Neste ensaio, pretende-se discutir a cidade, a construção da ideia de si mesma e sua representação. O estudo concentra-se no Museu Urbano Tony Garnier, que se sobrepõe ao Conjunto Residencial Estados Unidos, projetado por Tony Garnier para Lyon a partir de 1917, e expande-se a assuntos como o patrimônio urbano e a representação do espaço urbano, para trazer questões complementares à discussão sobre o referido museu.
O espaço do conjunto residencial é oferecido ao visitante como um museu ao ar livre, juntamente com a reconstituição de um apartamento conforme a época de sua inauguração, em 1933. O conjunto baseia-se na ideia de cidade-jardim, com edifícios de apartamentos dispostos em meio ao espaço verde percorrível, propondo um modo de morar equipado e moderno.
O Museu Urbano, formado por iniciativa dos moradores e da companhia gestora dos edifícios, valoriza a cidade moderna perante o imponente conjunto urbano de Lyon, que contém uma densidade histórica insubstituível, como a antiga colina gálio-romana, bairros medievais e renascentistas. Reposiciona, deste modo, a arquitetura e urbanismo modernos no processo histórico de formação da cidade, abordando o período de expansão urbana do século 20 e o pensamento que conduziu esta expansão.
Além do próprio conjunto, o museu é complementado por painéis pintados nas empenas dos edifícios, de autoria do grupo lionês Cité-Création, que qualificam a leitura pessoal sobre o espaço urbano do museu. O grupo Cité-Création é responsável pela execução de painéis na cidade de Lyon que, ao mesmo tempo em que compõem ambientes urbanos - complementam perspectivas, dão vida a empenas e integram visualmente os espaços -, adotam como tema a própria cidade: bairros, edifícios e rastros de antigas ocupações e moradores. Nos painéis, a cidade se vê viva e representada, e amplia a memória de si mesma através da sobreposição de tempos.
O tema desenvolvido nos murais do Museu Urbano Tony Garnier, além das obras de Garnier para a cidade de Lyon, inclui seus desenhos para a Cidade Industrial, não construída. O grupo Cité-Création reelabora e trabalha sobre imagens que ilustram uma cidade idealizada, implantada sobre uma geografia imaginária, que formaliza conceitos discutidos nas primeiras décadas do século 20: higienistas, com edifícios e equipamentos para uma vida saudável, complementados com as infraestruturas e as funções produtivas da cidade. O plano de expansão de Garnier para Lyon, que data de 1917 - cujo conjunto Estados Unidos é um fragmento construído -, foi feito no mesmo ano de publicação de seu texto sobre a Cidade Industrial. O projeto de Lyon traz para o plano real alguns elementos da cidade idealizada por Garnier.
Este trabalho de pesquisa foi desenvolvido com informações obtidas em revisão de bibliografia e em visita ao local, com recolhimento de material sobre o Museu Urbano e registro fotográfico dos elementos para posterior análise. É parte importante do procedimento metodológico a elaboração de uma reflexão própria sobre o assunto. O ensaio é motivado pela tentativa de compreender a ação sobre o patrimônio moderno, conduzida pela construção de uma relação entre o espaço construído, o espaço projetado e o espaço vivenciado.
Fundamentação – Cidade Industrial, memória e obra de arte
Françoise Choay afirma que o conceito de monumento histórico antecede em alguns séculos a noção da cidade histórica (1), e faz uma recapitulação do entendimento sobre o patrimônio urbano ao longo do tempo. Para a autora, alguns pontos de inflexão são colocados em meados do século 19 e durante o século 20.
Segundo Choay, a “cidade memorial” surge na pena de Ruskin e conserva, através de sua totalidade irredutível, a identidade pessoal, local e temporal. John Ruskin, na metade do século 19, tem a importância de reconectar o presente com o passado, através do reconhecimento dos conjuntos urbanos e seu papel memorial de monumento, sugerindo que os conjuntos urbanos deveriam ser mantidos tal como em sua condição original.
