Este artigo trata de Paredes Pinturas como uma poética da resistência ao fenômeno da alienação. A estética sendo a ética numa política pedagógica da desalienação do individuo alienado.
Paredes Pinturas é o projeto de Mônica Nador com base na pedagogia da técnica do estêncil.
O Jardim Miriam Arte Clube, Jamac, localiza-se no Jardim Miriam, bairro periférico da cidade de São Paulo, que, dentre outras atividades, desenvolve as aulas da técnica do estêncil. Basicamente o procedimento é o seguinte: Mônica ensina a desenhar uma estampa em estêncil resultando numa mascara que deverá ser impressa, como se fosse um carimbo, na superfície da parede sob um fundo preparado previamente. O desenho da estampa, assim como a escolha das cores, é do aprendiz.
Sair às ruas e pintar a cidade foi uma proposta de reação a Arte Moderna que, segundo Nador, tirou a arte das ruas isolando-a em espaços especializados como os museus e galerias de arte. Ao mesmo tempo em que a arte saiu das ruas ela passou a ser objeto de estudo e apropriação por parte de especialistas em arte. Desta forma, a manifestação artística se distanciou da vida cotidiana das pessoas comuns e se tornou propriedade privada do mercado da arte. O isolamento da arte, assim como a sua especialização (fenômeno que ocorreu em várias atividades humanas), inibiu o prazer da atividade criativa ao cidadão comum.
Historicamente foi no século 19 na cidade de Paris, quando da fundação do Louvre, que a arte foi retirada das ruas para ser confinada em museus e galerias. O homem moderno vive uma vida de alienações inspirada nas relações do trabalho da fabrica taylorista onde alguns pensam e outros fazem, alguns mandam e outros obedecem, alguns são especialistas nisso, outros naquilo... A lógica do trabalho alienado se espalhou para todas as atividades da produção cultural. Esse fenômeno ocorreu também para os espaços da cidade, pois a estratificação social desenhou, através dos especialistas em urbanismo, a estratificação espacial.
Nador propõe o prazer da fruição estética ao cidadão comum através do projeto Pinturas Paredes.
Fica claro a intenção de tirar o individuo de sua alienação restituindo-lhe o exercício de sua potencia criativa, tornando-o ativo, participativo e produtor de arte. A cidade, antes um espaço segregado em especialidades, agora é objeto de intervenção artística para quem quiser.
Nador mexe assim com o poder dos especialistas o que torna Paredes Pinturas uma política de resistência ao mundo da alienação. O objetivo é que todos possam fazer arte e ser artista.
Paredes Pinturas vê o cidadão comum como o artista e a arte fazendo parte da vida comum das pessoas. Desta forma a função social da arte se desloca do mercado para a vida nos seus espaços cotidianos; se desloca do museu para as paredes da cidade. A arte nesse sentido se dilui na vida e o artista é uma pessoa anônima, eliminando assim, o papel da autoria, pois a propriedade da arte agora é coletiva feita pelo coletivo. Pressupõe-se aqui a fruição estética como direito de qualquer individuo, e que o incentivo ao uso da criatividade seja um antidoto a alienação.
Desta forma, juntou-se aquilo que havia sido separado. Para que houvesse uma mudança na função social da arte a sua condição de propriedade privada teria que ser questionada no sentido de deixar de ser privada para ser coletiva. Não bastou para Paredes Pinturas que a arte voltasse para as ruas, ela precisaria ser produzida de forma coletiva para acabar com a noção de autoria. Nesse movimento de um processo produtivo feito pelo coletivo de forma cooperativa o sujeito deixa a condição de alienado diferenciando-se do especialista. Conceitualmente Paredes Pinturas pertence a história da resistência a exploração e especialização do trabalho. Historicamente essa resistência poderia ser localizada através de alguns exemplos, como, ainda no século 19, John Ruskin propondo o trabalho feito com prazer, ou, ainda no século 20, quando o movimento Situacionista se contrapôs a especialização dos funcionalistas, ou ainda, quando, no século 17 uma comunidade na África Negra produz a vida vinculada a sua fruição estética.
