Brasília, nova capital do Brasil inaugurada em 1960, tem extenso registro fotográfico – por nomes como Mário Fontenelle e Marcel Gautherot – desde sua construção. Na mesma década da inauguração da cidade foi fundada a Universidade de Brasília – UnB, cujo campus, idealizado por Lucio Costa, teve os primeiros prédios concebidos por nomes como Sérgio Rodrigues, Alcides da Rocha Miranda e Oscar Niemeyer.
Uma dessas edificações iniciais é o Instituto Central de Ciências – ICC, também conhecido como Minhocão, que pode ser considerado uma das principais edificações do campus Universitário Darcy Ribeiro. Apesar da denominação Instituto, o ICC se refere à nomenclatura do prédio, e não a uma unidade acadêmica. O edifício é pioneiro na técnica construtiva de pré-fabricação, integra o primeiro Campus brasileiro identificado como tal, e totaliza cerca de 130 mil m2 de área construída.
Criado a partir do traço de Oscar Niemeyer em 1963, o ICC é objeto de relatos por meio de fotografias que são fontes historiográficas sobre o prédio. Por elas se pode traçar um panorama da sua construção, configuração e uso, além de permitir observar continuidades e rupturas.
O interesse em recolher e analisar os registros fotográficos do ICC me levou a entrar em contato com Joana França, fotógrafa, arquiteta, urbanista, brasiliense, com extensa carreira de trabalhos realizados no Brasil e no mundo, principalmente na área de fotografia de arquitetura e de cidades. Em 2018 verifiquei em seu acervo profissional – o qual França gentilmente disponibilizou – que algumas imagens se assemelham a peças gráficas (planta de situação, planta baixa, fachadas) de projetos de arquitetura.
É possível vincular o conteúdo de um conjunto de fotografias de autoria de Joana França com as imagens do contexto da elaboração de um projeto de arquitetura?
A partir dessa indagação foi idealizado esse artigo.
O modo de estudo está baseado na análise das fotografias do ICC de autoria de Joana França à luz das considerações de alguns pensadores da área de leitura de imagens, como Boris Kossoy, Laurent Gervereau, Roland Barthes e Miriam Paula Manini.
O texto está estruturado em quatro partes: Fotografia, que traça um panorama sobre essa técnica e apresenta os métodos utilizados na pesquisa; Arquitetura, sobre especificidades da arquitetura e das suas representações; Fotografia de arquitetura e de cidades, sobre as diretrizes desse tipo de fotografia e a trajetória de Joana França; e Minhocão, com a análise de fotos do prédio. Após são apresentadas as considerações finais.
Fotografia
A fotografia é o resultado da ação de um autor, que também pode ser entendido como emissor, sobre uma câmera fotográfica amadora ou profissional visando o registro – ou construção de uma imagem – de uma paisagem, retrato, evento ou objeto. Seu resultado – seja em suporte físico ou digital – constituirá um artefato que quando atingir um receptor ensejará a sua apreciação. A vivência e o ambiente cultural irão influenciar tanto a criação quanto a apreciação da fotografia. Para Boris Kossoy,
“A fotografia tem uma realidade própria que não corresponde necessariamente à realidade que envolveu o assunto, objeto do registro, no contexto da vida passada. Trata-se da realidade do documento, da representação: uma segunda realidade, construída, codificada, sedutora em sua montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua, inocente, mas que é, todavia, o elo material do tempo e espaço representado, pista decisiva para desvendarmos o passado” (1).
Essa fotografia contém a marca de seu autor, que escolheu um tema específico, uma determinada cena, certo ângulo, um tipo de técnica e equipamento para registrá-la. Portanto, ela não pode ser entendida como representação fiel da realidade ou como um elemento isento da interferência do seu emissor pois é, justamente, apresentação de uma imagem original do mundo. Têm características imbricadas com o contexto e cultura tanto desse autor como de potenciais consumidores dessas imagens. O anseio de parte da sociedade em ter acesso a fotografias de um determinado viés – imagens de arquitetura, paisagens, etnográficas, por exemplo – também pauta o modo com que o fotógrafo captura uma imagem.
Quando as fotografias circulam pela sociedade podem incorporar-se à cultura visual de diversos grupos e ensejar vários modos de leituras em situações distintas daquelas que as produziram. Como indica Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses,
“Não são pois documentos os objetos da pesquisa, mas instrumentos dela: o objeto é sempre a sociedade. Por isso, não há como dispensar aqui, também, a formulação de problemas históricos, para serem encaminhados e resolvidos por intermédio de fontes visuais, associadas a quaisquer outras fontes pertinentes.