Em outro momento, que a autora nomeia “cidade propedêutica”, desenvolve-se uma dimensão elucidativa dos sistemas urbanos, com conjuntos passados pelo estudo racionalista de Viollet-le-Duc e Camilo Sitte. Dedicando-se à compreensão sistemática da cidade pré-industrial, ambos constatam as alterações de escala e tempo da cidade industrial e abrem caminho para um modo de ação também sistemático da urbanística moderna, que iria, em pouco tempo, afastar-se radicalmente da cidade pré-industrial, implantando novos princípios e procedimentos urbanísticos.
Outro momento do pensamento sobre o patrimônio urbano corresponde ao que a autora denomina “cidade-museal”. Neste cenário, os conjuntos históricos seriam preservados como em uma redoma, reduzidos a objetos isolados do pleno funcionamento do restante da cidade, com prejuízo de sua condição histórica presente. A retomada da condição ativa da cidade histórica ocorre no período que a autora chama de “cidade historial”. Nesta abordagem, a cidade-museu é finalmente mantida viva, no desempenho de funções compatíveis com seu tecido urbano, bem como no abrigo de funções específicas relacionadas à sua condição histórica, mas plenamente integrada à cidade.
Em um texto subsequente, a autora discorre sobre o “Patrimônio Histórico na Era da Indústria Cultural”. Pode-se estender as considerações deste capítulo para o pensamento sobre patrimônio urbano, que passa a ser explorado e potencializado para atrair visitantes, incorporando uma nova condição: a cidade enquanto mercadoria.
Pelo panorama apresentado por Choay, é possível relacionar a origem da discussão sobre o patrimônio urbano à preocupação com a cidade pré-industrial, fragilizada e destruída frente ao crescimento da cidade industrial. Ao debruçarem-se sobre o patrimônio urbano, diversos teóricos e urbanistas constataram a perda de qualidade da cidade industrial, construída a partir de lógicas e meios que lhe são próprios. Mas, se a conservação dos conjuntos urbanos foi motivada pela destruição da cidade pré-industrial decorrente da Revolução Industrial, e pela valorização das características da cidade tradicional, o que motivaria a conservação da própria cidade industrial, rebaixada dos atributos comumente relacionados ao patrimônio urbano, uma vez que, em sua formulação, rompe com princípios da cidade tradicional então valorizados?
Giulio Carlo Argan retoma o questionamento sobre o caráter artístico da cidade industrial. Para o autor, a cidade não é apenas um depositório de obras artísticas, mas é, em si, obra de arte coletiva, aberta e construída ao longo do tempo. O autor ressalta a constituição eminentemente artística da cidade em épocas passadas, propiciada pelos meios de produção artesanais. E provoca: a cidade industrial, com base na produção industrial em série, não deverá ser menos artística, estética ou histórica, mas estética, artística e histórica a seu modo (2).
No mesmo texto, o autor discute a ideia de cidade-museu, dizendo tratar-se de um conceito que não se deve temer. O autor opõe-se à ideia de cidade-museu enquanto objeto paralisado, e busca o viés de que a cidade cumpre um papel importante enquanto repositório visual que, em sua totalidade inapreensível, contém conjuntos de elementos e informações a serem lidas, apreendidas e interpretadas pelos usuários: a cidade é o instrumento para a constituição de uma cultura figurativa urbana (3).
Aldo Rossi também contribui com a discussão sobre a dimensão artística da cidade. Para o autor, “a artisticidade dos fatos urbanos está unida a sua qualidade, a seu unicum” (4). Rossi acrescenta que a questão da cidade como obra de arte fundamenta-se, sobretudo, através da concepção da natureza dos fatos coletivos. Isso implica acrescentar ao processo de formação das cidades a intencionalidade, o tempo e a memória. Rossi entende a cidade como a materialização do ambiente propício à vida do homem, que resulta de intencionalidade estética e que adquire consciência de si mesma. Segundo o ator, a cidade passa a ter, como fim, a si mesma, à medida que desenvolve, intencionalmente, certa ideia de cidade, posta em prática para tornar-se, a cada momento, a materialização provisória e parcial de um pensamento.