John Ruskin
Artista participativo? No florescer da Revolução Industrial na Inglaterra vitoriana artistas, operários e intelectuais questionam as relações de trabalho fabril ao expor a alienação causada pelas especializações. Nesse sentido, John Ruskin é emblemático.
A pesar da ideologia do Iluminismo ter privilegiado o pensamento cartesiano, nem todos os seus adeptos assim o foram. É neste círculo de intelectuais que se encontra John Ruskin, embora a crítica da arquitetura moderna o tenha desqualificado classificando-o de medievalista, neogótico e adverso a Revolução Industrial, ele na verdade estava imerso nas categorias do Iluminismo embora questionasse a ideologia da alienação.
Ruskin, assim como os demais ideólogos do Iluminismo, enxergou os fenômenos naturais como detentor de uma lógica que pudesse ser conhecida e imitada pelo homem, pois essa lógica, que seria, segundo Ruskin, uma ética levaria a noção de equilíbrio, de harmonia, de ordem, coisa que a sociedade moderna não possuía. O papel do artista seria através do desenho expor essa lógica para o homem que não a vê. Nesse sentido a Natureza é origem para todos as áreas do conhecimento. A Natureza, por princípio, segundo Ruskin, teria uma lógica que seria uma ética pela qual tudo se relaciona numa convivência de harmonia de acordo com a política da ajuda mútua. Sob essa ética Ruskin criou sua noção de estética cuja problemática seria: como sentimos a ética natural no espaço?
Da qualidade estética, Ruskin extraiu dois importantes conceitos para a arquitetura: a Verdade das Estruturas e a Verdade dos Materiais. Para Ruskin, o fenômeno estético é a qualidade de sentir o espaço, mais precisamente o fluxo das energias que o compõem. A estética arquitetônica é o desenho das energias que incidem sobre o edifício. Para construir esse seu conceito, Ruskin considerou o desenho dos elementos estruturais que controlam esses fluxos, absorvem, conduzem, redirecionam e transmitem as energias que incidem sobre o edifício que assim pensado se tornam para ele linhas de forças. A chuva, a neve, os ventos, o peso próprio da construção, o peso das pessoas, enfim, as forças naturais e artificiais materializam-se em desenhos de linhas de forças. Ruskin exemplificou o seu conceito de Verdade das Estruturas pelo desenho da arquitetura gótica, na qual a “ossatura” da edificação se expõe à visão do observador. O sistema estrutural é visto sentido e compreendido, justamente o que dá sentido a essa concepção de estética. O desenho do gótico exemplificou sua noção de estética arquitetônica, assim como a de Verdade das Estruturas. E por que arquitetura? Porque a arquitetura, para Ruskin, faz parte da paisagem natural. Embora seja o desenho de uma paisagem artificial, a arquitetura deverá compor com os demais elementos da paisagem natural sem se opor ou se sobrepor, mas conviver em harmonia. Percebe-se aqui uma metafísica por trás do raciocínio ruskiniano a emergir de uma Filosofia da Natureza: metafísica que entende a Natureza como uma composição de elementos em movimento como se fizessem parte de uma grande máquina cujas peças funcionam de acordo com certas leis (Leis da Natureza), em busca de um estado de harmonia ou equilíbrio de ordem.
Outro conceito ruskiniano é o da Verdade dos Materiais, que, além de se referir às questões da qualidade idiossincrática de cada material possui estreita relação com a noção de tempo. O conceito de Verdade dos Materiais diz respeito às particularidades idiossincráticas de cada material. Quando Ruskin se refere a uma pedra de mármore, por exemplo, indaga sobre sua constituição geológica, origem geográfica, quanto trabalho foi necessário para extraí-la, quanto trabalho para modificá-la, quem foi responsável por esses trabalhos, quais as técnicas que utilizou. Ruskin evoca e resgata um passado para um presente pensando no futuro. Ele acredita que não existe espaço sem história assim como não existe espaço sem tempo. Quando o tempo se apaga, o presente perde o vinculo com o futuro. Por isso Ruskin foi contra demolir edifícios antigos.
