto alguma constância era mantida nas dimensões das testadas e nos limites laterais, lançados de forma perpendicular às novas vias, a profundidade das parcelas variava bastante.
O tipo denominado hoje de imóvel haussmanniano era, portanto flexível e adaptável às irregularidades dos lotes. Apenas a linha de fachada voltada para a rua, onde estavam dispostos os cômodos de recepção, deveria obedecer a uma geometria rígida. O pátio interno, espaço menos nobre, para onde estavam voltadas as áreas íntima e de serviço, aceitava irregularidades em sua forma.
É importante verificar que o imóvel haussmanniano não é tratado como um objeto isolado, mas como parte de um conjunto pois em todos os imóveis dos quarteirões é mantida a regularidade das fachadas e o alinhamento da rua. O uso do mesmo gabarito gerou uma ampla unidade urbana. A regularização se aplicava à altura dos andares, às saliências dos balcões ou das cornijas, ao ritmo das aberturas enquanto as diferenças se restringiam aos ornamentos. Os regulamentos de Haussmann visavam a harmonia do conjunto arquitetônico e a proporção entre a escala dos quarteirões e a escala urbana.
A passagem da escala do lote para a escala do quarteirão nas reformas de Haussmann deve ser entendida dentro do plano geral de dar à capital francesa uma escala monumental. Os bulevares, que rasgavam o tecido antigo de Paris, tornar-se-iam o modelo de espaço urbano central. Este tipo urbano, composto de vias paralelas, com circulação de pedestres separada da circulação de veículos, articulava várias funções: além da animação comercial da calçadas, permitia a rápida circulação entre os bairros. Por outro lado, o bulevar era perfeitamente adequado à criação do traçado, em escala monumental, indispensável à visibilidade global da forma urbana.
A história do imóvel parisiense é de um aumento considerável na densidade, sem que isso significasse a transformação radical na aparência da construção: os lotes se alargam, aumenta o índice de ocupação dos terrenos, aumenta o número de andares, mas a aparência geral das fachadas, seguindo a tradição clássica de composição com embasamento, corpo principal e coroamento, permanece.
No contexto do final do século XIX, em que as principais cidades européias passam por profundas transformações, no esforço de compatibilizar crescimento acelerado, aspectos sanitários e circulação, a obra de Camillo Sitte, A construção da cidade segundo seus princípios artísticos (15), pode ser considerada uma reação ao desaparecimento dos cascos antigos e uma tentativa de conferir à cidade uma dimensão formal que se desintegrava sob as reformas urbanas, resgatando a urbanidade presente, sobretudo na antiguidade greco romana. (16) Partindo da análise de inúmeros exemplos de espaços públicos, sobretudo praças, Sitte formula princípios gerais de composição urbana cuja aplicação julgava ser capaz de conferir às cidades modernas qualidades formais semelhantes aos exemplos históricos.
Na obra de Sitte, a cidade é tratada como uma obra de arquitetura. Além de investigar as possibilidades urbanísticas da arquitetura - proporções e maneiras de inserir os monumentos nos espaços públicos – Sitte também explora o potencial estético de elementos urbanísticos como uso do solo, alinhamentos dos edificios, fluxos de tráfego, densidade edificatória e vegetação. (17)
Depois de obter grande repercussão logo após seu lançamento, a obra de Sitte é objeto de duras críticas por parte do Movimento Moderno para, nos anos 1960, ser retomada pelos contextualistas pós-modernos e pelo movimento Townscape. A reverência à história, a escala através da qual trata a cidade, privilegiando as partes em relação ao todo, o interesse, manifesto em seus desenhos, pela maneira como o cidadão comum percebe o espaço urbano, são aspectos da obra de Sitte retomados nos trabalhos de Kevin Lynch, Gordon Cullen e dos irmãos Leon e Rob Krier.
No século XX, as noções de tipo e tipologia como ponto de partida para o projeto arquitetônico são rechaçadas pela vertente do Movimento Moderno dita funcionalista. Tal crítica tinha por base a defesa da individualidade do objeto arquitetônico, a rejeição da teoria acadêmica da arquitetura estabelecida durante o século XIX e a valorização conferida à metodologia do projeto no processo criativo. O funcionalismo, entendido como a relação de causa e efeito entre função e forma arquitetônica, parecia oferecer naquele momento um método que eliminava totalmente o recurso à tipologia, enquanto instrumento legitimado pela história e premissa para o projeto.