[...] O emprego de imagens como fonte de informação é apenas um dentre tantos (inclusive simultaneamente a outros) e não altera a natureza da coisa, mas se realiza efetivamente em situações culturais específicas, entre várias outras. A mesma imagem, portanto, pode reciclar-se, assumir vários papéis, ressemantizar-se e produzir efeitos diversos” (2).
Corroborando com essa abordagem Ana Maria Mauad e Marcos Felipe de Brum Lopes pontuam que
“As imagens despertam julgamentos estéticos e críticas filosóficas, sempre articulados com as culturas dos que as produzem e de seus leitores, seja no processo histórico que caracterizou o tempo de sua criação e circulação, seja no tempo em que elas se tornam fontes e documentos para os estudos dos autores [...]. Os meios pelos quais elas circulam redefinem seus usos, funções e significados” (3).
Como resgatar a intenção de criação de uma obra – relacionada à fotografia, arte, arquitetura, cidade – se muitas vezes nem o autor tem consciência plena do contexto que levou à sua criação?
O que se pode fazer é especular o seu sentido, pois como afirma Durval Muniz de Albuquerque Júnior “o sentido nunca se recupera, o sentido se libera, se produz, se constrói, se atribui” (4).
Se a leitura de textos – cuja comunicação está mais consolidada na sociedade – nem sempre leva a uma interpretação uniforme, a de fotografias talvez apresente modos de decodificação ainda mais escorregadios. Para Miriam Paula Manini,
“A leitura do verbal é muito mais lenta que a leitura instantânea da fotografia, muito embora se esteja falando, aqui, da leitura da informação (primeiro nível) e não da interpretação (segundo nível). Enquanto o texto escrito descreve todo um cenário ou acontecimento, o texto fotográfico é incompleto e seletivo ao recortar aquilo que vai dar a ver. O visual, por vezes, pode parecer sintético e objetivo, em contraposição a um verbal analítico e prolixo” (5).
Roland Barthes especulou sobre modos de abordar os registros fotográficos. Ele aponta que a fotografia, por ser a priori uma imagem sem código, apresenta um aspecto denotativo, podendo ser assimilada por todos da sociedade que possuam o sentido da visão. Porém, por parte do receptor, a imagem não é somente recebida. Ela é lida, assimilada. Para Barthes o paradoxo da fotografia é ser entendida como denotativa – enquanto pretensamente neutra e real – e também conotativa – pois é fruto de uma estrutura de comunicação de massa. Portanto é ao mesmo tempo objetiva e investida de significados. "Graças a seu código de conotação, a leitura da fotografia é, pois, sempre histórica; dependente sempre do 'saber' do leitor, tal como se fosse uma verdadeira língua, inteligível apenas para aqueles que aprenderam seus signos” (6). Por isso o processo de leitura envolve considerações sobre o emissor, a fotografia propriamente dita e seus receptores.
A leitura de uma imagem no contexto dos campos de conhecimento da Arquitetura, Urbanismo, Paisagem, Psicanálise, Sociologia, Antropologia, Ciência da Informação, Historiografia, História da Arte, ou Tecnologia do Equipamento ensejará diferentes abordagens. A comunicação por meio de fotografias envolve a expressão por uma linguagem que seja comum e reconhecível tanto ao seu autor quanto aos consumidores dessas imagens. Se o fotógrafo e o leitor da imagem forem partícipes de um mesmo modo de expressão cultural ou de campo de conhecimento, a sintonia entre intenção inicial da fotografia e sua interpretação será mais acurada. Caso contrário, as possibilidades de abordagens na leitura da fotografia, e consequentemente na sua interpretação, tornam-se imprevisíveis.
Vários pesquisadores já especularam sobre modos de abordar a leitura de imagens. A escolha de qual estratégia será adotada se dará pelo objeto de estudo, objetivo da pesquisa e perguntas que serão realizadas sobre a imagem. Laurent Gerverau propõe uma grade de análise de imagens em três etapas. A primeira é a Descrição, composta de informações sobre técnica, estilística e temática. Na sequência o Estudo do contexto, registrando o que incentivou a sua elaboração e divulgação. Por fim, a etapa de Interpretação, quando são confrontados os significados iniciais – intenção do autor – e as significações posteriores (7).