William Morris, aluno e admirador de Ruskin, no prefácio de A Natureza do Gótico, capítulo de As Pedras de Veneza, publicado pela Kelmscott House (editora de Morris) em 1892, celebrou esta como uma das maiores obras já publicadas naqueles tempos, indicadora de um futuro para o trabalho com prazer.
Para Ruskin, o trabalho feito com prazer é o trabalho no qual o homem se envolve por completo, de corpo e alma, uma critica a divisão do trabalho onde alguns pensam e outros fazem.
A humanidade vem aperfeiçoando a divisão do trabalho, no entanto tem dado a ela um nome falso, pois não foi o trabalho apenas que foi dividido, mas o homem foi dividido em segmentos de homem, quebrado em fragmentos de vida, exigindo que sua inteligência realize trabalhos repetitivos sem o menor interesse (1).
A divisão das artes em liberal e mecânica foi por Ruskin contraposta pelo pensar que faz e pelo fazer que pensa.
Hoje em dia separamos quem pensa de quem faz, e chamamos quem pensa de cavalheiro e quem faz de operário; no meu entender, quem pensa deveria também fazer e quem faz deveria também pensar, e todos deveriam ser chamados de cavalheiro (2).
Ruskin propôs um modo particular de relacionamento para o processo produtivo da arquitetura, sendo o Arquiteto Participativo diferente do renascentista que separou o pensar do fazer. Ruskin propõe um arquiteto que convoque os participantes do processo produtivo para redesenharem suas primeiras ideias, seus primeiros croquis. Na participação de pedreiros, azulejistas, eletricistas, engenheiros e demais envolvidos surge uma criação coletiva. Não se excluiu o arquiteto do processo, apenas o torna coordenador de um processo de cooperação. Esse tipo de arquiteto se adequa aos princípios da Ética da ajuda mútua da Filosofia da Natureza ruskiniana. A autoria aqui seria vista como coautoria e o trabalho seria feito por um coletivo sem hierarquia de comando.
Os situacionistas
Outra experiência critica ao fenômeno da alienação foi a da Internacional Situacionista.
As vanguardas clássicas, Dadá e Surrealismo, delineariam dois caminhos distintos dentro da produção cultural do pós-guerra. O primeiro seria o mainstream que tomaria a vanguarda do século XX como mero fenômeno estético e inclui os movimentos facilmente identificáveis nos livros de história da arte, totalmente afundados dentro da indústria cultural. O segundo, com aspecto clandestino, iconoclastas. Esta segunda linhagem inclui o Cobra, Arte Nuclear, a Bauhaus Imaginista, a Internacional Situacionista em sua fase "heróica" (1957-1962), Fluxus politizada, Arte Autodestrutiva, Provos, Panteras Brancas, Mail Art, Punk Rock, Neoísmo e derivados, além de projetos de mídia tática, guerrilha psíquica e cultos anarquistas contemporâneos.
A "linhagem" da arte burguesa aprofundou-se no mercado da arte. Stewart Home (1999) teoriza que a vanguarda clássica (Surrealismo e Dadá) falhou porque foi incapaz de realizar um salto crucial em direção a questão central da economia marxista: a percepção de que, tendo sido a cultura transformada em bem de consumo, o ataque a instituição da arte desenvolve a crítica das relações de bens de consumo (Universidade invisível, Esmagando o Espetáculo, Coletivo Sabotagem).
A Internacional Situacionista (IS) foi um grupo de cunho artístico-político dos mais fronteiriços dentro da esquerda no século 20. Criada em uma conferência em julho de 1957, na região de Cosio d’Arosia, Itália, a partir da fusão de três grupos: a Internacional Letrista (Guy Debord e Michelle Bernstein), o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (Pinot-Galizio e Asgern Jorn este ex-integrante do Cobra) e pela Associação Psicogeográfica de Londres (Ralph Rumney).
A questão central da crítica situacionista é o Espetáculo, que em linhas gerais pode ser definido como a redução imposta pela sociedade de consumo, do indivíduo a condição de mero espectador que apenas observa a vida ao invés de tomar as rédeas dela.