A produção em série da arquitetura, centrada, sobretudo nos programas de habitação assume papel relevante para o Movimento Moderno. A habitação estandardizada, capaz de abrigar as pretensas necessidades fundamentais e passível de repetição em vários contextos, seria a resposta programática às transformações pelas quais a sociedade urbana e industrial passava. O tipo deixa de ser um conceito abstrato para se tornar uma realidade concreta nos processos industriais e ao viabilizar a reprodução exata do modelo o tipo é convertido em protótipo.(18)
No século XX, a configuração da vivenda passa a ser estruturada de forma endógena, a partir das necessidades lógicas da unidade residencial individual. No alojamento funcional, a forma urbana é o resultado do arranjo de células-base segundo parâmetros quantitativos tais como insolação e ventilação, que substituem a relação dos edifícios com outros elementos da forma urbana, como ruas, praças e quarteirões. Arquitetos e urbanistas promovem intervenções em parcelas das cidades, sobretudo nos novos bairros periféricos, que não estabelecem um acordo com estruturas urbanas anteriores. A relação entre tipologia habitacional e morfologia urbana passa a ser então unilateral: a tipologia determina a morfologia, pois as demandas do espaço urbano deixam de ser consideradas como aspectos relevantes. (19)
Frente as limitações do Movimento Moderno para lidar com as questões urbanas, uma série de textos da década de 1960 insiste na necessidade de se buscar uma teoria capaz de explicar a continuidade formal e estrutural entre as novas partes e as cidades antigas. Tais estudos consideram a cidade como uma estrutra formal cujo sentido só pode ser compreendido através da análise de seu desenvolvimento ao longo da história. Retoma-se então ao início deste artigo, sobretudo à obra de Aldo Rossi e de Giulio Carlo Argan, que retomam a definição de tipo de Quatremère de Quincy.
Argan interpreta a definição de Quatremère com tal pragmatismo que parece desconsiderar o neo platonismo implicito na definição do conceito no século XVIII. Para Argan, o tipo supõe uma certa abstração inerente à forma e à função dos edfícios. O tipo se configura como um esquema, deduzido através de um processo de redução de um conjunto de variantes formais a uma forma base comum, entendida como estrutura interna da forma ou como princípio que implica a possibilidade de infinitas variantes formais e, até, da ulterior modificação estrutural do tipo mesmo. (20) O tipo deduzido de uma série de obras é portanto resultado de uma operação feita a posteriori, o que faz com que Argan divirja de Quatremère, para quem o tipo se aproxima do absoluto platônico, da idea a priori.
Contudo, a definição de tipo de Quatremère como algo vago e indefinido, permite a Argan estabelecer dois momentos no processo de criação de uma nova obra de arquitetura: o momento da tipologia e o momento da definição formal (21). O momento da tipologia é para Argan o momento não problemático em que o arquiteto estabelece os laços com o passado e a sociedade ao se referir a um repertório de tipos conhecidos. Já o segundo momento do processo ideativo é aquele da invenção, que representa a resposta do arquiteto à situação histórica hodierna, através da crítica e da superação das soluções passadas sedimentadas e sintetizadas na esquematicidade do tipo. (22)
Ao analisar a tipologia dos edifícios e sua relação com a cidade, Aldo Rossi também recupera a definição de tipo formulada por Quatremère de Quincy. Convergindo com o teórico do século XVIII, Rossi afirma que o tipo se constitui de acordo com as necessidades e com as aspirações de beleza das diferentes sociedades, ligado à forma e ao modo de vida. Por conseguinte, o conceito de tipo se constitui em fundamento da arquitetura e retorna tanto na prática quanto nos tratados. O tipo é, pois, constante e se apresenta com características de necessidade; mas mesmo determinadas, elas reagem com a técnica, com as funções, com o estilo, com o caráter coletivo e o momento individual do fato arquitetônico. (23)
A obra de Rossi, A Arquitetura da Cidade (1966), constitui um libelo contra a corrente funcionalista da arquitetura moderna. Condicionada à função, a forma arquitetônica é destituída de suas razões mais complexas, por um lado, o tipo se reduz a um mero esquema distributivo, um diagrama de fluxos; por outro, a arquitetura perde sua autonomia. Ao estudar a cidade a partir de sua arquitetura, Rossi aponta questões como a individualidade, o locus, a memória, o desenho, mas não se refere a função e para justificar sua posição faz menção a fatos urbanos preeminentes cuja função mudou ao longo do tempo, ou mesmo em que não existe função específica. Pode estar apontada aqui a chave para uma das questões essênciais da cidade contemporânea: a possibilidade de readequação, a partir das qualidades da sua arquitetura e de sua forma urbana, de partes inteiras da cidade cujos usos tornaram-se obsoletos.