Esse modo de leitura remete ao utilizado por Barthes, ao seguir a lógica de analisar a tríade emissor–fotografia–receptor. Boris Kossoy, no entanto, apresenta outra tríade de elementos para análise, composta por: assunto–fotógrafo–tecnologia. Segundo Kossoy, quando alguém se refere a uma fotografia na realidade trata da sua expressão: o assunto nela representado. A fotografia, porém, não é apenas um documento por aquilo que mostra da cena passada, irreversível e congelada na imagem; faz saber também de seu autor, o fotógrafo, e da tecnologia que lhe propiciou uma configuração característica e viabilizou seu conteúdo (8).
O conhecimento do autor da fotografia, do que motivou a sua elaboração e do contexto em que ela foi feita é o que alicerça a sua leitura. Porém, independente do conhecimento dessas informações, Roland Barthes elaborou dois conceitos que norteiam o contato com a fotografia. São eles o studium e o punctum. O studium é o interesse inicial, objetivo, consciente, vinculado à cultura do receptador da imagem. É o que faz o olhar buscar a foto. O punctum é algo que na foto busca o olhar, que o atrai de maneira irresistível. Ele é subjetivo, inconsciente e pessoal (9).
O campo de conhecimento e o repertório cultural do receptor da fotografia fará com que este eleja alguns exemplares de interesse dentre uma coleção de imagens. Pessoas com afinidade com o campo de conhecimento da arquitetura tendem a se afeiçoar com um modo peculiar de registrar os espaços e as cidades.
No amplo universo de capacitação e exercício na área de arquitetura e urbanismo estão presentes elementos que fazem parte do cotidiano profissional, como a capacidade de observação e abstração, busca de precisão na criação de imagens, domínio de formas de representação gráfica, priorização dos conceitos de ordem e composição. Esse contexto vai impregnar a ação do fotógrafo-emissor e do leitor-receptor que pertençam a esse meio. Profissionais que registram a arquitetura comungam com um modo de vê-la e um modo de registrá-la.
Arquitetura
A Arquitetura, por estar presente ao longo do desenvolvimento da humanidade e, geralmente, sobreviver a várias gerações, é testemunha de outras épocas e culturas. Como registra Edgar Albuquerque Graeff,
“Do nascimento à morte, da maternidade ao túmulo, o homem atravessa o tempo da sua existência trabalhando, repousando, cultivando divindades e memórias, brincando e sofrendo, no abrigo dos edifícios construídos para proteger e favorecer o exercício das atividades que a vida requer” (10).
Conhecer o espaço construído de sua própria cultura ou de outras é entrar em contato com camadas de informações, um palimpsesto sobre o meio ambiente, as técnicas construtivas, os costumes. Essa experiência é pessoal e presencial. Para isso deve-se estar no espaço arquitetural, observá-lo e deslocar-se para assimilá-lo.
Na atualidade a concepção das edificações parte, comumente, de profissional da área de arquitetura que, independentemente do método projetual, ao fim do processo encaminha representações bidimensionais da proposta para os órgãos de controle urbanístico e para o canteiro de obras. O conjunto de peças gráficas, composto de, no mínimo, planta de situação, planta baixa, cortes, fachadas, memoriais descritivos, constituem ferramentas de trabalho dos projetistas e são fundamentais para orientar a construção. Quem olha esse material tem acesso a uma abstração sobre a arquitetura, não a ela própria.
As plantas baixas apresentam ângulo de visão que privilegia o piso, portanto imensamente distinta do circular dentre planos verticais e demais invólucros do edifício. A abstração da representação gráfica também está presente nos desenhos das fachadas que carecem de registro de profundidade. Como pontua Artur Simões Rozestraten, “enquanto a arquitetura é massa e espaço, as figuras da arquitetura são formas imaginárias, fantasias de lineamenti: sínteses gráficas, econômicas, concisas, só arestas, saliências e reentrâncias ” (11). Portanto, a representação por planos é incapaz de traduzir os conjuntos arquitetônicos complexos, com temas predominantemente volumétricos. O espaço extrapola os meios de apreensão e os modos de representação. Segundo Airton Cattani,
“A representação gráfica da arquitetura, cuja importância se consolidou a partir do desenvolvimento técnico/científico ocorrido a partir da Renascença, associada ao panorama atual de especialização e complexidade das obras, faz com que a antecipação das características espaciais de uma edificação com base em informações gráficas e textuais tenha um papel fundamental nos modernos sistemas produtivos.
