Crítica ao planejamento como estratégia hegemônica de poder
O ato de planejar implica na projeção e problematização do futuro, ele reflete e potencializa a ação humana, essa também, como nos lembra Santos (1), ancorada em objetivos, finalidades e em perspectivas de futuro e de transformação do meio. Além de mecanismo de segurança, como aponta Foucault, o planejamento urbano também se constitui em importante mecanismo de garantia de lucro com a urbanização. É o planejamento quem define as estratégias econômicas e territoriais de desenvolvimento urbano e, em alguns casos, os limites das possibilidades de lucro dos empreendimentos imobiliários (com a definição dos gabaritos e coeficientes de aproveitamento dos terrenos, por exemplo). Fernandes (2), destaca que historicamente a urbanização tem se apresentado como uma das estratégias centrais de acumulação de capital e aponta ainda uma crescente tendência de expansão das cidades por sobreposição ou densificação (3), de determinadas áreas da cidade. Muitas dessas áreas não são ocupadas justamente visando à incorporação da mais valia gerada por investimentos públicos pela especulação imobiliária.
Não por acaso, o planejamento urbano nas grandes cidades brasileiras vêm sendo cada vez mais pautado pelos interesses de investidores do ramo imobiliário, que admitem a necessidade de enquadramento nas regras do planejamento para regulamentação e implementação dos seus empreendimentos. A novidade que se apresenta (embora não tão nova, mas que se torna mais evidente no final do século passado) é que ao invés de se ajustar às normas estabelecidas pelo poder público ou de negociar com este a exceção ou a sua aprovação irregular (e essas práticas persistem e não apresentam sinais de esgotamento), esses investidores passaram a negociar a própria concepção das normas e diretrizes da cidade. Com isso, fica garantido o aumento dos seus lucros, seja pela ampliação da capacidade de construção, seja pela definição de vetores de expansão das cidades ou de ampliação dos perímetros urbanos dos municípios (4), ou mesmo criação de novos eixos viários estruturantes que conectem suas propriedades a áreas valorizadas da cidade. O aumento do lucro imobiliário passa a ser garantido pelo simples estabelecimento da norma ou, como na expressão popular, por uma simples “canetada”.
Esse talvez seja um dos motivos pelos quais os planos diretores urbanos venham se tornando cada vez menos diretivos e mais normativos. Com isso, ficam definidos nos planos diretores os coeficientes de aproveitamento da terra, aumento de gabarito, criação ou extinção de áreas de preservação ambiental, etc. Com isso, os investidores imobiliários garantem de uma só vez a realização dos seus interesses econômicos, que na prática significam estruturas construídas com tempo de vida útil na cidade de pelo menos cinquenta anos. Esse tipo de prática também potencializa a expansão urbana pela ocupação de vazios construídos – áreas construídas e abandonadas da cidade e tornadas obsoletas (5).
As grandes corporações, em especial as imobiliárias, figuram como agentes centrais desse processo de planejamento das cidades, que as veem como mercadorias e oportunidades para negócios (6). Elas descobriram nas cidades terrenos férteis para seus investimentos e têm se empenhado fortemente em interferir nas suas normas e nas estratégias para o seu desenvolvimento. Esse é o motivo pelo qual Fernandes afirma que “o campo de ação corporativa é urbano, mas é também urbanístico” (7). Com isso, a autora ressalta que a atuação das corporações passou a extrapolar o mero uso e apropriação (privada) do espaço urbano e de sua renda imobiliária, por meio da atuação direta dessas corporações na produção de grandes extensões urbanas (8).
Assim, a definição da ordem urbanística entra na agenda das corporações imobiliárias como ação estratégica de ampliação de investimentos. Uma rápida olhada no mapa de gabarito de alturas das edificações da orla de Salvador (9) permite verificar claramente a atuação de interesses específicos de investidores imobiliários em áreas já valorizadas da cidade.
O aumento da possibilidade de verticalização por si só já aufere lucro imobiliário ao proprietário do imóvel, que, na tal “canetada” vê seu imóvel valorizado. Essas definições são fruto de processos de negociação com empreendedores imobiliários e proprietários de terras na cidade, chegando ao extremo de definição de gabarito por lote, como se observa no caso do antigo Clube Português, na Pituba, que passa a ter seu limite de verticalização de até 54 metros e de um terreno na praia do Buracão, cuja capacidade de verticalização subiu para 30 metros e cuja ocupação deverá ser feita apenas para o uso de hotelaria.
No caso da Pituba, o Clube Português havia sido abandonado e possuía uma grande dívida tributária com a Prefeitura de Salvador, que acabou a executando na justiça e se tornando proprietária do imóvel. Os rumores da construção de um hotel de luxo e de alto gabarito no lugar do Clube geraram inúmeros protestos na mídia e por conta disso a prefeitura abriu consulta pública, pela internet, para definir qual o uso mais adequado para o imóvel. Entre as opões estavam o hotel, um oceanário e uma praça. A praça foi a opção mais votada na consulta e, por conta disso,foi transformada em praça, apesar de nunca ter seu uso convertido para uso de bem comum do povo, o que seria mais adequado, por tratar-se de um espaço público.
Fica evidente, portanto, a forte articulação das corporações imobiliárias com o poder público, porém, não no sentido da sua submissão às normas exigidas, nem na construção de cidades menos injustas ou mesmo de cidades saneadas e fluidas, mas no sentido da garantia da ampliação dos seus lucros imobiliários. Os gestores públicos municipais acatam as pautas e demandas desses investidores, seja em benefícios e acordos individuais, seja por acreditar (ingenuamente?) na possibilidade do investimento como motor de desenvolvimento do lugar.
Planejamento enquanto campo de disputa de poder.
Eventos recentes no processo de planejamento de Salvador lançam luz sobre a importância que o Plano Diretor assume na arrecadação de lucro imobiliário, que tem se caracterizado como principal definidora dos vetores de crescimento da cidade e dos investimentos nela realizada, tanto pela iniciativa privada como pelo poder público. A seguir, contaremos com alguns detalhes esses eventos recentes, bastante ilustrativos dos argumentos que buscamos defender, e tentaremos identificar as estratégias e mecanismos de poder utilizados pelos agentes envolvidos.
O caso recente do planejamento urbano de Salvador
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PDDU) de 2008 é a legislação que define as estratégias de desenvolvimento territorial de Salvador, bem como algumas das suas normas de ocupação do solo. As condições para sua elaboração foram iniciadas no final da década de noventa, quando a Prefeitura municipal, ainda na gestão do prefeito Imbassahy, contratou os primeiros estudos técnicos para seu embasamento. Esses estudos forneceram subsídios para a elaboração do PDDU aprovado em 2004 e que teve curtíssimo tempo de vigência. Ocorreu que após a aprovação do plano, o Ministério Público da Bahia moveu uma ação contra a prefeitura, exigindo sua revisão, alegando, além de incompatibilidades técnicas, a ausência de participação popular no seu processo de elaboração. Em 2005, o prefeito recém-eleito João Henrique assumiu o compromisso com o Ministério Público de revisão do PDDU de assegurar a participação da população em todo o processo.
A prefeitura promoveu então um extenso calendário de discussões do PDDU em diversos territórios de Salvador. Numa análise do processo de discussão do PDDU, que se deu na escala das Administrações Regionais (ARs) (10), Serpa (11) aponta, dentre os problemas que se revelaram no processo (12), que a escala das discussões não garantiu a representatividade dos ativismos e associações de bairro, por exemplo. Também a metodologia das audiências não facilitava a participação, pois quase todo o tempo programado para a audiência era dedicado às apresentações dos estudos técnicos desenvolvidos/contratados pela prefeitura, restando um reduzido tempo para colocações e apresentação de propostas.
E, as poucas propostas que conseguiram ser formuladas e apresentadas nas audiências, não foram incorporadas no texto do plano nem foram respondidas pela prefeitura. Observou-se, dessa maneira, um simulacro de participação social, que se propôs apenas a cumprir o rito exigido pelo órgão de controle do poder público. A votação do PDDU de 2008 mereceria um capítulo à parte. O plano foi votado em 28 de dezembro de 2007, com a aprovação de 159 emendas ao texto original – essas emendas e mais 144 haviam sido apresentadas no momento da votação, sem possibilidade de apreciação pelos vereadores (13). Ao fim de todo o processo, a Lei do PDDU de Salvador (Lei n° 7.400/2008) foi sancionada em 2008 e, de maneira geral, apresentava mais problemas técnicos do que aqueles apontados pelo Ministério Público em 2004.
Essas emendas resultaram no mapa de gabarito anteriormente citado, que se assemelha a uma colcha de retalhos. Representa a cidade retalhada pelos e para os investidores imobiliários. Fatos como esses auxiliam nossa compreensão das ações dos agentes do setor imobiliário nas definições das normas urbanas e reforçam o argumento de Fernandes de que a ação dos agentes do setor imobiliário é, crescentemente, urbanística.
A aprovação do PDDU gerou novas judicializações (14), mas ele continuou vigente até dezembro de 2011, quando o prefeito João Henrique conseguiu aprovar a chamada “Nova LOUOS” (15), que alterava a LOUOS e o PDDU de Salvador. Antes da aprovação dessa lei, o prefeito havia apresentado à Câmara dois projetos de Lei intitulados PDDU da Copa e Nova LOUOS, com o objetivo de alterar, respectivamente, os conteúdos do PDDU de 2008 e da Lei do Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo de Salvador de 1984. Mais uma vez, tensionado por entidades e movimentos sociais, o Ministério Público da Bahia (MP/BA) e o Ministério Público Federal (MPF) entraram com um pedido de liminar para impedir a tramitação do PDDU da Copa na Câmara de Vereadores (16). Essa liminar se amparava no Estatuto da Cidade, que estabelece que qualquer alteração no Plano Diretor, deve passar por amplo processo de participação popular, o que não ocorreu. O PDDU da Copa foi retirado da pauta da votação da Câmara por ordem judicial, mas, como estratégia para burlar a decisão da justiça, o prefeito apresentou novo projeto de Lei de alteração da LOUOS, com o conteúdo do PDDU da Copa. No entanto, em mais uma tentativa de golpe, a “Nova LOUOS” é aprovada (17) em dezembro daquele mesmo ano e sancionada em janeiro do ano seguinte, alterando o Plano Diretor, de forma absolutamente arbitrária (18).
A aprovação da Nova LOUOS despertou um grande sentimento de revolta e indignação em diversas pessoas, que se articularam pelas redes sociais, o que resultou em uma manifestação com a saída às ruas cerca de duas mil pessoas (19), que exigiam a revogação imediata da lei aprovada. A mobilização das pessoas nas ruas e a atuação vigilante do próprio MP/BA, bem como de entidades e organizações da sociedade civil, resultaram numa Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) (20). Alguns meses depois, o MP/BA conseguiu que o Tribunal de Justiça emitisse uma liminar (21) para suspensão de diversos artigos considerados inconstitucionais, especialmente os que alteravam o PDDU/2008. Na ADIn, diversas entidades representativas de classe e de movimentos sociais enviaram pareceres técnicos sobre o conteúdo da lei e seus prejuízos para a cidade, reforçando junto ao Tribunal de Justiça a importância de julgamento pela inconstitucionalidade da lei.
Diante da impossibilidade de implementação das novas regras de realização dos lucros imobiliários, o prefeito envia à Câmara de Vereadores que aprova dois novos projetos de lei que, juntos, possuíam exatamente o mesmo conteúdo do PDDU da Copa (22). Alertado sobre o ocorrido, o MP/BA pediu a suspensão imediata dessas Leis e as incluiu no processo de inconstitucionalidade que aguardava julgamento no Tribunal de Justiça da Bahia, que demorou cerca de um ano e meio para ser julgado (23). Antes do julgamento da Ação, o prefeito ACM Neto, recém-eleito, propôs a realização de um acordo com o MP/BA onde assumiria a inconstitucionalidade daquelas Leis, desde que fosse mantida a vigência de alguns dos seus artigos, considerados pelo gestor como fundamentais à garantia da “segurança jurídica” e à viabilidade dos projetos urbanísticos para a Copa do Mundo de 2014 (24). O MP/BA controversamente assina esse acordo com a prefeitura, juridicamente denominado modulação de efeitos da decisão de inconstitucionalidade (25). Esse acordo foi julgado em fevereiro de 2014 e aprovou alterações do PDDU e da LOUOS no que se referem à construção de Centro Administrativo Municipal no Vale dos Barris e regulamentação do Estudo de Impacto de Vizinhança.
Esse mesmo acordo assinado pela prefeitura e o MP/BA obrigam o município a aprovar um novo Plano Diretor no prazo máximo de 12 meses. Na página da sua agência de comunicação, a prefeitura se comprometeu à realização de um processo participativo e dentro do prazo definido em acordo.
Estamos elaborando um estudo amplo dos aspectos urbanos de Salvador, entendendo quais são as vocações econômicas das suas regiões, os impactos sociais do crescimento da cidade e projetar qual a Salvador que a gente deseja. Vamos encaminhar à Câmara de Vereadores no próximo ano um novo PDDU e uma nova Louos que contarão com a contribuição decisiva da sociedade. Nosso objetivo é que possam participar os principais atores da sociedade, que vai desde a liderança de bairro, das associações comunitárias, chegando às entidades de representação da economia, empresários, trabalhadores e meio ambiente (26).
Em primeiro de agosto a prefeitura promoveu a realização da primeira audiência pública da revisão do PDDU e da LOUOS, que agora se vê atrelada à elaboração de um plano estratégico (27) para o desenvolvimento da cidade até o aniversário de 500 anos da cidade de Salvador, em 2049. Para a audiência estavam previstas a leitura do Regimento Interno das Audiências Públicas e a discussão do Plano de Mobilização. Antes da leitura do regimento, que significava simplesmente a definição das regras de procedimentos de todas as audiências públicas de todo o processo, os participantes solicitaram que este fosse colocado em discussão e foram apresentadas diversas propostas de alteração (28), que foram acolhidas pela prefeitura, com a promessa de analisá-las e consolidá-las em uma versão final do regimento na próxima audiência pública (29). Com relação à discussão do Plano de Mobilização, o compromisso assumido foi de que seria realizada uma audiência pública, além das já programadas, para a discussão desse plano. Cerca de um mês depois de realização dessa audiência, a prefeitura publicou notícia no Diário Oficial que afirmava ambos os documentos haviam sido aprovados, desrespeitando completamente os acordos firmados entre os presentes.
O campo de disputa do planejamento urbano
Considerando o papel do planejamento urbano como instrumento definidor de investimentos públicos e privados nas cidades, e sua crescente disputa por parte de corporações e mesmo médios investidores imobiliários, não nos parece ingenuidade pensar que esse é um campo de relações de poder que merece ser disputado. Entender as lógicas que regem essa disputa e identificar seus mecanismos, como nos mostrou Foucault (30), nos parecem esforços fundamentais, para lançar luz a essa ferramenta de desenvolvimento urbano como um mecanismo de ação sobre a ação dos outros, ou seja, mecanismos de poder. Conforme este autor relata, esses mecanismos estão presentes em todas as relações humanas e operam muito mais por consentimento do que pelo uso da violência.
Os recentes acontecimentos da história do planejamento urbano em Salvador revelam um protagonismo quase que absoluto dos agentes imobiliários nas definições dos rumos de crescimento e investimento na cidade. Passados seis anos da aprovação do Plano Diretor de Salvador, vemos que muitas das suas definições não foram implementadas, especialmente no que se refere à garantia de direitos sociais expressos em políticas e diretrizes de desenvolvimento que se propunham a reduzir a pobreza e as desigualdades territoriais.
Muitas são as razões para esse fato, mas destacamos pelo menos duas: a primeira é que não se resolvem questões como pobreza e desigualdades sociais num plano municipal, essas são questões que extrapolam a escala local e por isso é ingênuo ou leviano fazer crer que um plano diretor tem o poder de transformação desses aspectos; segundo, as pressões e a atuação dos agentes interessados nesses quesitos do plano diretor, quais sejam, entidades de classe, movimentos sociais, universidades, organizações não governamentais, etc., não exercem nem contam com os mecanismos de pressão sobre o poder público que os investidores imobiliários possuem. Estes últimos têm logrado a garantia dos seus interesses (alterações das normas de construção e ocupação da terra, obras estruturantes, vetores de expansão da cidade), de modo geral, por intermédio de compra de votos do legislativo, financiamentos de campanha e repasses de desvios de recursos públicos (em obras estruturantes, contratos de execução de serviços ou concessões de serviços a entes privados) a gestores do executivo municipal. Esses são os mecanismos de pressão desses agentes sobre as ações dos poderes públicos municipais, todos intimamente ligados a transferências diretas e sem controle de recursos públicos aos próprios gestores municipais.
O que não se pode perder de vista é o campo mais ou menos aberto de possibilidades de ação dentro desse dispositivo de poder que é o planejamento urbano. Disputar esse campo e reagir conscientemente frente ao exercício de poder sobre si e sobre os outros é de fundamental importância para lançar luz a essas relações e causar-lhes instabilidade.
Últimas notas: sobre as estratégias de luta
Como se observou nesse resumido relato da história recente do planejamento urbano de Salvador, o processo de elaboração e implementação do Plano Diretor se assemelha a um folhetim com alguns capítulos e muitas emoções. Mas o que se observa, não por acaso, é um crescente interesse e investimento de agentes do ramo imobiliário na implementação e regularização de normas que favoreçam seus interesses particulares. Isso demonstra a importância do Plano Diretor como campo de disputa na cidade, uma vez que é esse instrumento que tem permitido e viabilizado a apropriação de lucros imobiliários cada vez maiores, o adensamento excessivo e irresponsável de determinadas áreas da cidade e a produção de vazios construídos e outras, e a expulsão ou permanência de bairros ou ocupações pobres na cidade. Claro que muitas dessas ações ocorrem às expensas do Plano Diretor, mas tamanho investimento dos setores imobiliários nos permite perceber a estratégia cada vez mais presente de legalizar e normatizar o lucro.
Dessa maneira, como disse Foucault (31) é fundamental que o outro, sobre o qual se exercem as relações de poder seja reconhecido como sujeito de ação e que ele seja capaz de responder e reagir a essas relações. A participação da população nos espaços públicos de debate e a presença das multidões nas ruas são estratégias cruciais para tornar essas relações e os conflitos por elas gerados visíveis, além de se contribuir para a afirmação do outro enquanto sujeito de ação.
O ato de resistir frente às relações de poder dos investidores imobiliários sobre a cidade e a vida dos seus habitantes é intrínseco a essas relações: “não há relações de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual” (32). Foucault também nos chama a atenção para o fato de que “cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder” (33) e nesse caso o foco é a apropriação da cidade por outras lógicas (de uso) que não as dos empreendedores imobiliários. Conforme afirmou Fernandes,
O urbanismo é social por definição e, portanto, incompatível com a sua redução à esfera privada. Sua forma democrática plural, crítica e propositiva já está em curso no Brasil, paralela e simultaneamente ao urbanismo corporativo. Embora numa conjuntura de prevalência acentuada e imperial do negócio sobre o direito, multiplicam-se as experiências e densifica-se o campo social e político do direito à cidade (34).
Está posto o desafio da construção de um planejamento urbano menos vertical, trabalhado de maneira horizontal, a partir das necessidades e desejos dos moradores das cidades, incorporando os conflitos inerentes às realidades de cada lugar. E os primeiros passos para esses tensionamentos e inversão de sujeitos já foram dados, desde os primeiros movimentos e ações sobre os processos de apropriação da cidade através do lucro. E a primeira inversão de poder, nesse caso, vem sendo colocados a partir da fiscalização e participação vigilante e do compartilhamento de informações antes privilegiadas. Para Foucault,
Se designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém tenha tido consciência disto, mas porque falar a esse respeito – forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo – é uma primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder (35).
Desse modo, estar atento às negociatas dos agentes imobiliários com o poder público, perceber os jogos de poder e denunciá-los nos meios de comunicação e, atualmente, nas redes sociais, participar de debates públicos evidenciando conflitos, acionar o poder judiciário (apesar de esta ser uma via extremamente tecnicista, meritocrática e politicamente esvaziada de conflitos e de diversidade), ocupar as ruas e sedes de instituições públicas e de grandes corporações e interferir, ainda que de maneira efêmera, na aparente tranquilidade da ordem instituída, são passos iniciais, porém fundantes do que Foucault chamou de inversão de poder, que, cremos, pode contribuir para profundas alterações nas relações de poder instituídas.
notas
1
SANTOS, Milton. 2004. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção, 4. ed, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo
2
FERNANDES, Ana. 2013. Decifra-me ou te devoro: Urbanismo corporativo, cidade-fragmento e dilemas da prática do Urbanismo no Brasil, In: GONZALES, Suely F. N., FRANCISCONI, Jorge Guilherme e PAVIANI, Aldo. Planejamento e Urbanismo na atualidade brasileira: objeto teoria prática, São Paulo, Rio e Janeiro, Livre Expressão
3
Idem
4
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador definiu como urbana toda a áreas do seu município, o que significou uma valorização instantânea das áreas antes eram definidas como rurais.
5
FERNANDES, Ana. 2013. Decifra-me ou te devoro: Urbanismo corporativo, cidade-fragmento e dilemas da prática do Urbanismo no Brasil, In: GONZALES, Suely F. N., FRANCISCONI, Jorge Guilherme e PAVIANI, Aldo. Planejamento e Urbanismo na atualidade brasileira: objeto teoria prática, São Paulo, Rio e Janeiro, Livre Expressão
6
VAINER, Carlos B. 2007. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano, In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, 4. Ed. Petrópolis RJ, Vozes.
7
FERNANDES, Ana. 2013. Decifra-me ou te devoro: Urbanismo corporativo, cidade-fragmento e dilemas da prática do Urbanismo no Brasil, In: GONZALES, Suely F. N., FRANCISCONI, Jorge Guilherme e PAVIANI, Aldo. Planejamento e Urbanismo na atualidade brasileira: objeto teoria prática, São Paulo, Rio e Janeiro, Livre Expressão, p. 88.
8
Os exemplos utilizados pela autora são a produção do urbanismo corporativo no Brasil, por meio da construção de bairros e até cidades inteiras planejados, apontando como casos emblemáticos as corporações Alphaville Urbanismo S/A, Cyrela, Odebrecht e JHSF.
10
As audiências públicas do PDDU em 2007, por recomendação do Ministério Publico da Bahia, foram organizadas territorialmente por Administrações Regionais, única unidade oficial de divisão territorial do município de Salvador.
11
SERPA, Ângelo. O Bairro como Discurso: limites e possibilidades. in SERPA, Ângelo (Org.) Cidade popular. Trama de Relações Sócio-espaciais. Salvador: EDUFBA, 2007.
12
Aqui o autor também destaca entre os fatores para a incipiente participação popular a tradição autoritária de planejamento e gestão públicos, e a “capacidade de ‘bloqueio’ dos diferentes lobbies” (SERPA, 2007, p. p. 39)
13
<http://atarde.uol.com.br/materias/imprimir/1254792>
14
<http://atarde.uol.com.br/materias/imprimir/1285255>
15
Lei N.º 8.167/2012
16
<http://m.ibahia.com/single-mobile/noticia/justica-suspende-tramitacao-do-pddu-da-copa-a-pedido-do-mp/> e <http://mp-ba.jusbrasil.com.br/noticias/2952321/acao-do-mp-busca-suspender-tramitacao-de-projeto-que-altera-pddu>
17
http://www.bocaonews.com.br/noticias/politica/politica/26675,camara-aprova-lous-quot-com-a-cara-do-pddu-quot.html>
18
A LOUOS é um instrumento que regulamenta o Plano Diretor e por esse mesmo motivo não pode alterá-lo – este só pode ser alterado mediante lei ordinária. Essas alterações, diga-se, visavam a atender a interesses imobiliários de diversos investidores e a uma demanda do Governo do estado, que havia pleiteado com o prefeito a alteração de padrões de uso e ocupação do solo, além da criação de uma zona específica de investimentos no entorno da Fonte Nova, em função da realização dos Jogos da Copa do Mundo em 2014.
19
<http://movimentodesocupa.wordpress.com/2012/02/02/grande-passeata/> e <http://movimentodesocupa.wordpress.com/2012/02/02/nascido-nas-redes-sociais-movimento-desocupa-ganha-forca-e-as-ruas-da-cidade/>
20
A Lei aprovada descumpria a Constituição do Estado da Bahia, que em seu Artigo 64 assegura a participação popular nos seguintes termos: “Será garantida a participação da comunidade, através de suas associações representativas, no planejamento municipal e na iniciativa de projetos de lei de interesse específico do Município“. Mais informações: <http://advivo.com.br/blog/josias-pires/a-inconstitucionalidade-da-nova-louos-de-salvador>
21
<http://mp-ba.jusbrasil.com.br/noticias/2976630/justica-atende-pedido-do-mp-e-suspende-tramitacao-do-pddu-da-copa> e <http://movimentodesocupa.wordpress.com/2012/05/24/lei-que-alterou-a-louos-deve-ser-declarada-inconstitucional-requer-o-mp-baiano/>
Para acesso à síntese da ADIn: <http://www.urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/TJBAAcaoDiretaenconstitucionaliade.pdf>
22
Leis nº 8.378/12 e nº 8.379/12
23
<http://atarde.uol.com.br/economia/materias/1540877-justica-declara-inconstitucionais-louos-e-pddu-de-salvador>
24
<http://mp-ba.jusbrasil.com.br/noticias/100492560/mp-e-prefeitura-formalizam-acordo-sobre-pddu-e-louos>
25
Esse acordo previa a vigência de inúmeras alterações nocivas ao desenvolvimento da cidade, como por exemplo, a alteração de coeficientes de aproveitamento máximo da orla atlântica e outras áreas da cidade, com a justificativa da necessidade de ampliação da rede hoteleira de Salvador para atendimento das demandas da Copa do Mundo 2014 e a construção da Linha Viva, via pedagiada exclusiva para carros de cerca de 18 Km de extensão.
26
<http://www.comunicacao.salvador.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=44104%3Anovos-pddu-e-louos-serao-elaborados-nos-proximos-12-meses&catid=57&Itemid=178>
27
O plano é denominado Salvador 500 e maiores informações podem ser acessadas pela página http://www.plano500.salvador.ba.gov.br/
28
<http://participasalvador.wordpress.com/2014/09/08/regimento-das-audiencias-que-irao-revisar-o-pddu-deve-garantir-mais-participacao-publica/>
29
A prefeitura prevê a realização de 14 audiências públicas em todo processo de elaboração do Plano Salvador 500 e da revisão do PDDU e LOUOS.
30
FOUCAULT, M. 1995. O sujeito e o poder, In: DREYFUS, H. & RABINOW, P. Michel Foucault, Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica, Rio de Janeiro, Forense Universitária.
31
Idem
32
Ibidem, p. 248
33
Foucault, Michel. Microfísica do Poder. 8ª edição, Rio de Janeiro, Graal, 1989
34
FERNANDES, Ana. 2013. Decifra-me ou te devoro: Urbanismo corporativo, cidade-fragmento e dilemas da prática do Urbanismo no Brasil, In: GONZALES, Suely F. N., FRANCISCONI, Jorge Guilherme e PAVIANI, Aldo. Planejamento e Urbanismo na atualidade brasileira: objeto teoria prática, São Paulo, Rio e Janeiro, Livre Expressão, p. 104
35
Foucault, Michel. Microfísica do Poder. 8ª edição, Rio de Janeiro, Graal, 1989, p. 75-76.
sobre a autora
Thaís de Miranda Rebouças é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBa, mestre em Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (2012) e bacharel em Urbanismo pela Universidade do Estado da Bahia (2006). Tem experiência na área de Urbanismo, com ênfase em processos urbanos contemporâneos, e é membro do Grupo de Pesquisa Lugar Comum/PPG-AU/UFBa.