O autor desvenda em seu texto uma relação entre o plano, a ação (construção) e a percepção (memória, identidade), presentes como um processo dialético. O autor ilustra esta ideia ao mencionar o efeito do meio urbano sobre o grupo social na citação de Halbwachs: se a cidade corresponde à forma de um determinado tempo da cidade, em estreito vínculo com o grupo que o configurou, os grupos são também moldados pelo espaço urbano, cabendo a este ambiente um papel na construção da ideia que o grupo faz de si mesmo (5). Rossi destaca a permanência dos monumentos enquanto representação da memória coletiva, a persistência de elementos como traçados e tecidos, e o significado que a herança material deve assumir para os moradores da cidade no tempo presente.
Halbwachs, no livro A Memória coletiva, aprofunda a relação entre o espaço, o indivíduo e a coletividade ao discutir memória e espaço urbano. Afirma que a cidade permite “recuperar o passado, na medida em que ele se conserva no meio material que nos cerca” (6), e fornece elementos para que os depoimentos e as imagens formadas da cidade se confrontem e se complementem. Estabelece-se assim a relação entre a memória individual e a memória coletiva, esta que é reforçada pelo conjunto de indivíduos. Este processo envolve o tempo, na medida em que a lembrança do passado é sobreposta com a vivência do presente. Para o autor, aquilo que vemos hoje nos ajuda a nos reconstituir um quadro antigo guardado na memória e, do mesmo modo, as velhas lembranças de um lugar se adaptam às imagens apreendidas recentemente.
Halbwachs prossegue dizendo que nossa impressão de um lugar se apoia sobre informações provenientes não apenas do quadro urbano, mas de outras pessoas. Complementa a percepção de um lugar todo tipo de informação obtidas de suportes como uma cartografia, um depoimento ou uma revisão histórica.
Considerando-se a cidade o conjunto espacial e visual que compõe uma cultura urbana, e considerando que a experiência individual da cidade apoia-se tanto sobre a memória coletiva, fixada ao fato urbano, como sobre a percepção coletiva do fato urbano, proveniente da interação do indivíduo no meio social, cabe verificar de que modo o meio urbano, enquanto uma ação coordenada, pode incrementar a percepção individual da cidade, de modo a alterar qualitativamente a experiência do sujeito, e também fortalecer coletivamente a imagem de determinado espaço urbano, destacando, modificando e amplificando a percepção da cidade sobre si mesma.
O Museu Urbano Tony Garnier é uma iniciativa, aplicada sobre um conjunto residencial moderno projetado em 1917, que facilita o processo descrito acima, nos âmbitos individual e coletivo. O conjunto materializa uma proposta de cidade moderna a ser, ainda hoje, compreendida e vivenciada a partir de princípios que lhe são próprios. Neste sentido, o museu aproveita-se dos jardins, dos blocos soltos de habitação e das empenas resultantes da implantação, nelas introduzindo o plano ideal da cidade moderna desenhado por Tony Garnier. Estes desenhos, concentração do pensamento que a cidade formulou sobre si mesma no início do século 20, são fundamentais para mediar a experiência do espaço urbano moderno envoltório, amplificando o papel museal deste fragmento de tecido, ao mesmo tempo em que reafirma a identidade e a memória coletivas no tempo presente, inscrevendo retoricamente sobre o patrimônio edificado a sua própria história e o registro das ideias que lhe deram origem.