A IS passou por duas fases. Em sua primeira fase, que durou até o início da década de 1960, seus esforços foram dirigidos para os campos da arte e da cultura, e por consequência disso, a arquitetura e o urbanismo estavam no topo de suas prioridades na época. Tal dedicação se devia ao reconhecimento do papel de mercadoria que a cultura assumiu no capitalismo tardio e de uma consciência de que uma revolução apenas no modo de produção não seria capaz de transformar a vida das pessoas, era preciso que o homem se aproximasse das suas reais necessidades. Para atingir esse estado necessário de desmecanização da vida cotidiana os situacionistas elegeram a cidade como campo para os seus jogos, enxergando o prazer como fonte de libertação. O Funcionalismo, que teve na década de 50 difusão e expansão espantosas era um dos principais alvos de sua crítica, já que a padronização imposta por esse modelo, não levava em conta os aspectos psicológicos e sentimentais envolvidos na construção do lugar. Em diversos pontos tal crítica caminhava em ponto de convergência com os críticos do projeto moderno na época, no entanto, ao contrário de seus contemporâneos que adotaram uma postura apolítica, os situs mantinham uma leitura marxista do espaço enquanto construção social, portanto de natureza revolucionária e transformadora.
Na medida em que as inquietações políticas do grupo foram crescendo, a arte foi sendo deixada de lado e substituída pela ação, em 62 os artistas são excluídos do grupo que passa a ter maior afinidade com o Socialismo ou Barbárie. A IS atingiu seu auge nos eventos que levaram as revoltas de maio de 68 na França e seus membros tiveram participação ativa nos conselhos de ocupação, seguida por sua final dissolução.
Antes de mais nada é preciso ter uma coisa em mente, como anunciado no primeiro número da Internationale Situationniste: “ É impossível existir uma pintura ou uma música situacionista. O que pode ocorrer é uma utilização situacionista destes meios. Numa acepção mais básica, o detournement no interior das antigas esferas culturais constitui um método de propaganda, testemunhando o desgaste e a perda de importância dessas esferas”. Pelo dicionário detournement deve ser traduzido como “desvio”, “roubo” ou “rapto”. O desvio situacionista em si é um desvio do conceito cunhado por Issou, aproximado do sentido concebido por Lautremont: um método que consiste em tomar as coisas dos inimigos, para montar outra coisa contra o inimigo. Uma das ações de desvio mais recorrente entre os situs era tomar histórias em quadrinhos americanas e substituir os balões por textos revolucionários. “Subversão é um jogo possível pelo fato das coisas poderem ser desvalorizadas” (3), “cada elemento da cultura passada pode ser reinventado ou fragmentado” (idem), e Debord ainda acrescenta: “Os dois princípios básicos da subversão são a perda de importância de cada elemento originalmente independente (o que significa a perda completa de seu sentido original) e a organização de um novo significado que confere um sentido vivo a cada elemento”.
As vanguardas clássicas (Dadá, Surrealismo), deram início ao pensamento de superação das artes, tendo como motor o progresso técnico, norte este também adotado pela IS em sua primeira fase, no entanto essas mesmas vanguardas não abandonaram a figura do artista enquanto gênio individual, tornando sua produção alvo de uma contemplação passiva, facilmente transformada em mercadoria absorvida pelo capitalismo tardio.
A principal questão da crítica situacionista é o Espetáculo, grande responsável pela alienação da vida cotidiana. Os situs enxergavam no cotidiano o verdadeiro potencial revolucionário. A desmecanização do cotidiano só seria possível através da construção de situações, a situação construída seria então “um momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos” (4). Essa tese em muito se assemelha a defendida por Henry Lefebvre, de uma construção de momentos. A situação construída poderia ser entendida como um desenvolvimento do pensamento lefebvriano: “O que você chama de momentos, nós chamamos de situações, mas estamos levando isso muito mais longe que você. Você aceita como momento tudo que ocorreu na história: amor, poesia, pensamento. Nós queremos criar momentos novos” (5).