Longe de ser uma habilidade inata, a compreensão da simbologia adotada pelo desenho técnico de representação espacial requer o desenvolvimento da capacidade de abstração, de modo a permitir que sejam identificadas características volumétrico/espaciais a partir de informações fornecidas pelo desenho bidimensional” (12).
Nos momentos da projetação e no do registro de prédios já construídos, esses desenhos apresentam informações que, mesmo para quem domina as técnicas de leitura de projetos, são distintas da experiência de estar fisicamente no edifício. Em livros, revistas, sites, tanto nas imagens com representação bidimensional – muitas vezes sem a indicação se é uma planta baixa, corte ou fachada –, como nos esquemas de perspectivas à la Brunelleschi é necessário um repertório técnico mínimo para uma adequada compreensão.
A fotografia também exige capacidade de abstração, pois é um recorte da paisagem e do tempo. Em algumas imagens, há um grafismo que leva o observador ao questionamento sobre a natureza do objeto fotografado e ao ângulo de visão do registro fotográfico. Para Bruno Zevi, “cada fotografia engloba o edifício de um único ponto de vista, estaticamente, de maneira que exclui esse processo, que poderíamos chamar de musical, de contínuas sucessões de pontos de vista que o observador vive no seu movimento dentro e ao redor do edifício" (13). O autor complementa afirmando que o cinema – e sua capacidade de captar o tempo/quarta dimensão – conseguiria representar melhor os espaços arquitetônicos.
O tempo na arquitetura, entendido como o elemento que propicia o deslocamento e, por conseguinte, a experiência arquitetônica é suprimido na fotografia. Para Daniela Mendes Cidade,
“A fotografia evoca junto ao espectador associações de imagens sobre o momento que precedeu e o que segue a tomada. O fragmento fotográfico prolonga, através da ação da imaginação, o acontecimento anterior e posterior de uma determinada ação. Esta particularidade faz da fotografia uma arte do tempo e do espaço, assim como a arquitetura” (14).
Essa conexão entre o tempo, o espaço e a arquitetura está presente nas fotografias, porém como abstração. Nem sempre é evidente se o disparo da fotografia corresponde ao momento decisivo, como indicava Henri Cartier-Bresson ou a uma longa exposição. Com isso, a percepção do tempo de retenção da imagem fica em aberto para o receptor. Algumas fotografias com motivo arquitetônico parecem se afastar exponencialmente da experiência de estar in loco. Afinal, como frisa Artur Simões Rozestraten,
“Por si só a fotografia é um objeto, independentemente do objeto arquitetônico representado em sua imagem.
Já o sentido relacional dessa dupla natureza tende a vincular as representações àquilo que representam, de modo que, muito embora a fotografia seja autônoma, podendo assim ocupar um outro lugar e ter uma outra história distinta do que representa, como imagem, carregará consigo uma relação perpétua com o objeto fotografado” (15).
A fotografia tem em sua essência a característica de ser um elemento independente do tema fotografado – afinal é uma criação – mesmo estando intrinsicamente a ele vinculado. Na fotografia de arquitetura e de cidades o modo de registro das imagens abarca referências às peças gráficas dos projetos de arquitetura, pois o público alvo dessas imagens habitualmente está apto para decodificá-las. Por isso, comumente se percebe a preocupação com a incorporação de conceitos da área de arquitetura, como precisão na composição da imagem, geometria, simetria, alinhamentos, marcação da perspectiva. É o caso dos registros da fotógrafa e arquiteta Joana França.
Fotografia de arquitetura e de cidades
Joana França concluiu o curso de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Brasília no ano de 2003 e estudou fotografia no International Center of Photography – ICP, em Nova Iorque, em 2011. Define-se como fotógrafa de arquitetura e de cidades (16). Sua produção fotográfica – que já foi tema de exposições coletivas e individuais – está presente em livros, guias de arquitetura, catálogos de arte, revistas e sites. França também ministra cursos de fotografia e mantém conta na rede social Instagram com cerca de 30 mil seguidores.