Construção de um fragmento da Cidade Industrial
A Cidade Industrial, estudo para a construção de uma cidade ideal com 35 mil habitantes, é objeto da atenção de Tony Garnier a partir de 1904, mas foi definitivamente publicada apenas em 1917. Os desenhos dão forma plena a um pensamento investigativo sobre a cidade industrial na origem do Urbanismo Moderno. Implantada em platôs à margem de um rio, a cidade concentra as fábricas na parte baixa e as habitações em um plano mais elevado, tendo como elementos importantes uma barragem com usina hidrelétrica e os hangares para produção metalúrgica e de máquinas em geral, com ênfase na indústria naval em meio aos canais para teste das embarcações. Nos bairros residenciais, nota-se a presença de edifícios soltos de baixo gabarito em meio ao espaço verde livre e percorrível, dispostos sobre um traçado de ruas ortogonais e quadras retangulares. Expressa-se a preocupação com os apartamentos: o arquiteto sugere o uso do concreto armado e de dispositivos técnicos da casa moderna – bloco sanitário, evacuação das águas servidas, aquecimento elétrico e controle térmico. A moradia é complementada com a presença de equipamentos públicos diversos como parques, centros de esportes, hospitais, centros sociais, escolas, museus, bibliotecas, serviços administrativos. Verifica-se também a importância dada ao sistema público de transporte de massa (7). No plano ideal, a cidade comporta-se, ela mesma, como uma usina, na junção das partes específicas, motivada por uma eficiência produtiva e por garantir uma vida saudável, o que aproxima a referência formal futurista a um contato com a natureza: sol, ar, vegetação.
Pontualmente, a cidade industrial idealizada por Garnier comparece nas obras do arquiteto construídas em Lyon, contratadas pelo então prefeito Édouard Herriot: o matadouro de La Mouche (1906-1928), (sede da Exposição Internacional de Lyon de 1914, que tem como principal edifício o atual pavilhão Tony Garnier), o ginásio de esportes de Gerland (1913-1924 / 1928-1932) (8), o hospital de Grange-Blanche (atual Hospital Édouard Herriot, 1920-1934), e o conjunto Estados Unidos (1917-1933), atual Cité Tony Garnier. Este último corresponde à parte construída de um plano maior de expansão para Lyon encomendado pelo prefeito Édouard Herriot a Tony Garnier em 1917. O plano original, que correu em paralelo ao pensamento do urbanista sobre a Cidade Industrial, previa um bulevar industrial entre o bairro La Guillotière e a cidade de Vénissieux, com novas fábricas, habitações e equipamentos - escolas, cinema, biblioteca, piscina, restaurantes, campo de esportes e uma grande praça arborizada.
Conjunto Estados Unidos – atual Cité Tony Garnier
A possibilidade de executar o conjunto Estados Unidos veio com a criação da companhia Grand Lyon Habitat, em 1920. Trata-se de uma empresa pública para promover habitação social – habitación a bon marché – H.B.M., que é, até hoje, responsável pelo conjunto, destinado a locação social. A construção iniciou-se em 1921. Após a construção de três edifícios com três pavimentos, o arquiteto foi solicitado a adensar o conjunto, reformulando o projeto para atingir cinco pavimentos. O conjunto foi finalizado em 1933, com 1567 unidades dispostas em doze quadras. As unidades têm vários tamanhos, mantendo-se a tipologia dentro de um mesmo edifício (9). Os prédios voltados ao Bulevar Estados Unidos têm comércio no térreo, bem como em algumas esquinas no meio do conjunto. O total de quadras edificado corresponde a apenas uma pequena parte do plano original para Lyon, e os equipamentos previstos não foram feitos naquele momento, tendo sido executados posteriormente conforme o projeto de outros arquitetos.
As quadras habitacionais do conjunto Estados Unidos reproduzem implantação muito semelhante ao plano urbano de Garnier para Lyon: em cada quadra, alternam-se blocos de apartamentos enfileirados em lâmina no alinhamento da rua, complementados por blocos soltos em meio ao jardim, que também mantém o alinhamento da calçada na face oposta da quadra.
Os apartamentos contêm diversas inovações para o período, como o banheiro equipado, a cozinha compacta com água corrente e fogão a gás, terraço, aberturas em todos os ambientes do apartamento para permitir insolação, e um sistema de condutores elétricos integrado às faixas decorativas das paredes. Na época, um apartamento “ultramoderno” (10).
A recuperação do conjunto e a ideia de museu
Segundo o Histo-Guide do Museu Urbano Tony Garnier, o conjunto Estados Unidos envelheceu precocemente. Esta afirmação é justificada no guia pelo fato de que o conjunto foi envolvido por construções dos anos 1950, que incorporaram à habitação diversas tecnologias e hábitos posteriores à Segunda Guerra Mundial, relativizando a proposta exemplar moderna de 1917. Nos anos 1980, devido à depreciação, estabeleceu-se uma comissão para a renovação do conjunto, em que pretendia-se introduzir elevadores e atualizar os sistemas de aquecimento e eletricidade (11). Por meio desta comissão, surgiu a ideia de se implantar o Museu Urbano.
O mesmo guia impresso do museu ressalta que, após as reformas, as tipologias originais continuaram a ser bem aproveitadas pelos usuários, uma vez que os terraços receberam bay-windows e transformaram-se em extensão natural da sala de jantar, espaço central da planta. A renovação dos apartamentos do conjunto foi compensada com a recuperação de uma única unidade, refeita segundo suas características originais. Este apartamento é mantido pela Grand Lyon Habitat e incorporado ao Museu Urbano como espaço visitável. O apartamento foi equipado com móveis e objetos da época e mantém o terraço sem fechamento.
O conjunto teve os jardins recuperados, que permanecem abertos e percorríveis, equipados com pérgolas e bancos originais, detalhados por Garnier. As empenas dos edifícios das extremidades das quadras foram aproveitadas, por iniciativa da comissão de moradores, para receber painéis murais do grupo Cité-Création, e associadas à ideia de um percurso pelo conjunto, configurando o Museu Urbano Tony Garnier.
O museu tem sede no térreo do bloco situado na esquina da Rue de Serpolliéres com Rue Paul Cazeneuve, mas seu acervo, à exceção do apartamento original recuperado, é o próprio espaço exterior. O museu permite incrementar a visita do espaço urbano com audioguide, histo-guide (guia impresso), ou apenas lendo as informações disponibilizadas na calçada.
Um painel disponibilizado ao visitante permite discutir a dimensão da operação proposta pelo museu. Divide-se em tópicos:
- Savoir – no qual apresenta-se Tony Garnier, arquiteto lionês, e Édouard Herriot, prefeito de Lyon;
- Comprendre – compreender a conjuntura do período entreguerras, a demanda habitacional e a dinâmica da expansão urbana;
- Visiter – oferece a visitação a um apartamento reconstituído conforme original dos anos 1930. Inclui mobiliário, equipamentos (fogão, geladeira) e objetos que demonstram o modo de vida da época;
- Découvrir – a iniciativa do museu e a recuperação do conjunto, nos anos 1980, são associadas ao verbo descobrir. A reabilitação do conjunto (elevadores, isolamento térmico das fachadas e reforma dos sanitários) foi acompanhada da iniciativa de uma comissão de locatários de expor o próprio conjunto como Museu Urbano. Complementa a ação a realização de 25 murais do grupo Cité-Creation, formado por artistas provenientes de Lyon, que tem diversos murais na cidade e cujo tema, via de regra, é própria cidade;
- Explorer – mostra-se a planta de situação do conjunto com a localização dos muros pintados e o convite para explorar a habitação, os jardins e os murais, posicionando o conjunto como patrimônio do século 20.
Os painéis de Cité-Creation
Conforme Poirieux, o Grupo Cité-Création é conduzido por doze artistas lioneses, aos quais se somam mais de sessenta artistas do mundo, e já realizou mais de seiscentos painés. Em Lyon, os painéis expressam as diferentes identidades dos bairros, e estabelecem contato direto com os habitantes. A autora relata que os muralistas consideram seu trabalho efêmero (geralmente em tromp-l´oeil, mas também utilizando o grafite), mas que constitui a pele dos habitantes da cidade. O registro de aspectos locais, a escala e a técnica utilizada tornam o trabalho ambíguo, pois há inúmeras partes que criam a ilusão da vida real. Em diversos painéis, o grupo registra-se a si mesmo construindo o painel, evidenciando tratar-se de uma inscrição.
Os artistas consideram as pinturas como parte essencial da comunicação urbana. Se, nos bairros tradicionais, pode-se relatar edifícios e personagens históricos, no Museu Urbano Tony Garnier os painéis recuperam a cidade ideal e a concepção do bairro como tema.
Os murais presentes no conjunto Estados Unidos são basicamente de quatro tipos:
1. Painéis que informam o visitante sobre o museu e seu contexto. O primeiro painel, “Muro Sinalético”, é parcialmente visível a partir do cruzamento da Rue Paul Cazeneuve com o Boulevard des États-Unis, destacando-se o nome do museu. O mural faz um apanhado das obras de Tony Garnier em Lyon. O mural em frente, “A casa de Tony Garnier”, mostra o interior da casa do arquiteto em Lyon.
O terceiro painel, “Os Tempos da Cidade”, tem como tema a história do lugar, representado em camadas, de cima para baixo: os idealizadores do conjunto (Garnier e Herriot), a construção do conjunto, a ocupação das casas pelas famílias, e o tempo presente, no nível da rua. O painel inclui o próprio trabalho de Cité-Création, citado como mais um extrato desse decalque, uma vez que, ao chegar ao nível do chão, o painel comporta-se como os demais muros pintados pelo mesmo grupo em outros locais: personagens históricos, reais ou fictícios interagem com os passantes e, juntamente com as atividades voltadas para a rua, povoam a frente pública. No caso do conjunto Estados Unidos, retrata-se a vitalidade dos jardins.
Um quarto painel, “Os anos 1900”, informa sobre o contexto histórico: as fábricas, os movimentos sociais, a paisagem urbana e diversos cartazes que indicam a agitação e os hábitos da época.
2. Painéis sobre a Cidade Industrial de Tony Garnier. A metade dos murais do Museu Urbano são reelaborações dos desenhos da Cidade Industrial: a implantação geral, as habitações, a escola, as fábricas, a estação, a torre do relógio, etc. Estes desenhos introduzem o visitante ao pensamento de Tony Garnier e às características da arquitetura. Na década de 1910, a modernidade ainda não é traduzida em Arquitetura Moderna: há diversos elementos imponentes e representativos da cidade e a presença de simetria, principalmente nos edifícios residenciais. As fábricas e fornos, construções de desenho mais funcional, são desprovidas de elementos decorativos e reforçam a associação comumente feita pelos arquitetos deste período de que as construções fabris e as máquinas forneciam pistas sobre uma possível renovação da arquitetura, através da eliminação de elementos decorativos e supérfluos.
3. Painéis com referência às obras construídas de Tony Garnier para Lyon. Um destes murais traz o próprio conjunto Estados Unidos, mostrando o projeto completo, com equipamentos que não foram executados. As outras obras retratadas são o antigo Matadouro de la Mouche, o Estádio de Esportes de Gerland e o Hospital Édouard Herriot, cujo mural está atualmente em recuperação.
4. Outro grupo de painéis retrata a cidade ideal em algumas localidades do mundo: Egito, Índia, México, Costa do Marfim, Rússia, Estados Unidos. Este conjunto heterogêneo diverge da unidade estilística presente nos demais painéis, que se apropriam de plantas e perspectivas elaboradas por Tony Garnier, garantindo a unidade das pinturas. O que vincula os painéis da cidade ideal no mundo ao Museu Urbano é o próprio tema da cidade ideal, que reforça diretamente a ideia de que o Conjunto Estados Unidos é um fragmento da cidade ideal pensada por Garnier e construída na década de 20.
Considerações finais
O antigo conjunto Estados Unidos, atual Cité Tony Garnier, é ligeiramente afastado do centro de Lyon. Fotos que datam da época de sua execução mostram a paisagem do entorno, por volta de 1920, com campos vazios e algumas chaminés de fábricas. Constitui uma expansão urbana projetada pelo maior arquiteto moderno da cidade. Teve uma proposta moderna para a época, com princípios inovadores do urbanismo, do edifício e do apartamento abastecido, arejado e funcional, cuja idealização e formulação são valorizadas. Atualmente, tem seus apartamentos e jardins bem aproveitados pelos moradores.
Com a expansão da cidade, o conjunto foi incorporado ao tecido urbano e deixou de estar na vanguarda da arquitetura e urbanismo, sem deixar de corresponder a este papel sob uma perspectiva histórica. A necessidade de uma renovação possibilitou a criação do Museu Urbano Tony Garnier, que ampliar a compreensão e fruição desta pequena fração da cidade, oferecendo ao visitante o contato com as ideias e processos que geraram o conjunto. Os mecanismos instituídos para facilitar a comunicação entre o espaço urbano e o morador/visitante utilizam recursos de metalinguagem, uma vez que as pinturas registram as ideias que deram origem ao espaço que as suporta (empenas, jardins, livre circulação), constituindo uma intervenção contemporânea que compõe o acervo do Museu Urbano junto com o espaço comum e cotidiano da moradia. Esta fusão, que reposiciona o conjunto construído e a própria vida urbana como espaço museal, apenas ressalta uma operação inerente à própria constituição de um espaço urbano vivenciado pelos moradores: a sobreposição entre a ideia de cidade, a constituição da cidade, a vivência da cidade e a sua representação.
A proposta do Museu, ao integrar os painéis de Cité-Création, alcançou a esfera de discussão presente no trabalho do grupo lionês. Os murais deste grupo geralmente sobrepõem camadas históricas, trazem informações e, ao mesmo tempo, ativam o espaço urbano, ao povoá-lo com personagens, atividades e ofícios, em obras que retratam a cidade, retratam a transformação da cidade e retratam a cidade sendo retratada. Reserva-se, para outro texto em outra oportunidade, a existência de uma possível relação entre o grupo Cité-Création e a tradição local de representação do espaço urbano, presente no teatro de Guignol, no Museu da Miniatura e do Cinema e na invenção do cinema pelos irmãos Lumiére.
notas
1
CHOAY, François. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Editora Unesp/Estação Liberdade, 2017, p. 177-178.
2
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 78.
3
Idem, ibidem, p. 81.
4
ROSSI, Aldo. La arquitectura de la ciudad. Barcelona, Gustavo Gili, s/d., p. 62.
5
Idem, ibidem, p. 91. O texto de Halbwachs citado por Rossi, em nosso texto, constitui paráfrase.
6
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990, p. 193.
7
Informações extraídas de GRAS, Pierre. Tony Garnier. Paris, Éditions du patrimoine, 2013, p. 48-71.
8
Dados sobre o ginásio disponíveis em: http://www.archives-lyon.fr/archives/sections/fr/histoire_de_lyon/les_edifices3576/edifices/stade_gerland/?&view_zoom=1
9
Informações extraídas de GRAS, Pierre. Op. cit., p. 108-125.
10
Informações extraídas de GRAS, Pierre. Op. cit., p. 112.
11
MUSÉE URBAIN TONY GARNIER. Histo-guide. Sl, Musée Urbain Tony Garnier, sd.
sobre a autora
Maria Isabel Imbronito é arquiteta e urbanista, com graduação, mestrado e doutorado pela FAU USP. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade São Judas Tadeu.