Para a IS, o cotidiano seria a fronteira onde nasce a alienação, mas onde pode crescer também a participação, tendo como objetivo principal, uma revolução cultural contra a banalidade cotidiana. Sendo assim, a cidade seria o cenário material da vida, um objeto que não deveria apenas ser estudado e sim modificado, uma unidade espaço-temporal representada pela relação cidade-vida cotidiana, que apresenta uma condição dialética de alienação-desalienação. Essa consciência crítica seria o próprio urbanismo unitário (UU), definido como “teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento” (6). Dentro desse conjunto de artes e técnicas encontram-se a deriva: “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas” (Idem), e a psicogeografia que seria definida como o “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos.” Tais ideias eram diametralmente opostas ao modelo de cidade aplicado na reconstrução das cidades europeias efetuada pelos funcionalistas. Contra a padronização do espaço urbano, bradava Vaneigem: “Se o planejador urbano não pode conhecer as motivações comportamentais daqueles a quem vai proporcionar moradia nas melhores condições de equilíbrio nervoso (...). Se os nazistas tivessem conhecido os urbanistas contemporâneos, teriam transformado os campos de concentração em conjuntos habitacionais”. Para eles o “único papel da arquitetura é servir as paixões dos homens” (texto coletivo).
Analisando a história da arte e da arquitetura num contexto geral, a década de 60 foi marcada como um período de revisão dos seus papéis. Diversos grupos chegaram a uma conclusão parecida de que faltava o elemento humano dentro daquilo que havia sido produzido até então, crítica que entrava, até certo ponto, em sintonia com as prerrogativas do urbanismo unitário, inclusive, membros do próprio Team X, trabalharam em conjunto com Jorn e Constant. Porém, a crítica situacionista, ao modernismo em fase de decomposição, se diferenciava da elaborada pelos que seriam chamados de pós-modernos no sentido de que a IS encarava os fenômenos urbanos e arquitetônicos de modo político, na medida em que seus contemporâneos se afastavam cada vez mais deste campo. O resultado desta arquitetura pode ser observado na espetacularização das nossas cidades. Das mega-intervenções que só servem para instaurar o fenômeno de gentrificação. Espaços de frivolidade, violência e alienação.
O otimismo perante a ação, uma de suas posturas mais marcantes, se faz necessário e deve ser revisitado em tempos tão mornos e monótonos como o nosso. Nossas cidades se vendem como uma mercadoria qualquer, e a cultura passa a ser também um meio de exclusão espacial. E a busca pelo perigo das ideais se faz ainda mais necessária diante da apatia corrente no espírito de nossa época.
“A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio ativo do espetáculo: a não participação. A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores, O papel do público, senão passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores, mas num sentido novo do termo, vivenciadores” (7).
África negra, o banto
Para além das experiências internas ao capitalismo que propõem o fim da alienação existiu no século 17 na África Negra uma experiência de vivencia social com base na não separação entre a experiência estética e a vida cotidiana de seus habitantes.
Banto, que hoje designa uma área geográfica contígua e um complexo transcultural dentro da África Negra é também uma palavra carregada de significados específicos para os povos que compõe este grupo étnico. Segundo estudos linguísticos recentes realizados pelos pesquisadores Greenberg e Guthrie, a palavra denuncia algumas acepções imediatas, como “homem” e “filhos do Diabo”. Partindo da análise da obra La Philosophie Bantoue, do padre e missionário Placide Tempels, escrito na década de 1930 – que, para saber, em conjunto com as obras Usos e Costumes Banto, volumes I e II, de Henri Junod, compõe grande parte dos registros sobre a filosofia e os costumes deste grande grupo étnico – podemos encontrar na raiz da palavra Banto heranças dos estudos linguísticos ocidentais, questionando o real significado da palavra, bem como de suas subsequentes atribuições valorativas por estes povos.
Importa dizer que, aos olhos dos colonizadores portugueses, britânicos e holandeses, Banto era considerado como “o conjunto das raças incultas”, ou ainda, como o homem-animal, primitivo e selvagem, que não teria a propriedade de pensar e sentir. Ainda que Tempels ou Junod tenham se esforçado para produzir uma etnografia dentro da concepção de vida e filosofia Banto, tais publicações foram severamente refutadas pelo classicismo eurocêntrico do período.