O modo de fotografar utilizado por Joana França foi forjado pelo convívio com os pais arquitetos e pelos espaços modernistas, planejados e amplos de Brasília (17). Em depoimento sobre por que gosta de fotografar arquitetura, relata:
“Porque está por todos os lados, e está sempre lá, então posso fazer meu próprio horário, inclusive fotografar obcecadamente, até conseguir o que desejo. Porque eu gosto do trabalho solitário e contemplativo. Porque a arquitetura varia muito com as mudanças de clima e de luz, tanto para melhor quanto para pior, e isso pra mim é um grande estímulo. Porque volta e meia aparece um humano na frente do prédio, fazendo algo completamente inesperado, e isso muda radicalmente a história que a foto conta. E eu vivo para esperar e para estar pronta pra esse momento. E, somando isso tudo, porque me dá a chance de, nos meus melhores momentos, capturar um prédio ou um espaço público de um modo diferente, que mexe com a perspectiva das pessoas que se habituaram com eles, e deixaram de valorizar o que faz deles especiais” (18).
Na sequência, França indica suas principais referências: Michael Wesely, que fotografa cidades e prédios em construção utilizando longas exposições; Nelson Kon, a quem identifica como mestre maior da fotografia no Brasil; e Iwan Baan, que procura registrar tanto a arquitetura como a cultura que a configura. No seu site profissional (19) Joana França apresenta fotografias do cotidiano, de exposições de arte e, predominantemente, de arquitetura e de cidades.
Resgatando os primórdios da fotografia que tem na arquitetura o motivo principal, César Bastos de Mattos Vieira indica que, ainda no século 19, “no campo das representações gráficas, a fotografia assume as diretrizes do desenho técnico na representação do existente buscando reproduzir as vistas ortogonais baseadas na geometria euclidiana. Segue, assim, as diretrizes do desenho técnico” (20). O efeito desejado dessas fotos pioneiras era a vista frontal das edificações, sem o efeito da perspectiva. Sobre a especificidade da fotografia de arquitetura, o fotógrafo e arquiteto Nelson Kon também indica essa característica ao citar Eric Samuel de Mare (21) que a divide em três categorias:
“Documental, ilustrativa e autoral. A fotografia documental, que predomina no século 19, segue de perto a linguagem do desenho arquitetônico (vista frontal, vista oblíqua) e tenta ser neutra e precisa. A fotografia ilustrativa vai além e procura interpretar e comentar a arquitetura. Constrói uma narrativa sobre o edifício. A fotografia autoral tem a arquitetura como objeto, mas ela é puro pretexto para que o fotógrafo possa se expressar. Quando dou aulas, até uso essas categorias, mas considero um tanto simplista. [...] Didaticamente, são categorias interessantes como ponto de partida. Na verdade, não existe o trabalho documental, o trabalho ilustrativo, o trabalho autoral tão estanques. As categorias se entrelaçam e confundem-se – estão sempre presentes em qualquer fotografia” (22).
Esse depoimento registra a correlação entre a fotografia de arquitetura e a linguagem do desenho arquitetônico – especificamente da perspectiva linear – desde os primórdios do desenvolvimento da técnica da fotografia até a atualidade. Com a facilidade de acesso a câmeras fotográficas e de formas de divulgar e replicar imagens, principalmente por meio da internet, a cultura visual de determinado campo de conhecimento, como o da arquitetura, vai se expandindo para outros grupos da sociedade. Em um movimento cíclico, a fotografia de arquitetura também amplia o seu repertório de modos de registro com formas de fotografar advindos de outras áreas.
Atualmente há grande variedade de tipos de imagens que circulam pela sociedade, o que criou uma ampla cultura sobre sua criação e leitura. As possibilidades de captação de imagens em alta resolução permitem tanto a fotografia de detalhes microscópios quanto a de registros de vistas aéreas, por meio de drones. Como registra Ákos Moravánszky, a assimilação das imagens aéreas pela sociedade foi impulsionada após a Segunda Guerra Mundial, fruto de um interesse de expandir a escala humana para as escalas sobre-humanas, geográficas e territoriais. Nesse contexto, a familiaridade da sociedade com um mundo tridimensional também se ampliou para uma assimilação da imagem de topo, essencialmente bidimensional. Ao capturar imagens aéreas há não só a planificação da arquitetura e da paisagem, como o consequente desaparecimento da escala humana (23). Fotografias de elementos da arquitetura – como as de janelas – e de visões aéreas de bairros e cidades são bastante difundidas. O intuito desses registros, nem tanto. Como fotografia é um modo de comunicação, afinal “quem lê tanta notícia? / eu vou / por entre fotos e nomes” (24).
