Introdução
O discurso sobre a crise urbana na França está intimamente ligado aos bairros periféricos de habitação social e, mais precisamente, aos grandes conjuntos habitacionais construídos no pós-guerra. Estes últimos são atualmente identificados aos problemas sócio-econômicos e à forte segregação territorial, que marcam as evoluções sociais e urbanas contemporâneas. Definitivamente associados a esta situação de crise, os espaços públicos tornam-se os lugares onde se expressam as novas clivagens da sociedade, sendo particularmente visados pelas autoridades políticas e urbanísticas. No caso do grand ensemble Les Minguettes, em Lyon, os responsáveis pela renovação urbana do bairro partem do diagnóstico de uma situação “anômica”, anormal, derivada do suposto enfraquecimento da coesão social, e imaginam os espaços públicos requalificados como instrumentos capazes de contribuir para a reconstrução desta coesão e para o retorno a um “estado urbano normal” (1).
Ao associar a alteração dos espaços públicos aos princípios do restabelecimento da coesão social, o que pretendem de fato os “fabricantes da cidade” (2)? Que formas assumem os espaços concebidos sob estas premissas e que implicações, em matéria de urbanidade, podem ser verificadas? Posta nestes termos, a problemática exposta neste artigo trata das transformações urbanas sofridas pelos espaços públicos do conjunto habitacional Les Minguettes e, em particular, das diretrizes de pacificação urbana sobre as quais certas operações urbanísticas parecem se fundamentar.
Em termos de metodologia, optou-se pela construção de uma investigação duplamente qualificada, capaz de dar conta das diretrizes projetuais implementadas pela renovação urbana, mas também, e contrapondo-se ao ato da fabricação, de coletar informações sobre os “públicos urbanos” (3) para os quais os espaços públicos são destinados. Foram aplicadas técnicas de pesquisa documentária nos serviços da municipalidade de Lyon, bem como pesquisas quantitativas direcionadas à população do bairro, através de questionários estruturados (4). Inspirado em um aparelho conceitual preciso – Durkheim (5), De Certeau (6), Joseph (7) e Holanda (8) – este texto restitui enfim parte do corpus produzido em ume pesquisa de doutorado.
Do contexto de “crise da coesão social” (9) às razões pelas quais os fabricantes apelam para o espaço público na intenção de reativar estes laços, o texto apresenta inicialmente as principais bases teóricas que o norteiam. Na seqüência, convém abordar o estudo de caso, tomando por ilustração a transformação urbana empreendida no setor Armstrong. Os principais dados produzidos junto aos habitantes são então rapidamente expostos, abrindo espaço para algumas reflexões esboçadas à guisa de conclusão.
Crise da coesão social e política de renovação urbana
A questão da coesão social e, mais precisamente, a hipótese de sua ruptura “assombra” os responsáveis pela fabricação da cidade, que, para “exorcizá-la” (10), recomendam a reconstrução da coesão social a partir notadamente da requalificação dos espaços públicos urbanos: desta nova premissa, a política de renovação urbana francesa faz um verdadeiro credo.
Com efeito, através da lei relativa à Solidariedade e à Renovação Urbana (Lei SRU), de 13 de dezembro de 2000, são tomadas na França as primeiras providências visando à resolução do problema da crise da coesão social: a reestruturação urbana dos grandes conjuntos habitacionais, empreendida dentro do âmbito do Grande Projeto de Cidade (GPV) e das Operações de Renovação Urbana (ORU) passa fundamentalmente por demolições do conjunto edificado e reconstruções, mas também pela requalificação e reordenamento dos espaços remanescentes, ou ainda pela criação de novos espaços públicos. Pode-se dizer que, qualquer que seja o grau de intervenção na esfera construída, a interferência sobre o espaço público é inevitável: se, em um primeiro momento, as demolições massivas liberam espaço no solo urbano, em um segundo momento, através de redefinições espaciais ou de reconstruções, o espaço então liberado é submetido a mudanças de estatuto, a fim de ser reinvestido de outra maneira.
Dentro deste programa de renovação urbana, as formas edificadas não mais desejadas – as torres verticais e lâminas horizontais tipicamente modernas – são substituídas por novos tipos arquitetônicos, desenvolvidos uma escala dita mais “humana”, geralmente, com três ou quatro pavimentos. Os espaços públicos resultantes de tais transformações são, por sua vez, fragmentados, remodelados e têm seus uso e ocupação redefinidos, sendo, de fato, majoritariamente solicitados.