Os mitos sobre a origem destes povos (mbundu, kimbundu, umbundu, luanda) nos ensinam que todos eles, atualmente com identidades distintas, foram inicialmente criados e estabelecidos por linhagens de parentesco muito próximas, entre primos, tios, pais, mães e irmãos. No âmbito do universo mítico a história dos povos Banto começa no Império Luba, localizado hoje entre o centro e o sudeste do Zaire, por volta de fins do século 15. Segundo uma das versões do mito, contada pelo professor, pesquisador e antropólogo Kabele Munanga, esse império era governado por Kalala Ilunga Mbidi, cuja morte revelou conflitos de sucessão entre seus filhos herdeiros. Um deles, tido como o perdedor, Kimbinda Ilunga, partiu com seus seguidores em busca de um novo território. Ao se estabelecerem, longe dali, em um novo pedaço de terra, descobriram que o rei do grupo havia morrido. Sem nenhum sucessor homem para ocupar o trono, sua filha, Rweej, foi coroada rainha. Encantada pela beleza do príncipe caçador Kimbinda Ilunga, a rainha o pede em casamento, gerando novos descontentamentos por parte de algumas camadas da população. Kilungi, irmão da rainha Rweej, descontente, parte com seus simpatizantes para o Oeste, onde já se encontravam situados os povos jaga de Angola. Vindos das margens direita do rio Kwango, antes de 1568, tratava-se de um povo que vivia em permanente “pé-de-guerra” em campos extremamente fortificados com uma sociedade voltada especialmente para a pratica guerreira. O próprio Kilungi ter-se-ia aliado aos poderosos bandos jaga a fim de dominar toda a região através de um processo marcado por fusões, mestiçagens e intensa mescla cultural.
Assim, o nascimento ou surgimento dos povos Banto no centro-sul da África Negra teve como ponto de partida a capacidade de se espalharem por toda a região depois de 1610, onde finalmente se estabeleceram a fim de fundar novos estados. Sociedade guerreira, os Banto (resultado de fusões entre povos mbundu, kimbundu, entre outros, com os povos jaga de Angola) se configuram principalmente a partir de uma estrutura pluricultural que tem dois grandes pilares norteadores de sua cosmogonia: o conceito de força vital e o conceito de teia ou interação das forças vitais. Sua base de organização social se da a partir do sistema de parentesco matrilinear em relação à descendência, estrato social, sucessão e heranças.
A ideia central da cosmogonia Banto, ou ainda, filosofia, é essencialmente a teoria das forças, noção dinâmica na qual, para o africano de origem Banto, “o ser é força”, não apenas no sentido de que ele possui força, mas no sentido de que ele é a própria força. Quando o é, jamais é sozinho, pois encontra-se amparado pelo poder do cosmos, seguindo-se amparado de seu meio natural e social, não sendo portanto apenas uma realidade ou um estado de espírito, mas um valor para si mesmo e para todo o grupo.
Portanto, por serem tradicionalmente constituídos pela união e fusão de povos guerreiros da África Central e Centro-Sul, o esforço do africano Banto está em aumentar a sua “força vital” através do segundo princípio norteador de suas relações sociais e filosofia de vida: o conceito de teia ou interação das forças vitais mencionado acima. Para o indivíduo Banto, não há separações rígidas entre história, memória, política, ciência ou religião. Os aspectos da vida social e da natureza estão integrados, ou seja, não há fragmentações entre conhecimento, território, educação e produção. Para o povo Banto, o cosmos africano se configura na unidade matricial e os territórios são unidades menores que nele se inscrevem de forma dependente e interligada. Os territórios constituem-se pela identidade, que é estruturalmente etnocêntrica, na medida em que o indivíduo se define devido à sua integração em um grupo (o que nos revela conceitos importantes como descendência e ancestralidade). Em seu livro Soul of Darkness: Introduction to African Metaphysics, Philosophy and Religion, David Canney faz observar uma série de não divisões entre as capacidades inteligíveis do indivíduo Banto, tais como as noções de trabalho e sentimento e suas relações com os conceitos de força vital e interação das forças, que de modo geral norteiam as relações sociais que se desenrolam dentro dessa sociedade. A partir do conceito da Interação das Forças, o indivíduo se relaciona com suas atividades cotidianas de modo a entregar-se, por exemplo, como afirma Canney, ao aqui e ao agora. Dessa forma, continua Canney, no caso dos foli, sub-grupo étnico que deriva do grande grupo Banto, ao se dedicarem à fundição do metal para a produção de suas ferramentas, as cinco etapas as quais se dedicam para chegar no produto final são organizadas e executadas de maneira rítmica. Ao forjar o metal, a forja produz um “barulho”, bem como as outras quatro etapas seguintes. Assim, no decorrer da produção de um tambor, por exemplo, é produzida como consequência uma música, um ritmo e que não é necessariamente é um ritmo registrado posteriormente, fazendo parte somente daquele recorte de tempo dentro daquela atividade desenvolvida. Essa lógica se propaga ainda para todas as demais atividades da tribo, como arar a terra, pilar a mandioca ou mesmo ao erguerem suas Cubatas (moradias em círculo).