Ao se deparar com uma imagem o leitor-receptor pode ser instigado a decodificá-la. A decodificação da fotografia é obscurecida se não se tem acesso a informações básicas sobre seu contexto de criação. Para Pierre Sorlin, se tratando da fotografia enquanto fonte historiográfica, “ao contrário do que se diz frequentemente, a imagem não fala. Sem comentários, uma imagem não significa rigorosamente nada, e podemos imaginar qualquer coisa, dependendo da nossa fantasia, quando a vemos” (25). Por isso o conhecimento de dados como a autoria da fotografia, o aparato tecnológico, a data, o evento retratado ou o local, subsidia a leitura do registro fotográfico.
Sintetizando as premissas de Gervereau, Kossoy e Manini, pode-se abordar a análise de fotografias a partir da leitura da informação avançando-se para a interpretação. Portanto, é importante frisar que Joana França é uma fotógrafa inserida em um meio em que o campo de conhecimento sobre a arquitetura está sempre presente. Sua produção também tem a arquitetura e a cidade como principal motivação. Complementando a identificação do seu modo de trabalho, deve-se registrar que as imagens são realizadas por câmera digital profissional, tripé e drone. Após, são realizados pequenos ajustes por meio de softwares de edição de imagens.
Munida da sua bagagem cultural, influências profissionais, experiência e equipamentos é que Joana França realizou as imagens do Instituto Central de Ciências, vulgo Minhocão.
Minhocão
O Instituto Central de Ciências – ICC, foi projetado por Oscar Niemeyer em 1963, mesmo ano do início das obras de construção. A ocupação ocorreu a partir do final daquela década. O ICC, apelidado pela comunidade universitária de Minhocão, é formado por dois trechos retos, nas extremidades, e um trecho curvo central, assemelhando-se ao formato de um boomerang. É constituído de dois longos blocos paralelos com 700 m de comprimento e pátio central em toda a sua extensão, tendo as fachadas mais extensas na orientação Leste-Oeste. A conexão entre os dois blocos é feita por praças e duas passagens cobertas que marcam os pontos de inflexão do prédio. São três pavimentos, sendo um deles subsolo. Por muito tempo representou 50% da área construída da universidade e ainda hoje é a maior edificação do campus com cerca de 130 mil m2de área construída. O ICC recebe diariamente grande parte da comunidade universitária e abriga Institutos, Faculdades, auditórios, salas de aula, diretório de estudantes, centros acadêmicos, órgãos administrativos e de apoio técnico da universidade, agência bancária, comércio, restaurante e lanchonetes.
A fim de especular sobre as similitudes das características imagéticas entre fotografias e peças gráficas do contexto da elaboração do projeto arquitetônico, foram analisados os registros fotográficos de autoria de Joana França. A fotógrafa disponibilizou vinte imagens do ICC capturadas no período de 2010 a 2016. As fotografias foram realizadas para inserção em guias arquitetônicos e também como exercício de campo em curso de fotografia que ministrou. As imagens podem ser divididas em cinco grupos segundo a abordagem de captura do registro fotográfico: seis fotografias são aéreas compreendendo vias e várias edificações do entorno, duas são aéreas compreendendo o entorno imediato ao prédio, duas são aéreas apresentando a cobertura e o jardim interno, cinco são internas, e cinco externas, ao nível do transeunte. Para presente análise foi selecionada uma fotografia de cada um desse grupos.
A imagem aérea do campus universitário o apresenta de uma maneira comumente não observada pela comunidade universitária. É uma mirada que se assemelha à apresentada pelo site Google Earth, que disseminou para o grande público a possibilidade de observação de topo para a visualização de cidades, de paisagens e do próprio planeta. Essa vista de topo, antes quase uma abstração para a representação em mapas, desde o século passado faz parte do repertório visual de grande parte da sociedade. Porém a experiência de ver ou fotografar a cidade e, mais especificamente o ICC, neste ângulo é restrita a poucos. Um modo de interpretar essa imagem é que ela se aproxima da peça gráfica de projeto de arquitetura denominada planta de situação.
As fotografias em que aparecem detalhes da vista aérea do prédio também apresentam essa característica de proximidade da representação utilizada no momento do projeto. O aparato técnico de captação e ajustes de imagens permite que, se for a intenção do autor – e também da preferência do público alvo –, as fotografias aéreas apresentem-se planificadas.
Na vista interna do prédio o destaque é para as linhas em perspectiva que convergem para um ponto de fuga centralizado. A presença da figura humana – algumas não muito nítidas devido à tomada em longa exposição – revelam a escala do prédio. O jogo de luz entre a zona escura acima do jardim e o elemento em “V” iluminado acentua a construção geométrica típicas dos desenhos técnicos, como apresentado no estudo sobre construção de perspectiva de Brunelleschi. Na imagem da vista externa do prédio as linhas em perspectiva estão na parte interna do ICC. As linhas no plano da fachada estão em ângulo reto, sem efeito de ponto de fuga para a parte superior da imagem.