Espaços públicos: instrumentos da urbanidade
A expressão espaços públicos é particularmente visada pelos profissionais do urbanismo e representantes políticos, uma vez que este elemento da morfologia urbana é “sujeito e instrumento” (11), simultaneamente. De acordo com Charbonneau, trata-se de “um sujeito físico, [...] feito de formas, de materiais, de práticas, de modos de gestão, de elementos imateriais”, que, uma vez requalificado, pode se configurar como “um instrumento, destinado a uma melhor sociedade urbana” (12). Nestes termos, o espaço público urbano é considerado o dispositivo técnico cuja qualidade urbana é essencial à constituição dos lugares da vida urbana ou loci da urbanidade.
Convém ressaltar que, por “urbanidade”, entendem-se as relações de civilidade, de cortesia, permitidas e potencializadas por dispositivos técnicos de socialização presentes no meio urbano. Trata-se de uma lógica bi-dimensional de apreensão do conceito, para a qual Joseph contribui significativamente, sugerindo que os instrumentos dispostos no espaço urbano relacionam-se, interagem, em suma, confrontam-se a “disposições específicas adquiridas pelo cidadão” (13). Nos trabalhos de Holanda, o conceito de urbanidade aparece sob o termo “determinismo arquitetônico”, descrito como uma “situação relacional entre padrões físico-espaciais e expectativas sociais de muitos tipos” (14).
De fato, pela capacidade que os espaços públicos urbanos têm de oferecer possibilidades em práticas urbanas e de estimular o processo de acionamento de outros inúmeros objetos e usos, eles se encontram no cerne da questão da urbanidade e são, neste sentido, considerados instrumentos da urbanidade. No caso francês, os projetos de requalificação de espaços públicos são ainda mais abundantes quando situados em setores da cidade considerados difíceis e “sensíveis”. Tome-se, por exemplo, as diretrizes da renovação urbana de Vénissieux, cidade periférica pertencente à Grande Lyon e célebre pelas manifestações de revolta urbana. No documento, indica-se que a “distribuição de elementos de identidade coletiva, organizados nas grandes famílias de espaço”, assim como um “trabalho de reestruturação dos espaços públicos” podem instaurar as “condições de um retorno à normalidade urbana” (15). Na perspectiva proposta pela municipalidade, o espaço público requalificado seria menos o locus da urbanidade que o locus da “boa” urbanidade.
Sobre as razões de apelar para os espaços públicos para reforçar a coesão social
No raciocínio exposto pelos fabricantes em documentos urbanísticos – a exemplo do relatório supracitado – a concepção dos espaços públicos parece seguir uma lógica que associa qualidade de configuração físico-espacial e qualidade em termos de prática social. No caso dos grandes conjuntos habitacionais, a transformação empreendida pela renovação urbana apresenta-se como uma forma pragmática de ação: o projeto urbano não visa à constituição de uma cidade ideal, mas o início de um processo de mutação urbana suficientemente forte para alterar também os usos que se desenvolvem em seus espaços.
Os fabricantes admitem assim que os espaços públicos, enquanto dispositivos técnicos e espaciais, podem ser “portadores de valores coletivos” (16), capazes de autorizar, como também de invalidar, determinadas práticas e representações sociais. Segundo a Direção Geral do Urbanismo Habitação e Construção (DGUHC), trata-se de fato de “definir o estatuto de cada espaço, identificado por limites claramente definidos”, de maneira que “todo indivíduo [possa] reconhecer o estatuto e os usos autorizados dos lugares e perceber as responsabilidades a que eles remetem” (17).
Tratar de coesão social pressupõe, de certa forma, tentar definir o que aproxima e reúne os indivíduos, ou seja, as modalidades pelas quais se manifesta a solidariedade social, no sentido que Durkheim (18) confere a este termo. No entanto, ao abordar a restauração da coesão social por intermédio dos espaços públicos, os fabricantes aludem à reativação no espaço público dos elementos de composição urbana, capazes de lembrar aos públicos urbanos as modalidades de elaboração da solidariedade social e, em último grau, as condutas urbanas “aceitáveis” a se adotar. Os espaços públicos constituem, nesta perspectiva dos fabricantes, o lembrete das identificações normais à razão urbana, quiçá possíveis receptáculos de uma mensagem de pacificação.
A expectativa dos fabricantes é alta e não sem potencialidade de violência, afinal, é por parte da classe que o desenvolvimento urbano relegou (imigrantes, excluídos, marginalizados) que se espera a recomposição desta “almejada” coesão. Se a expectativa é alta, suas implicações no espaço também.
Estudo de caso: Les Minguettes e Armstrong
Situado ao Sul da cidade de Vénissieux, no Sudeste da Grande Lyon, o conjunto Les Minguettes é construído em 1965 com o objetivo de acolher, entre outros grupos, parte dos franceses provenientes da Argélia, então independente desde 1962. Ao todo, 58 torres verticais e 30 lâminas horizontais são realizadas sob a direção do arquiteto Baudoin (19). Símbolo francês da revolta social – desde, notadamente, os motins urbanos de 1981 e a Marche des Beurs, em 1983 – Les Minguettes é também um exemplo da recomposição urbana, considerando o conjunto de intervenções implementadas até hoje dentro do âmbito da politique de la ville. Atualmente com 21 000 habitantes, é igualmente uma das áreas de interesse social mais importantes da região metropolitana de Lyon.
Situado no centro do conjunto habitacional e estruturado por duas grandes avenidas, Armstrong por sua vez é um setor residencial, com apartamentos essencialmente em regime de locação social. O bairro é originalmente composto por cinco lâminas de quatro pavimentos, situadas em suas extremidades, bem como de três torres centrais com doze pavimentos. À exceção das edificações centrais, hoje desaparecidas por demolição, a área construída do setor encontra-se, no momento em que se inicia a política de renovação urbana, em estado físico relativamente bom.
Formados por pequenas praças e alguns campos de esporte, os espaços públicos do bairro Armstrong encontram-se, em contrapartida, em péssimo estado, atestando uma falta de manutenção evidente. Este estado de quase abandono dos espaços do bairro é resultado de anos de “canteiro”, uma vez que o setor é objeto de transformações urbanas profundas desde 2004, quando o GPV é então iniciado. Concebidos como “lucro espacial”, resultante do ordenamento setorizado e emergencial dos anos 1960, e não como áreas de valor e função afirmada, os espaços públicos do bairro Armstrong constituem verdadeiros “resíduos espaciais” (20).
Principais diretrizes de projeto
A falta de legibilidade comumente atribuída aos espaços públicos dos grandes conjuntos habitacionais é geralmente associada à complexidade da repartição espacial e dos limites de ocupação do solo destes setores. Com efeito, em seu diagnóstico, Antoine Grumbach, arquiteto / urbanista responsável pelo projeto de renovação urbana do conjunto Les Minguettes, atesta que o papel tradicionalmente estruturante dos seus espaços públicos foi destruído pelo “continuum” público provocado pela “supressão dos dispositivos de separação entre os espaços públicos e privativos” de maneira que “o espaço perdeu seus limites na descontinuidade das áreas edificadas, alimentada por sua vez pela homogeneização do espaço público” (22).
Na elaboração de sua proposta, Grumbach parte do princípio segundo o qual a recomposição dos usos do solo pode levar à mutação das ocupações dos lotes e afirma neste sentido que “as operações de demolição-reconstrução, associadas ao reforço da rede viária, poderão remediar à introversão e ao enclave dos bairros”, permitindo assim “um retorno à normalidade urbana de desenvolvimento” (23). O projeto compreende uma diversidade de intervenções, tais quais: retomadas e aberturas de novas vias; redefinições espaciais através de tratamentos, requalificações e recomposições paisagísticas; criação de parques de estacionamento e de novos caminhos, praças e jardins; reorganização dos espaços nas áreas térreas semi-privatizadas, etc.
A proposta de Grumbach para o bairro Armstrong confirma a importância dos espaços públicos no processo de transformação urbana dos setores mais “sensíveis” da cidade, mas não apenas. Ela deixa igualmente entrever a expectativa nutrida pelos fabricantes, no que concerne à possível modificação nos padrões de comportamento social. Desta disposição a produzir instrumentos concebidos enquanto instrumentos coercitivos, capazes de alertar os usuários sobre os usos e atividades esperados, resultam espaços públicos urbanos “hiper-programados” e “hiper-distintos funcionalmente” (25).
Diante da ação transformadora promovida pela política de renovação urbana, aqui ilustrada pelo caso do bairro Armstrong, convém questionar como se comportam os públicos a quem esta produção urbanística é direcionada: como são utilizados os espaços do setor? Como se desenvolvem as sociabilidades urbanas ou, ainda, o que dizer da coesão social?
Pacificação da cidade: a ineficácia em matéria de sociabilidade urbana
Os questionários produzidos para esta pesquisa fomentam um paralelo entre as mutações urbanas projetadas e os estados da atividade social observados.
Neste sentido, as investigações mostram que os “instrumentos” da esfera privada (residências, essencialmente) e da esfera pública (espaços exteriores ou lugares públicos) são investidos pela população entrevistada de modo similar durante seus encontros. A pesquisa revela ainda que os lugares de culto, de cultura, os lugares do convívio social ou ainda as associações são majoritariamente rechaçados, no momento em que os entrevistados procuram fazer novas amizades. Este último resultado remete às informações publicadas pela Delegação Interministerial da Cidade (DIV): com base na pesquisa “Vida de bairro”, a DIV afirma que os equipamentos urbanos recreativos e sócio-culturais são pouco freqüentados pelos habitantes das periferias, paradoxalmente confortavelmente equipadas em estruturas deste tipo (26).
Relacionado à “reserva” manifestada pela população, quando questionada sobre os atos de vandalismo registrados nos espaços públicos, este resultado sinaliza para a presença de um efeito “intimidante” na ambiência do grand ensemble e aponta para os impactos deste sentimento na mobilização dos objetos urbanos e nas práticas sociais dos habitantes do bairro. Pode-se afirmar que os espaços públicos analisados são objeto de usos pouco intensos e que estes usos só tendem a aumentar na medida em que as relações elaboradas no seio da esfera privada diminuem.
A prática pouco expressiva das atividades de lazer é igualmente uma informação reveladora, uma vez que existem parques verdes no seio do conjunto habitacional e que estes espaços são alvo de apreciações globalmente positivas por parte dos entrevistados. De fato, há uma imagem positiva comumente admitida pela população, no que diz respeito às áreas verdes do conjunto habitacional, no entanto, esta imagem parece não garantir a freqüentação dos espaços públicos por parte dos habitantes, que os qualificam de “agradáveis”, porém de “pouco estimulantes” ao desenvolvimento de suas socializações.
A enquête coloca ainda em evidência outra série de constatações. Se, por um lado, as atividades cotidianas se desenvolvem essencialmente no seio do bairro, no que concerne às atividades convivenciais, o conjunto é visivelmente abandonado em prol da utilização do centro da cidade. Ademais, uma parte importante dos entrevistados nega o exercício de qualquer atividade cultural no conjunto. Convém mencionar que o regime econômico constitui um fator determinante no consumo urbano e que seu caráter restritivo pode dificultar a integração urbana das populações e até limitar seu acesso à urbanidade. No entanto, as limitações desta ordem não constituem a única causa destas restrições e a falta de equipamentos apropriados às atividades de convívio social também deve ser considerada: com efeito, mais da metade dos entrevistados em Vénissieux estima que o bairro é sub-equipado em bares e restaurantes e uma parcela significativa (30%) sinaliza para a falta de bistrôs e cafés.
Pouco equipado em equipamentos urbanos que favoreceriam o encontro e a convivencialidade urbana, o grande conjunto habitacional Les Minguettes é, em contrapartida, largamente provido em estruturas escolares e administrativas, tais quais as agências postais e as diversas sedes dos serviços municipais.
Correlacionados, os resultados desta pesquisa permitem questionar as diretrizes de requalificação do conjunto habitacional e, sobretudo, as práticas observadas no conjunto em matéria de sociabilidade urbana. De fato, a qualidade espacial dos dispositivos técnicos proposta para os espaços públicos parece não garantir a mobilização dos mesmos por parte da população, nem muito menos estimular a coesão social entre os habitantes. A qualidade espacial, no entanto fundamental, parece ser insuficiente para contrabalancear as carências manifestadas em termos de disposições sociais e permitir aos habitantes do conjunto habitacional o pleno desenvolvimento da urbanidade.
Considerações finais
O papel de importância que assumem os espaços públicos na renovação urbana do conjunto Les Minguettes é confirmado, assim como a fraca adequação dos instrumentos do urbano às atividades de socialização. Isto se verifica pelo desequilíbrio entre a oferta abundante, até excessiva, de equipamentos do cotidiano e a insuficiência de instrumentos convivenciais, mas não apenas. As deficiências do setor também são insuficientemente levadas em consideração: de fato, as desigualdades sociais, as carências materiais, ou seja, as dificuldades vivenciadas pelas famílias entrevistadas, bem como o contexto “estigmatizante” (27) e pouco seguro do grand ensemble são particularidades apresentadas sob a ação pacificadora da renovação urbana, que, associadas, constituem um entrave à elaboração da urbanidade, ou, pelo menos, de uma urbanidade considerada “válida”.
Sobre este aspecto, deve-se colocar que, se algumas tentativas de formalização teórica do conceito de urbanidade remetem a “escalas de civilidade” expressas, de acordo com as circunstâncias sócio-espaciais, em maior ou menor grau, a acepção do termo enquanto “civilidade do convívio” é tratada por autores que lhe creditam, ao contrário, uma forte “dimensão ética”: neste sentido, Netto (28) propõe o reconhecimento, no conceito de urbanidade, de “modos de civilidade eticamente responsáveis”, invalidando, desta forma, as modalidades de urbanidade que consistem finalmente na mera reprodução do urbano e dos processos sociais decorrentes de sociedades mais hostis. A reflexão sobre a preponderância da dimensão convivencial da urbanidade assume aqui uma natureza controversa, uma vez que, apesar das altas taxas de criminalidade, das “disfunções” cujo teatro é o espaço público urbano (roubo de carros, incivilidades, etc.) e das constantes e violentas manifestações de revolta social, as enquêtes realizadas no conjunto habitacional sinalizam para expressões de solidariedade social entre os habitantes, a partir de “táticas” (29), que se desenvolvem na esfera privada, a fim de compensar as carências de um sistema social e associativo considerado ineficaz: com efeito, as relações sociais dependem menos de círculos associativos e/ou organizações governamentais do que de redes de solidariedade “paliativas” (30) livremente elaboradas no seio das comunidades. Os dados aqui explorados parecem, antes, apontar para a existência de relações e interações que seriam fruto de uma equação certamente desequilibrada, mas não menos legítima, entre disposições sociais e dispositivos técnicos e espaciais do urbano; em outros termos, de uma urbanidade que seria produzida nas relações entre “humanos” e “não-humanos” (31), embora não sancionada pelos fabricantes, pois distante de suas expectativas de pacificação urbana e, em última instância, de remissão social.
Os resultados apontam ainda que estas expectativas dos fabricantes a respeito dos espaços públicos produzidos pela renovação urbana e do seu papel preponderante no restabelecimento da coesão social constituem um profundo equívoco. As modalidades urbanísticas empreendidas pela renovação urbana do bairro Armstrong servem aqui de ilustração: com efeito, os projetos, concebidos sob o postulado do melhoramento urbano e da possibilidade de restituição das condições de solidariedade social, negam a complexidade das atividades sociais urbanas em benefício de uma fragmentação física e funcional dos espaços. Fundamentado na recomposição das quadras modernas em formas urbanas tradicionais, este partido urbanístico introduz o bairro estudado em um processo de evolução tipo-morfológica que parece se inspirar largamente do modelo haussmanniano de cidade. Este paralelo, assumidamente arriscado, não é sem conseqüências, uma vez que remete à renovação urbana de Paris, empreendida por Haussmann na segunda metade do século XIX e, portanto, a lógicas de planificação e concepção urbanas tecnocráticas e largamente criticadas. Este paralelo indica igualmente o desejo, implicitamente identificado nestas políticas, de promover um retorno a formas urbanas mais tradicionais, a solidariedades mais primárias e coesas, em outros termos, a uma urbanidade “legitimada” pelos fabricantes.
No entanto, na cidade, entendida como o lugar do encontro entre diferentes e desconhecidos, a coesão social é objetivada e corresponde ao funcionamento dos bens presentes em meio urbano e disponíveis a públicos urbanos, que estejam indistintamente aptos a usufruir dos mesmos: esta objetivação da solidariedade social é em parte responsável pelo processo de individuação e de autonomia urbana que torna possível a urbanidade. A este respeito, duas colocações merecem destaque. Primeiramente, ao transformar e alterar os usos do espaço público urbano, esperando instaurar condições suficientemente favoráveis ao retorno da “normalidade urbana”, os fabricantes “erram de alvo” e produzem espaços excessivamente especializados e fragmentados em múltiplas funções. Esta hiper-programação acontece em detrimento das práticas socais urbanas consideradas secundárias, pois menos “visíveis”: flâner, olhar, deambular sem objetivo preciso são exemplos de atividades menosprezadas neste quadro de hiper-programação, mas que são, no entanto, fundamentais ao desenvolvimento das sociabilidades urbanas (32).
Imprescindíveis para a elaboração da urbanidade, as sociabilidades urbanas se alimentam do acaso inerente à atividade social urbana não-programada, da experiência da diversidade, do aprendizado da tolerância, em suma, do conflito social que o espaço público tem a capacidade de promover. São estes ajustes realizados cotidianamente, que fazem a complexidade e riqueza do espaço público e que os fabricantes tentam, de maneira equivocada e contraproducente, antecipar. Por fim, percebe-se que a lógica de concepção urbanística que introduz no espaço urbano instrumentos coercitivos e pacificadores, desconsiderando, contudo, as deficiências em termos de disposições sociais e as limitações em matéria de urbanidade, tendem a produzir espaços públicos potencialmente ineficazes em matéria de sociabilidade urbana, pois incapazes de assegurar plenamente sua função social.
notas
NA
Artigo originalmente apresentado no I ENANPARQ e publicado nos Anais do evento: TRIGUEIRO, Marcele de Araújo Morais. A pacificação da cidade. “O caso dos espaços públicos do grand ensemble Les Minguettes, em Lyon (França)”. In: Anais do I ENANPARQ: Arquitetura, Cidade, Paisagem e Território: percursos e prospectivas (CD-ROM). Rio de Janeiro, PROURB, v. 1, 2010, p. 177-182.
1
VILLE DE VÉNISSIEUX. Convention particulière de la Ville de Vénissieux. Contrat de ville de l’agglomération lyonnaise 2000-2006. Lyon, Grand Lyon, 2000.
2
Os fabricantes são os agentes responsáveis pela fabricação da cidade: políticos, arquitetos e urbanistas, técnicos da municipalidade, etc. Cf: TOUSSAINT, Jean-Yves. Projets et usages urbains. Fabriquer et utiliser les dispositifs techniques et spatiaux de l’urbain. Lyon, Université Lumière Lyon 2 / INSA de Lyon, 2003.
3
Idem. Ibidem.
4
Pesquisas estas, desenvolvidas dentro do âmbito do Programa Europeu RESTATE (Restructuring Large Housing Estates in European Cities) e do Programa Ministerial HVU (Habitat et Vie Urbaine).
5
DURKHEIM, Emile. De la division du travail social. Paris, Presses Universitaires de France, coleção Quadrige, 6a edição, 2004.
6
DE CERTEAU, Michel. L’invention du quotidien. Arts de faire. Paris, Gallimard, coleção Folioessai, 1994.
7
JOSEPH, Isaac. Espace public, urbanité, citoyenneté. In JOLE, Michèle (org.). Espaces publics et cultures urbaines. Lyon, CERTU, coleção Débats, 2002, p.33-42.
8
HOLANDA, Frederico de (org.). Arquitetura & Urbanidade. São Paulo, Pro Editores, 2003.
9
WEINBERG, Achille. Lien social: crise et recomposition. In Sciences Humaines. n. 34, set/out/nov 2001, p. 58-61.
10
GARNIER, Jean-Pierre e GOLDSCHMIDT, Denis. La comédie urbaine ou la cité sans classe. Paris, François Maspero, 1978.
11
CHARBONNEAU, Jean-Pierre. Ménager toute la ville. In Urbanisme. n. 346, 2006, p.43-45.
12
Idem. Ibidem.
13
JOSEPH, op. cit.
14
HOLANDA, 2003, p.20.
15
Ville de Vénissieux, 2000, p.39.
16
Grand Lyon Communauté Urbaine. Plan de Mandat 2001-2007. Lyon, Grand Lyon Communauté Urbaine, 2001.
17
Direction générale de l’Urbanisme de l’Habitat et de la Construction. La résidentialisation. Quelle approche pour les DDE? Paris, DGUHC, 2002.
18
DURKHEIM, op. cit.
19
LEGRAND, Christian. Le logement populaire et social en Lyonnais 1848-2000. Lyon, Edition aux Arts, 2002.
20
PIRON, Olivier. Préface. In PICON-LEFEBVRE, Virginie (dir.). Les espaces publics modernes. Situations et propositions. Paris, Groupe Moniteur, coleção Architextes, 1997, p.8-9.
21
EFTENIE, V. Pratiques et usages de l’espace public dans les quartiers d’habitat social. Relatório técnico de estágio. Lyon, INSA de Lyon, 2004.
22
GRUMBACH, Antoine. Cahier des charges général. GPV Vénissieux, Les Minguettes. Lyon, Grand Lyon, 2003.
23
GRAND LYON COMMUNAUTE URBAINE. Ilot du Cerisier. Aménagement des espaces extérieurs: programme. Lyon, Communauté urbaine Grand Lyon, 2003.
24
GRUMBACH, Antoine. Cahier des charges général. GPV Vénissieux: Les Minguettes. Lyon, Etat / Grand Lyon / Ville de Vénissieux, 2003.
25
Cf. a este respeito: GERMAIN, A. La redécouverte de l’espace public: regards d’architectes et de sociologues. In TOMAS, François (dir.). Espaces publics, architecture et urbanité de part et d’autre de l’Atlantique. Saint-Étienne: Publications de l’université de Saint-Étienne, 2002, p.25-31 ; TRIGUEIRO, M. A. M. Éléments pour une prise en compte du rôle des espaces publics dans les grands ensembles. Les cas lyonnais de la Ville Nouvelle et des Minguettes. Tese de doutorado. Lyon, INSA de Lyon, 2008.
26
Délégation interministérielle à la Ville. Observatoire national des zones urbaines sensibles. Paris, Les Editions dela DIV, 2004.
27
GOFFMAN, Erving. Stigmate. Les usages sociaux des handicaps. Paris, Les Editions de Minuit, e1975.
28
NETTO, V. M. A urbanidade como devir do urbano. In Anais do I ENANPARQ: Arquitetura, Cidade, Paisagem e Território: percursos e prospectivas (CD-ROM). Rio de Janeiro, PROURB, v. 1, 2010.
29
DE CERTEAU, Op. Cit.
30
Paliativas, pois identificadas exatamente onde as maiores dificuldades existem e onde se propõem alternativas de compensação. Cf. TRIGUEIRO, op. cit.
31
RHEINGANTZ, P. Narrativas ou traduções de urbanidade. In Anais do I ENANPARQ: Arquitetura, Cidade, Paisagem e Território: percursos e prospectivas (CD-ROM). Rio de Janeiro, PROURB, v. 1, 2010.
32
GERMAIN, Annick. La redécouverte de l’espace public: regards d’architectes et de sociologues. In TOMAS, François (dir.). Espaces publics, architecture et urbanité de part et d’autre de l’Atlantique. Saint-Étienne, Publications de l’université de Saint-Étienne, 2002, p. 25-31.
sobre a autora
Marcele Trigueiro de Araújo Morais possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (2001), mestrado (2002) e doutorado (2008) em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto Nacional de Ciências Aplicadas de Lyon (INSA de Lyon, França). Adquiriu e solidificou os seus conhecimentos, com ênfase em Projeto do Espaço Urbano, Teoria do Urbanismo e Sociologia urbana. Atualmente, exerce as funções de professora Adjunto do Departamento de Arquitetura da UFPB e de Vice-coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Cidades, Culturas contemporâneas e Urbanidades (LECCUR/UFPB). É ainda colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil e Ambiental (PPGECA) da UFCG e pesquisadora associada da Equipe ITUS (INSA de Lyon), ligada ao Laboratório CNRS UMR 5600 “Ambientes Urbanos Cidade Sociedade”.