Desta forma constatamos que o indivíduo do grupo Banto (que, importa dizer, nunca é indivíduo sozinho) procura agir em parceria com poderosas forças cósmicas disseminadas pelo universo – o conceito de força vital, portanto, é indispensável para compreensão do sentimento de plenitude que integra o africano de origem Banto ao seu meio natural e social. O território, dessa forma e por último, define-se pela relação que sustenta a sua história e que se exprime não só pela presença dos espíritos antepassados, mas pela acumulação de sinais marcadores, alguns criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, outros criados e recriados no imaginário do indivíduo e da sociedade. A partir daí, portanto, além do conceito de força vital ser imprescindível para a compreensão da cosmogonia Banto, é revelado o conceito de “teia” a partir do qual o indivíduo Banto se relaciona com o mundo, com a natureza e com o seu próximo. Para o indivíduo Banto, a terra pertence primeiramente aos mortos, depois ao mundo natural e a tudo o que nele está inscrito, e, por último, ao homem. Sendo assim, o homem é parte constituinte de uma teia dependente e intimamente ligada, onde, como diz Tempels, “não é possível que se toque qualquer parte desta teia, por menor que seja, sem fazer-se vibrar todo o resto dela”. De modo geral, entendemos que a força vital do indivíduo Banto está atrelada à força vital dos demais indivíduos que constituem a sociedade Banto, isto é, o bem estar de um indivíduo que compõe este grande grupo étnico está intrinsecamente ligado ao bem estar de seu próximo pelo segundo princípio norteador ao qual nos debruçamos acima, o princípio da Teia ou Interação das Forças Vitais. Deste modo podemos concluir que um indivíduo inserido dentro desse grupo jamais é forte, ou é fraco, sozinho, de modo que está sempre amparado, em primeiro lugar, pelos mortos, em segundo lugar, pela natureza e, em terceiro lugar, pelos seus próximos. É assim que, de modo geral porém não cristalizado, o indivíduo de origem Banto se comunica com o mundo dos mortos, o mundo natural, o mundo artificial e com ele mesmo e seu próximo. O indivíduo Banto ao tornar-se forte, além de tornar todos os seus próximos também mais fortes, entende que esta força muda completamente a essência de sua natureza humana, isto é, a capacidade de transformação de sua natureza é latente e acontece paulatinamente, em conjunto com a capacidade de transformação de seus próximos. Tempels atribui a rápida expansão dos povos bantos na África Central, principalmente, por essa forma de se relacionar com o mundo e com eles mesmos, na medida em que a união e fusão de seus costumes e a capacidade de transformação aliada ao conceito de “Teia” – o que Tempels chama de “altruísmo” – foi o que os conduziu primordialmente para o êxito e consequente domínio da região Centro-Sul da África Negra. Importa dizer que a Interação das Forças Vitais ou Teia não seria apenas uma interação física, química ou mecânica para o indivíduo de origem Banto, mas da mesma ordem que a relação Metafísica liga a criatura ao criador. Isto é, essa interação ocorre principalmente a partir de uma força cósmica cuja, nessa estratificação, encontram-se por ordem: Deus, Espírito e Criador. A seguir, vem os mortos, que são os intermediários através dos quais se exerce a influência das forças mais velhas sobre as gerações seguintes. Ainda, após, segue-se o mundo natural e tudo aquilo que nele está inscrito e, finalmente, na base da pirâmide, vem as forças inferiores – o Homem.