Segundo instituído por Roland Barthes, a identificação do punctun nas imagens, por ser um aspecto subjetivo, pode variar de acordo com o observador. Talvez seja, para alguns, a luz branca centralizada; para outros, a elipse azul que parece flutuar sobre o prédio; ou ainda a área iluminada ao fim das vigas em perspectiva. Cada observador pode se ater a um diferente aspecto, influenciando por suas vivências e sua cultura visual.
Nas fotografias de arquitetura capturadas por Joana França se mesclam as características documental, ilustrativa e autoral de composição de imagens em um segmento cujos fotógrafos e público têm como base de trabalho a geometria e a precisão de composição. Nas imagens se observa o rigor de enquadramentos e alinhamentos, a composição centralizada, a marcação da perspectiva, as formas geométricas, enfim, vários conceitos e preocupações da área de arquitetura que se difundem ao restante da sociedade quem tem acesso a essas fotografias.
A sociedade, desde o século passado, vive em uma crescente valorização dos registros fotográficos, expandindo a sua criação e difusão. O acesso às obras de fotógrafos do porte de Joana França – presentes em exposições, revistas, livros, internet – cria um repertório visual no público que interfere na maneira com que a arquitetura é vivenciada. Em um movimento cíclico, a fotografia inspira a percepção da arquitetura e conduz o modo de experimentá-la e fotografá-la.
Sobre o âmago da fotografia Pierre Sorlin destaca que ela “condiciona nossa abordagem do mundo. Ela transformou nosso modo de ver o mundo, e não podemos mais vê-lo de outra maneira a não ser através dos reflexos permanentes que ela nos propõe” (26). O contato com essas fotografias faz com que o leitor-receptor reelabore seus conceitos de percepção das imagens, da arquitetura e do que entende como realidade. Nesse contexto, a fotografia não tem a prerrogativa apenas de registrar a realidade, mas também de moldá-la.
Considerações finais
A fotografia é fruto da ação de um autor que por meio da sua bagagem cultural e aparato técnico constrói determinada cena ou objeto. Se tratando de espaços edificados, como teoriza Artur Simões Rozestraten, “a arquitetura é um objeto, a fotografia é um outro objeto e ambos apresentam a si mesmos antes de representarem qualquer outra coisa ausente” (27). Por meio das fotografias pode-se vislumbrar espectros da arquitetura, porém não a experiência arquitetônica plena.
Para cada fotografia elaborada há uma infinidade de outras opções não consideradas. Portando, ela é uma expressão indissociável de seu autor, como toda comunicação, e pode ser lida pelo receptor de diferentes maneiras, dependendo das circunstâncias e da cultura desse leitor. Essa ação pessoal de captação de imagens está inserida em uma cultura visual que condiciona o modo de fotografar e o modo de ler essas fotografias. Os atos de criar e de assimilar esses registros fotográficos estão inseridos em um amplo modo de expressão cultural. Assim, para a interpretação ser mais consistente no momento da leitura das fotografias é indicado o conhecimento do contexto de sua realização, da autoria, do aparato tecnológico, da data, do evento retratado e do local.
Algumas fotografias, como as aqui apresentadas, remetem às peças gráficas dos projetos de arquitetura, revelando o repertório visual em que Joana França está inserida. Em todas as imagens apresentadas há um realce da estrutura em concreto armado da edificação, indicando que essa é a característica principal da arquitetura do Instituto Central de Ciências – ICC, da Universidade de Brasília. Pelo menos considerando esse recorte de imagens.
Em algumas fotografias, como nas imagens aéreas, há certa abstração que as afastam da vivência cotidiana dos espaços. É próprio da fotografia apresentar imagens que no cotidiano não são visíveis ao olho humano, como as fotografias dos campos de conhecimento da Biologia, Química ou Astronomia. Afinal as fotografias fazem uma mediação entre a realidade visível e o que é considerado realidade – apesar de não observável a olho nu – nos diversos campos de conhecimento.
Quanto às imagens analisadas, percebe-se que foram construídas em uma lógica arquitetônica, porém não foi objetivo desse artigo rotular a obra tão vasta dessa fotógrafa em um único nicho. Foi apresentada uma possibilidade de leitura de uma amostra recebida em um contexto específico. Outras leituras são possíveis, afinal a leitura de imagens é um ato solitário e contemplativo.
notas
1
KOSSOY, Boris. Realidade e ficções na trama fotográfica. 3ª edição. Cotia, Ateliê Editorial, 2002, p. 22.
2
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, n. 45, vol. 23, São Paulo, 2003, p. 28-29.
3
MAUAD, Ana Maria; LOPES, Marcos Felipe de Brum. Imagem, História e Ciência. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, n. 2, v. 9, Belém, mai./ago. 2014, p. 283 <www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v9n2/a02v9n2.pdf>.
4
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico. ArtCultura, n. 26, v. 15, Uberlândia, jan./jun. 2013, p. 20.
5
MANINI, Miriam Paula. A leitura de imagens fotográficas: preliminares da análise documentária de fotografias. Anais do Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, v. 17, 2016 <www.brapci.inf.br/index.php/article/view/0000011303/1d79a6d17695309182ac5b150050aaf3>.
6
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 21-22.
7
GERVEREAU, Laurent. Ver, compreender, analisar as imagens. Lisboa, Edições 70, 2007, p. 101-102.
8
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo, Ática, 1989, p. 75.
9
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 45-46.
10
GRAEFF, Edgar Albuquerque. O edifício. Uma sistemática para o estudo da Teoria da Arquitetura. Cadernos Brasileiros de Arquitetura, São Paulo, Projeto, 2006, p. 13.
11
ROZESTRATEN, Artur Simões. Representações: imaginário e tecnologia. Tese de livre-docência. São Paulo, FAU USP, 2017, p. 55.
12
CATTANI, Airton. Arquitetura e representação gráfica: considerações históricas e aspectos práticos. Arqtexto, v. 9, Porto Alegre, 2006, p. 121 <www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_9/9_Airton%20Cattani.pdf>.
13
ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. 5ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 50.
14
CIDADE, Daniela Mendes. A cidade revelada: a fotografia como prática de assimilação da arquitetura. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, FAU UFRJ, 2002, p. 11.
15
ROZESTRATEN, Artur Simões. Op. cit, p. 82.
16.
FRANÇA, Joana. Joana França Fotografia <www.joanafranca.com>.
17
FRANÇA, Joana. Entrevista e evento de encerramento da exposição na Galeria BsB Memo. Joana França Fotografia, 2014 <www.joanafranca.com/novidades/entrevista-e-notcia-sobre-o-encerramento-da-exposio-na-galeria-bsb-memo-dia-17042014>.
18
BARATTO, Romullo. Fotografia e Arquitetura: Joana França. ArchDaily, São Paulo, 08, jun. 2015, 2015 <www.archdaily.com.br/br/767944/fotografia-e-arquitetura-joana-franca>.
19
FRANÇA, Joana. Joana França Fotografia (op. cit.).
20
VIEIRA, César Bastos de Mattos. A fotografia na percepção da arquitetura. Tese de doutorado. Porto Alegre, FAU UFRGS, 2012, p. 225.
21
DE MARE, Eric Samuel. Photography and architecture. Nova York, Praeger, 1961.
22
COSTA, Eduardo Augusto; GOUVEIA, Sonia Maria Milani. Nelson Kon – uma fotografia de arquitetura brasileira. Pós - Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, n. 24, v. 15, dez. 2008, p. 13.
23
MORAVÁNSZKY, Ákos. Blow-up the powers of scale. Joelho: Revista de Cultura Arquitectónica, n. 8, Coimbra, 2017, p. 23 <https://digitalis.uc.pt/pt-pt/artigo/blow_up_powers_scale>.
24
VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. In: VELOSO, Caetano. Alegria, alegria, Philips Records, 1967. Single de vinil.
25
SORLIN, Pierre. Indispensáveis e enganosas, as imagens testemunhas da história. Estudos Históricos, n. 13, v. 7, Rio de Janeiro, 1994, p. 85 <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1974>.
26
Idem, Ibidem, p. 83.
27
ROZESTRATEN, Artur Simões. Op. cit., p. 82.
sobre o autor
Eduardo Oliveira Soares é arquiteto e urbanista (UFPEL, 1995), especialista em Reabilitação Ambiental Sustentável Arquitetônica e Urbanística (UnB, 2008), mestre em arquitetura e urbanismo (UnB, 2013) e doutorando na FAU UnB, tendo como tema de pesquisa as narrativas fotográficas. Trabalha na Universidade de Brasília.