Se para Quatremère de Quincy, o tipo explica o problema original da arquitetura, sempre latente no curso da história, resta a pergunta: faz sentido hoje recorrer ainda ao conceito de tipo? A resposta pode ser positiva quando se considera que uma obra de arquitetura não se constitui como um fato único e isolado, pois está condicionada por uma determinada realidade e por sua história e, portanto, se propaga em outras tantas obras. A validade de uma interpretação tipológica se coloca, pois quando toda vez que se reconhece o caráter unitário e ao mesmo tempo relacional da arquitetura e da cidade.
notas
NA
Alguns aspectos dos conceitos de morfologia urbana e tipologia constrtutiva são abordados pela autora em: PEREIRA, Renata B. “Uma abordagem histórica dos conceitos de morfologia urbana e tipologia arquitetônica”. In: Ímpeto. Revista de Arquitetura e Urbanismo. PET Arquitetura- UFAL. Ano 02. Fev. 2010. pp. 21-6.
1
AYMONINO, Carlo. O significado das cidades. Lisboa: Editorial Presença, 1984, p.7.
2
MONEO, Rafael. “Sobre la noción de tipo” (1978). In: COSTA, Xavier. Hábitats, tectónicas, paisajes. Arquitectura española contemporánea. Barcelona: Actar, 2001.
3
LOYER, François. “Prefácio”. In: SALGUEIRO, Heliana A.. La casaque d’arlequin: Belo Horizonte une capitale éclectique au 19e. Siècle. Paris: EEHESS, 1997, p.X.
Além dos italianos, outras escolas trabalharam com este tipo de abordagem, a saber: o Laboratório de Urbanismo de Barcelona, com Solà-Morales; na França os estudos de Panerai, Castex e Depaule; e mais recentemente na Argentina, Fernando E. Diez.
4
AYMONINO, Carlo, op. cit., p 126.
5
ROSSI, Aldo. Para una arquitectura de tendencia. Escritos: 1956-1972. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli S.A., 1977.
6
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Type”. In: Encyclopédie Methodique - Architecture. Liège : chez Panckoucke, Tome III, 1825, p.543.
A tradução integral deste e de outros verbetes do Dictionnaire Historique d`Architecture de Quatremère de Quincy encontra-se publicada em: PEREIRA, Renata Baesso. Arquitetura, imitação e tipo em Quatremère de Quincy. São Paulo: FAU-USP, 2008. Tese (Doutorado). Programa de Pós Graduação em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.
7
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Type”. Op. cit.,Tomo III, p.543.
8
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Type”. Op. cit.,Tomo III, p.545.
9
AZEVEDO, Ricardo Marques de. Antigos modernos: estudos das doutrinas arquitetônicas nos séculos XVII e XVIII. São Paulo: FAU-USP, 2009, pp.75-6.
10
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Barrière”. In: Encyclopédie Méthodique : Architecture. Liège: chez Panckoucke, Tome I, 1788, p.216.
11
DURAND, Jean-Nicholas-Louis. Précis des leçons d’architecture données à l’École Royale Polytechnique. Paris, 1819. (Edição facsimilar: Nördlingen: Verlag Dr. Alfons Uhl, 1985).
12
MONEO, Rafael. “Prólogo” a la edición española. In: KAUFMANN, Emil. La arquitectura de la ilustracion. Barcelona: Gustavo Gilli, 1974, p.XXV.
13
CERDÁ ciudad y territorio: una visión de futuro. Catálogo de la Exposition. Barcelona: Electa, 1994, p.87.
14
LOYER, François. Paris XIXe siecle, l’immeuble et la rue. Paris: Hazan, 1987, pp.67-70.
15
Título original: Der Städtebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen. 1ª edição: Viena, 1889. Tradução para o português organizada por Carlos Roberto Monteiro de Andrade: SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Ática, 1992.
16
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. “A construção da cidade segundo seus princípios artísticos”. In: Projeto, São Paulo, n.128, p.108, dez. 1989.
17
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de, Op. Cit., p.109.
18
MONEO, Rafael. “Sobre la noción de tipo”. Op cit., p.182.
19
ROWE, Colin, KOETTER, Fred. Ciudad Collage. 2.ed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 1998, p.58.
20
ARGAN, G.C. “Sobre o conceito de tipologia arquitetônica”. In: ARGAN, G. C.. Projeto e destino. São Paulo: Editora Ática, 2000. p.67.
21
ARGAN, G. C. Op. Cit., p.69.
22
ARGAN, G. C. Op. Cit., p.70.
23
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 27.
sobre a autora
Renata Baesso Pereira é Arquiteta pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (1994). Mestre em Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – FAU-PUC- Campinas (2000). Doutora pelo Programa de Pós Graduação em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo da Universidade de São Paulo (2008). Professora do Curso de Pós Graduação em Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (CEATEC - PUC- Campinas – SP), na linha de pesquisa História do Pensamento Urbanístico.