Considerações finais
Como se viu, a separação entre as atividades humanas que deu sentido a ideologia da alienação foi motivo de contestações interno a própria história do capitalismo, como no caso de John Ruskin e dos Situacionistas. Mas nem sempre foi assim como se viu no caso da sociedade dos Bantos, o que nos faz pensar ser o fenômeno da alienação inerente a sociedades com base em políticas de exploração do homem pelo homem. No entanto, de tempos em tempos as contradições desta sociedade faz emergir questionamentos como no caso de Paredes Pinturas que restitui o fazer e a apreensão estética ao individuo comum.
notas
1
RUSKIN, 1853, p. 165.
2
RUSKIN, 1853, p. 265.
3
JORN 1960.
4
IS nº 1, jun. 1958.
5
Lefebvre on the Situationnist: na Interview, in October n º 79, MIT Press, 1997.
6
IS n° 1, jun. 1958.
7
DEBORD, 1957.
bibliografia complementar
AMARAL, Claudio Silveira. John Ruskin e o ensino do desenho no Brasil. São Paulo, Editora Unesp, 2011.
BARRY, Laurent. La Parenté. Paris, Idio Essais, 2009.
CRITICAL ART ESSEMBLE. Distúrbio Eletrônico. São Paulo, Conrad, 2001.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O Trabalho do Antropólogo.São Paulo: Editor Unesp, 2000.
DIOP, Cheikh Anta. Nations nègre et culture. Universidade de Paris, 1951.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LCT, 1989.
GROSSMAN, Vanessa. A arquitetura e o urbanismo revisitados pela Internacional Situacionista. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2006.
BERENSTEIN JACQUES, Paola (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. Tradução de Francis Wuillaume e Leo Vinícius. São Paulo, Conrad, 2002.
KI-ZERBO, Joseph. Histoire de l'afrique noire. Paris, Hatier, 1972.
LISSETT, Luther. Guerrilha psíquica. São Paulo, Conrad, 2001.
MILLER, Joseph. King and Kinsmen, early Mbundu states in Angola. Oxford, Claredon Press, 1976.
NADOR, Monica. Paredes pinturas. Dissertação de mestrado. São Paulo, ECA, 1999.
RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture. Londres, J. M. Dent & Sons, 1921.
RUSKIN, John. The Stones of Venice. Londres: George, Allen & Unwin, 1925, vol. 1, 2, 3.
RUSKIN, John. Sesame and Lilies; The Two Paths; The King of the Garden. Londres: J. M. Dent & Sons, 1944.
RUSKIN, John. Modern Painters. Volumes 1 (1948), 2 (1856), 3 (1856), 4 (1856), 5 (1860). Londres, Smith, Elder & Co.
RUSKIN, John. A Joy for Ever. Londres: Routledge Thoemmes Press, 1994.
RUSKIN, John. Time and Tide. Londres: Routledge Thoemmes Press, 1994.
RUSKIN, John. The Crown of Wild Olive. Londres: Routledge Thoemmes Press, 1994.
RUSKIN, John. Into this Last. Londres: Routledge Thoemmes Press, 1994.
RUSKIN, John. Lectures on Architecture and Painting. Londres: Smith, Elder & Co., 1854.
VANSINA, Jan. Living With Africa. Madison: University of Wisconsin Press, 1984.
RUSKIN, John. Les Ancies Royaumes de la Savane, University of Saint-Étienne, 1965.
TEMPLES, Placide. La Philosophie Bantoue, In: KIHB, v. 3, 1961.
sobre os autores
Claudio Silveira Amaral é prof. doutor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp.
Regis Guerini Filho é ex-aluno da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp.
Pedro Alexandre Aniceto é aluno da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp.