Retomando o artigo anterior, esta série de dois textos constitui uma reflexão, com certo atraso cronológico, de duas exposições distintas em tema e escala, mas que tem em comum uma ideia de design aeronáutico, e de terem sido produzidas pelo Museu da Casa Brasileira da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, administrada pela organização social de cultura A Casa Museu de Artes e Artefatos Brasileiros. Para este autor, arquiteto, colaborador de duas bienais internacionais de arquitetura em São Paulo – ainda no tempo em que estas exposições eram realizadas no Pavilhão da Bienal – e professor universitário, é motivo de imensa alegria comentar estas duas mostras, por retomar sua paixão primordial desde a infância, bem anterior à Arquitetura e Urbanismo: a História da Aviação e da tecnologia aeroespacial, e o design da primeira metade do século 20.
As vastas dimensões temporais das duas exposições tornaram o encargo bem mais complexo do que a resenha originalmente imaginada, daí a demora na conclusão do artigo, que é redigida ainda sob impacto do falecimento do engenheiro e designer aeronáutico Joszef Kovács, que projetou 57 aviões e planadores (ocorrido a 14 de julho de 2019, aos 93 anos). As dimensões do artigo ultrapassaram os limites fixados pela Vitruvius Arquitextos, exigindo que fosse dividido em dois artigos menores. Este é o primeiro deles.
A primeira exposição a comentar é, justamente, a primeira mostra com tema e curadoria específica, de fato, sobre a história do design aeronáutico no Brasil, realizada fora do âmbito dos museus nacionais com acervos de História da Aviação: Design na Aviação Brasileira, com projeto de criação de Guto Lacaz, iniciativa do Museu da Casa Brasileira, em exposição de 01 de junho a 20 de agosto de 2017, com expressivo êxito de público.
Alguns meses depois da exposição, começaram a ecoar na imprensa especulações sobre uma fusão entre a Empresa Brasileira de Aeronáutica – Embraer e a Boeing, a gigante da indústria aeronáutica americana e mundial. Uma joint venture foi anunciada na imprensa em dezembro de 2017, provocando muita controvérsia, até sua aprovação oficial pelo Governo Federal, em janeiro de 2019. Relembrar esta mostra torna-se importante no contexto do debate do acordo de fusão, tão crucial para o incerto futuro da indústria aeroespacial brasileira.
A segunda exposição, realizada quase um ano depois da primeira, não necessariamente versou sobre aviação, mas sobre o estilo streamline, parcialmente inspirado no design aeronáutico e que, por outro lado, também realimentou formalmente o design de aeronaves, equipamentos aeronáuticos, trens e automóveis: Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro, com curadoria de Adélia Borges e Patrícia Fonseca, montado no Museu da Casa Brasileira – MCB de 21 de abril a 03 de julho de 2018, que também obteve grande êxito de público.
Dedicada ao estilo streamline de design (também chamado de streamform ou streamlining) da primeira metade do século 20, apresentou mais de 250 magníficos objetos e produtos industriais fabricados nos Estados Unidos da América, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, da antiga Tchecoslováquia, Áustria, Holanda, Japão, Bélgica, Canadá e da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS.
Os Curadores Adélia Borges e Patrícia Fonseca demonstraram um tour-de-force curatorial ao selecionar, e conseguir emprestar para a mostra, estes artefatos carinhosamente conservados em boas condições, de coleções particulares pertencentes a Giacomo Favretto, Renato Oliva, Gilberto Moscovich e à família do arquiteto e designer Charles Sampson Bosworth (1914-1999). A exposição teve patrocínio da Tok&Stok.
Aqui este autor também não poderia deixar de reconhecer o mérito e o amor destes colecionadores em preservar itens tão belos, raros, mas produzidos em massa – e que poderiam cair facilmente na lata de lixo, depois que deixassem de funcionar ou diante de uma tecnologia mais avançada que os substituísse no mercado consumidor. Tais colecionadores tiveram conhecimento e critério, pois muitos destes produtos foram desenhados por alguns dos maiores designers da primeira metade do século 20, como Raymond Loewy, Norman Bel Geddes, Walter Dorwin Teague, Henry Dreyfuss, Isamu Noguchi e Buckminster Fuller. E produzidos por algumas das marcas mais prestigiadas até os anos 1960, como Black & Decker, Eastman Kodak, Electrolux, Gaggia, General Electric, Gillette, Osterizer, Philips, Polaroid, RCA Victor, Sears, Steam-O-Matic e Westinghouse. Nomes que desapareceram neste atual século, onde o virtual e os meios de acesso ao imaterial parecem se tornar mais objeto de desejo do que o artefato real, de uma marca tradicional do século 20.
O memorial da mostra, no website (1), destaca que muitos destes artefatos, pertencentes a coleções particulares, também constam dos acervos de design de museus tais como o Cooper-Hewitt Design Museum do Smithsonian Institution (Nova York), Centre George Pompidou (Paris), Montréal Museum of Fine Arts e Victoria & Albert Museum (Londres). Conforme o memorial da exposição, o fotógrafo e colecionador Giacomo Favretto contribuiu de forma decisiva para a exposição, através do empréstimo de parte de sua coleção de mais de 600 peças streamline design.
Lamentavelmente, quando este autor visitou a exposição, não conseguiu adquirir o catálogo. Segundo os funcionários do museu, já estava esgotado devido a tiragem limitada. Na Internet, no website do MCB, também não estava disponível para download no formato .pdf. Mais tarde, após a redação deste artigo, este autor foi avisado de que o catálogo estava apenas liberado para consulta online na plataforma Issuu (2). Este formato é muito ruim para estudo, ao menos para este autor (bem) para lá da meia idade, que prefere sempre ler qualquer publicação em papel, para efeito de pesquisa e reflexão. Este artigo, portanto, foi produzido sem a utilização do breve catálogo, de design gráfico elegante como a exposição em si.
Aliás, a publicação disponível no Issuu foi decepcionante, tendo-se em vista a escala da exposição. Com apenas dezoito breves páginas, está longe de ser um catálogo completo, sem informações detalhadas destes 250 raros e preciosos itens, de um tema tão pouco pesquisado como o Streamline Design. De fato, nem sequer constitui um catálogo raisonné, apesar do belo design gráfico e dos textos críticos informativos. De novo, acentuo que este artigo foi produzido apenas com o conhecimento e referências pesquisadas pelo autor, incluindo textos explicativos na própria mostra (anotados pelo autor em várias visitas) e textos das curadoras nas páginas da exposição, no website do MCB.
Há quase trinta anos atrás, os irmãos Ethan e Joel Coen, já cineastas consagrados e de prestígio, fizeram um filme hoje esquecido e difícil de encontrar em DVD ou na Netflix, que notoriamente não prima por adquirir filmes que sejam anteriores ao início do século 21. Trata-se de The Hudsucker Proxy, de 1994, título de difícil tradução (no Brasil, foi lançado como “Na Roda da Fortuna”). O elenco era ilustre, inclusive pelo engajamento político inconformista: Tim Robbins (como anti-herói tipo filme de Frank Capra); Paul Newman (como vilão velhaco capitalista típico de um filme de Capra) e Jennifer Jason-Leigh (a proverbial heroína espevitada e cheia de atitude dos filmes de Capra).
O roteiro, elaborado pelos Coen e por Sam Raimi, homenageava Capra e a América urbana dos anos 1930, mas numa visão distópica, um pouco sádica e mórbida, típica dos irmãos Coen, longe das utopias idealistas dos filmes de Capra. Não que Frank Capra fosse alienado ou fora da cruel realidade econômica da Grande Depressão pós-crack de 1919. Alguns consideram que seus filmes eram propaganda do New Deal, mas Capra, longe de ser conformista, mostrava como as coisas eram, mas também como poderiam e deveriam ser. Entretanto, Hudsucker Proxy realmente não era muito bom, decepcionou.
De memória, e sei que ela pode falhar, lembro as resenhas do filme na época. Como a da Richard Schickel para a revista Time, em que exaltava a beleza plástica dos cenários e da arquitetura de uma Nova York imaginária Art Déco, perguntando como tal estilo algum dia conseguiu sair de moda. Já este resenhista, como sempre apaixonado pela arquitetura vertical norte-americana dos séculos 19 e 20, e já envolvido pela obra de Frank Lloyd Wright (que influenciou a plasticidade Art Déco), não poderia deixar de sair deslumbrado do cinema e procurar por mais informação sobre um estilo inspirado tanto na aerodinâmica como nas formas de navios e aviões.
O Art Déco pode ser considerado uma variação do Classicismo Moderno (pela combinação de formas classicistas mais simplificadas, com ornamentação mais abstrata). Por sua vez, o Art Déco se manifestou em duas vertentes particulares, de influências distintas: zigzag moderne (abstração e recombinação de motivos decorativos do imaginário gráfico da era industrial e da arte oriental, pré-colombiana, e do Antigo Egito, interpretadas por arquitetos formados na tradição das Belas Artes) e o streamlined moderne, caracterizada por inspiração industrial, mecanicista, procurando expressar a ideia de velocidade, aceleração, eletricidade, voo; com ênfase nas curvas, planos/ritmos/linhas horizontais, superfícies lisas e estriadas, cores fortes. Há influência de Antonio Sant’Elia, do Futurismo e do Expressionismo Alemão, principalmente na arquitetura streamline. Talvez mais do que um estilo, uma linguagem inspirada na velocidade, na aceleração, nas máquinas como carros, trens, navios e aviões da primeira metade do século 20. Enfim, duas grandes paixões deste resenhista: aeronaves antigas e o Art Déco / Streamline (3).
Se o Art Déco surgido na década de 1920 já perdia força ao fim dos anos 1930, o streamline design perdurou até fins da década de 1950, como demonstrado pelos exemplos da exposição Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro. Conforme explica o memorial da exposição no website:
“O Streamline surgiu nos Estados Unidos como uma resposta à crise econômica de 1929. Em 1933, em função da regulamentação dos preços dos bens de consumo, os industriais incorporaram designers nas linhas de produção das fábricas e isso fez com que os produtos tivessem um novo diferencial no mercado de consumo. Pesquisas feitas desde o final do século 19, abrangendo a aplicação de princípios aerodinâmicos em veículos como os trens e aeronaves, passaram a se estender praticamente a todos os segmentos de produtos. Independente do uso a que se destinavam, os objetos ganharam formas arredondadas que remetem a velocidade e modernidade, representando a promessa de um mundo melhor, um futuro promissor em contraposição à devastadora crise, da qual o país começava a se recuperar” (4).
No mesmo memorial, as curadoras observam que a exposição constituiu “uma rara oportunidade para o público brasileiro conhecer ao vivo peças que estão nos compêndios de história do design” (5) e que “o streamline se firmou como um dos estilos mais populares do século 20 e também marca a implantação da profissão do designer industrial nos Estados Unidos” (6). De fato, a exposição mostra como o estilo streamline se disseminou desde os trens, aviões, automóveis, motocicletas, bicicletas a utensílios domésticos incluindo geladeiras, fogões, ventiladores, rádios, TV e toca-discos; brinquedos, ferramentas de trabalho manual, equipamentos de escritórios, brinquedos etc.
Os críticos mais impiedosos podem desprezar o Art Déco e o streamline como uma expressão ingênua de uma paixão, sem senso crítico, pela tecnologia. Mas para este autor, o streamline expressa um entusiasmo genuíno, uma alegria criativa que se perdeu em favor de discursos mais sisudos, engajados e pomposos que, por sua vez, ninguém mais acredita (seriamente) nos tempos cínicos em que vivemos. Prefiro sinceramente o estilo ingênuo, mas honesto e brioso do streamline. Estilo de quem gosta mesmo de desenhar a mão, como eu. Esta foi uma mostra que despertou neste autor a nostalgia por uma época que não viveu.
O cuidadoso trabalho de Curadoria incluiu registrar nas fichas de cada artefato, além da autoria do designer, se o objeto faz parte dos acervos do Cooper Hewitt Smithsonian Design Museum em Nova York, um dos 19 museus da rede da Smithsonian Institution, fundado em 1890-97, dedicado a 240 anos da história do design, da estética e da criatividade nos Estados Unidos da América; ou ainda do National Museum of American History, também parte da rede da Smithsonian Institution, fundado em 1980 a partir do antigo Museum of History and Technology aberto em 1964.
É interessante observar que não se conseguiu obter a autoria de alguns itens expostos, o que mostra como o campo de pesquisa na História do Design streamline ainda tem horizontes a se desbravar, no Brasil e no Exterior.
Entre os autores dos artefatos, constaram grandes mestres do design norte-americano da primeira metade do século 20, como Raymond Loewy, Henry Dreyfuss e Walter Dorwin Teague.
Raymond Loewy (1893-1986), francês de origem, foi um dos maiores designers dos Estados Unidos da América, com uma carreira intensa e prolífica que durou cerca de setenta anos. Entre suas obras mais conhecidas estão as marcas e artefatos da Shell, Exxon, BP, TWA (a saudosa Trans World Airlines); os logos e embalagens da Lucky Strike, o redesenho em 1955 da garrafa de Coca-Cola, os refrigeradores azuis Coldspot da Sears (com sua legendária marca em “V”), as locomotivas GG1 e S1 da Pennsylvania Railroad, automóveis como o Studebaker Avanti e vários outros modelos Studebaker, além do Lincoln Continental de 1941, o Lancia Flaminia Loraymo (1960), entre outros; e os interiores da cápsula Apolo e da estação espacial orbital Skylab, ambos para a Nasa (anos 1960-1970). Este autor ainda cresceu e conviveu com produtos desenhados por Loewy na adolescência e na graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP.
Henry Dreyfuss (1904-1972), designer e arquiteto, foi aprendiz, e depois rival de Norman Bel Geddes. Tornou-se uma referência da profissão, pela abordagem científica, funcional e racional no design, buscando a forma e a dimensão através da aerodinâmica, da ergonomia e antropometria, materiais e técnicas novas de produção etc. Introduziu no projeto e ensino de design as cartas antropométricas e manuais de escala humana. Entre suas obras mais conhecidas estão as locomotivas e vagões de passageiros streamline para os trens Mercury (1936) e 20th Century Limited (1938) da New York Central Railroad; eletrodomésticos Hoover, máquinas fotográficas Polaroid e as célebres séries de telefone Princess (1959 em diante) e Trimline (1965 em diante) para a Bell Telephone e a Western Electric, até hoje modelos de originalidade, perfeição formal e elegância ergonômica. Comparando com os modelos atuais de telefone fixo, minúsculos e ruins de manusear, é possível perceber como o design nacional e internacional decaiu desde os anos 1970, apesar de tantos avanços na digitalização. Este autor também cresceu e conviveu com produtos desenhados por Dreyfuss na adolescência e na graduação (como no caso dos telefones).
Walter Dorwin Teague (1883-1960) foi designer, arquiteto, ilustrador, designer gráfico, escritor, empresário – reconhecido pela produção de artefatos originais e referenciais para a Kodak, Polaroid, Boeing, NASA etc.
Comentar cada um dos itens da mostra demandaria um texto da escala de um catálogo expositivo, então registro aqui alguns dos exemplos mais extraordinários. Por exemplo, no salão de entrada, estiveram expostos um motor de popa MB Waterwatch (1931), design de John D. Morgan para a Sears, modelo que também consta do Cooper-Hewitt Museum; uma máquina de café Gaggia de 1950, uma bicicleta Roadmaster Luxury Liner (1948) da Cleveland Welding (designer não conhecido); bicicleta Monark and Firestone Cruisers Super DeLuxe de 1949, com belíssimo tom de azul (designer não conhecido); um magnífico carrinho de brinquedo Maynard feito com um precioso trabalho de marcenaria; um compressor de ar DeVilbiss de 1946, projeto Sundberg-Ferar Co.; uma caixa de ferramentas com rodinhas Torpedo da Blackhawk de 1940 (designer não conhecido), incrível em seu design teardrop que lembra um zepelim, ou espaçonave do tipo que Alex Raymond desenhava nos quadrinhos Flash Gordon. Aliás, a máquina de café Gaggia, com sua iluminação azul deslumbrante (neon?), é prova concreta de uma época em que os designers criavam com o cérebro e a graça da mão livre sobre o papel branco, não com o computador e sua minúscula tela.
Também consta desta sala um flutuador do hidroavião Grumman Albatross de 1940 – aqui este autor arrisca uma dúvida acerca desta data. O Albatross voou pela primeira vez em 1947 (portanto, não existia em 1940) e teve vida operacional longeva. Lembro inclusive de tê-los visto voando na Força Aérea Brasileira – FAB e na Guarda Costeira dos Estados Unidos da América ainda nos anos 1970 (7).
Perto destes, um item raríssimo que constituiu grande e feliz surpresa para mim: um goniômetro de DC-3 (1933), mais exatamente um radiogoniômetro do Douglas DC-3, equipamento que permite a utilização da radiogoniometria para orientação sobre direção ou localização onde o avião se encontra, caso esteja perdido e sem referências geográficas.
Jamais passaria pela cabeça deste autor que algum dia iria ter o grato prazer, graças a esta mostra, de escrever a palavra “radiogoniômetro” num artigo. Mas note-se que, no caso do flutuador e do goniômetro, suas formas são derivadas de necessidades aerodinâmicas funcionais, não são exatamente expressão de gestualidade formal. Isto está patente no desenho do flutuador que alude tanto às necessidades de vencer as tensões do arrasto em voo como de deslocamento náutico.
Na sala seguinte, exemplos raríssimos e surpreendentes, como a Geladeira Frigidaire de 1955, design de Raymond Loewy; ao lado de fogão de aço a gás 36 polegadas da O’Keefe and Merritt (1946).
Todos os eletrodomésticos, incluindo aspiradores, sejam de marcas americanas ou da Electrolux sueca, tinham designs extraordinários (alguns prateados ou cromados também lembrando os foguetes de Flash Gordon criados por Alex Raymond). Destaque para o aspirador #28 da Hoover de 1936, design de Henry Dreyfuss junto com outro aspirador, este sendo um Kirby Model 2C1937, design de Scott Fetzer.
Entre as utilidades domésticas, torradeiras, liquidificadores, chaleiras, assadeiras (inclusive de batatas), batedeiras, baldes para gelo, jarras, bules, garrafas térmicas, ferros de passar. Entre elas, chamou a atenção a magnífica Jarra Normandie, design de Peter Muller-Munk (1935) para a Revere Copper and Brass, ainda hoje produzido. Também acervo do Brooklyn Museum, foi inspirado no desenho das chaminés e na volumetria da proa do legendário transatlântico SS Normandie (1935, projetado pelo grande engenheiro Vladimir Yourkevich) da Compagnie Genérale Transatlantique, e saudado na imprensa americana e francesa da época como um símbolo máximo de modernidade. Exposto junto com a chaleira 4133M, design de John Gordon Rideout para a Wagner Manufacturing, ambos também selecionados para o acervo do Cooper-Hewitt Museum.
Outros destaques: garrafa térmica Ball de 1939 em aço cromado, baquelita e vidro, design de A.H. Payson para a American Thermos Bottle de Connecticut, mais precisamente a Thermosphere Jug Model 7570, projetada por Pyason com Charles Duevel; ao lado da batedeira Osterett #140, do designer Alfonso Ianelli para a John Oster Manufacturing; e de outra batedeira para comparação, a Mixmaster Junior de 1945, também design de Alfonso Iannelli, para a Sunbeam Corporation. Todos estes artefatos constando do acervo do Cooper-Hewitt Museum.
Encontrar um artefato desenhado pelo ítalo-americano Alfonso Iannelli (1888-1965) foi outra grata surpresa. Escultor, artista, arquiteto, cenógrafo, designer, sua obra foi redescoberta no bojo das pesquisas sobre os colaboradores de vanguarda estrangeiros de Frank Lloyd Wright (1867-1959), em sua fase da pradaria, inspirada parcialmente pelo Art Nouveau e pela Sezession vienense. Iannelli colaborou com Wright na companhia de Richard Bock, George Mann Niedecken e Blanche Ostertag, entre outros. Como designer, Iannelli destacou-se pelos projetos da máquina de café a vácuo C-20 Coffeemaster e da torradeira T-9 Electric Toaster para a Sunbeam Products (8).
Notáveis também o ferro de passar Steam-O-Matic de 1950; junto com ferro de passar Petipoint W410, design de Clifford Brook Stevens e Edward Schreyer, belíssimo, este também selecionado para o acervo do National Museum of American History; e mais um ferro de passar, este francês, Ultramark Techno 4-4105 da Novey-Siebert. Também se destacaram a belíssima máquina de costura alemã Elcona ZQ 1a da Zundapp (1950) de aço pintado azul; e uma impressionante máquina de lavar roupa cilíndrica, em bom estado de conservação, GE Horton MFG 492P dos anos 1940.
Entre os ventiladores, a surpresa de encontrar um Vornado Fan 12PI azul de 1945, feito de alumínio, aço esmaltado e cromado, design de Richard Ten Eyck para a D.A. Dutton, de estilo similar a ventilador / aquecedor General Electric GE 1940. Também junto aos dois, um exemplar de pedestal do Vornado 12PI. Os ventiladores Vornado estão entre os mais emblemáticos designs produzidos nos Estados Unidos da América, tendo sido incluídos nos cenários do filme Blade Runner, o original de Ridley Scott (1982). Todos os exemplos mostrados parecem ser mais resistentes do que os de plástico que existem hoje no mercado.
Todas as luminárias presentes podiam ser consideradas objeto de desejo, destacando entre elas a M4 de mesa, design de Walter Dorwin Teague para a Polaroid (1936) em baquelita e alumínio, também no acervo Cooper-Hewitt Museum e do Montréal Museum of Fine Arts. Perto deste, a luminária de mesa Bolide (1945), em baquelita, aço cromado e cobre; atribuído a Gustave Miklos, mas com patente atribuída a André Mounique para a Maison Juma, e que consta do acerco do Wolfsonian Museum de Miami, conforme a etiqueta da mostra.
Os carrinhos de brinquedos igualmente atraíram muito a atenção. Primeiro, numa ilha no meio do salão, triciclos, patinetes, um tipo de skate chamado “Sea Rocket”, com uma prancha sobre trilhos tipo esqui e deslizadores / flutuadores laterais (serviria na neve, na água ou sobre uma pista lisa?). Destaque também para um patinete streamline vermelho que, em termos de estilo, é muito superior aos medíocres modelos atuais que vemos nas ruas. Os designers atuais sofrem de anorexia criativa ou falta de cultura em História do Design?
Numa das paredes, carrinhos menores, como um raro modelo de carro voador, tema que voltou à moda nos últimos dois anos, sendo este um exemplar provavelmente dos fins dos anos 1950, com asas e uma hélice na grade do radiador (!). Grande parte deles não estava identificada, mas este resenhista conseguiu reconhecer alguns dos carros experimentais de teste de alta velocidade para quebra de recordes. Dois carrinhos de carroceria curva, azul claro e prateada, que parecem inspirados em modelos alemães do pré-guerra. Já o carro dourado de linhas retas e angulares com certeza é uma miniatura do Golden Arrow inglês de 1929 que, pilotado pelo Major Henry Segrave, atingiu a velocidade recorde de 372,341km/h. Ao lado deste, um Sunbeam vermelho 10000hp de 1923, no qual Segrave atingiu o recorde de 323,973km/h; e um Bluebird Campbell-Napier-Rarton azul de 1931, projetado por Reid Rarton para o piloto Malcolm Campbell quebrar o recorde de 396km/h. Todos estes racers ingleses constam do acervo do National Motor Museum, Beaulieu em New Forest, Hampshire (9).
Numa segunda sala, temos montados nas paredes várias réplicas em escala de trens de grande velocidade do pré-guerra, prateados ou vermelhos, apoiados sobre trilhos, produzidos para a indústria de brinquedos American Flyer (fundada em 1905), incluindo modelos do célebre Pioneer-Zephyr 9900 (1934), design de Edward G. Budd; do Commodore Vanderbilt, design de Carl F. Kansola (1934); do Union Pacific Pullman M-10.000 (1934), design de William Bushnell Stout, E.C. Adams, M.P. Blomberg, W.H. Massey.
Perto dos trens, dialeticamente, modelos em escala de aviões e dirigíveis, como o Graf Zeppelin L-2127, da Luftschiffbau alemã (1928); um dirigível americano tipo blimp antigo da Goodyear de 1938, uma bela réplica de um Lockheed Constellation (1943-1958) com as cores e logos da saudosa TWA Trans World Airlines; um belo modelo de um upgrade deste, um magnífico Super Constellation da Joustra francesa (1960); e um modelo, também magnífico, suspenso por fios no forro da sala, de um bimotor Douglas DC-3 “Gooney Bird” da United Airlines, projeto do legendário engenheiro da Douglas, Arthur E. Raymond.
O DC-3 foi mais emblemático e bem-sucedido avião de transporte de passageiros da primeira metade do século: mais de 16.000 aviões de várias versões civis e militares do DC-3 foram produzidos de 1936 a 1950 (cerca de duzentos deles ainda voam nesta segunda metade do século 21, eis um aeroplano que não sofre de fadiga metálica!). Quem já viu um DC-3 em voo, como este resenhista ainda se lembra da infância, não se esquece do ronco dos motores radiais Pratt & Whitney R1830 Twin Wasp, de som grave e ritmado, bem mais classudo do que o ruído quase padronizado dos turbofan e turboélice dos dias atuais (10).
Assim, num só canto desta sala, tivemos o mais célebre dos zepelins da Luftschiffbau Zeppelin, duas variantes do Constellation, o mais belo e elegante avião de passageiros quadrimotor do século 20, e o legendário DC-3 nas cores e marca da United.
E no canto oposto, um raríssimo carrinho de bebê alemão de 1930, sem indicação de designer e fabricante, combinando de forma rica e surpreendente palha, aço, ferro pintado e vinil, numa magnífica combinação, talvez o artefato mais deslumbrante da mostra.
Perto destes, mais exemplos de bicicleta e motocicleta, impressionantes pela capacidade criativa dos designers da primeira metade do século 20. Primeiro, atachada à parede como a obra de arte que realmente é, uma bicicleta Bowden Spacelander de 1946, design do inglês Benjamin George Bowden (1906-1998) em fibra de vidro e alumínio, fabricada nos Estados Unidos da América e que consta do acervo do Brooklyn Museum. Bowden foi considerado um dos maiores designers da Inglaterra. Junto desta, em pedestal, uma magnífica motocicleta Indian Chief (1948), design de Charles B. Franklyn para a Indian Motorcycles em aço cromado-niquelado e pintado. Sem palavras.
A seguir, um pequeno conjunto que homenageia os lendários ônibus da Greyhound Lines, presente em tantos filmes de Hollywood dos anos 1930 em diante e canções pop americanas desde 1945, tendo na parede, justamente um cartaz em metal da marca símbolo da linha de ônibus fundada em 1914, o célebre galgo inglês branco correndo (que são considerados os cachorros de corrida mais rápidos do mundo, daí a denominação da linha). Em displays, cartazes, postais, e uma miniatura de um ônibus Greyhound, possivelmente o GMC PD-3751 Silversides dos anos 1940, sempre lembrado pelas linhas curvas e a proverbial textura horizontal lateral corrugada, as estrias simbolizando rapidez, velocidade, eficiência, conforto. O Silversides, como GMC Scenicruiser de 1954, foram projetados por Raymond Loewy para a GM.
Ao lado, na parede, uma série muito curiosa de seis ornamentos de capô para carros esportivos Pontiac da GM (de 1948 a 1953), como pequenas gárgulas com o perfil e cocar do chefe indígena Pontiac, figura importante da história americana no século 18. Para este autor, o último dos ornatos, visto de cima ao invés de vista lateral, parecia ser mais inspirada nos gigantescos aviões experimentais do tipo “asa voadora” Northrop YB-35 a YRB-49A, criadas por Jack Northrop em 1944-1949 (11).
Mais adiante, outro pequeno conjunto, de posters e miniaturas coloridas de brinquedo, desta vez dedicado aos automóveis Auburn Cord, montadora emblemática da Era do Jazz, pioneira pela inovação tecnológica e qualidade estilística, mas falida em 1937. Como diz a etiqueta, até hoje os colecionadores consideram os Cord entre os automóveis mais bonitos da história.
Frank Lloyd Wright, em An Autobiography (1932) (12), saudou a aparição do Cord como o primeiro automóvel americano a ter um design tão expressivo e original como o dos melhores carros europeus (foi proprietário de dois: um Phaeton e o outro um Cabriolet L-29 de 1930). Wright era um apaixonado pelos automóveis desde que eles surgiram e foi proprietário de carros Mercedes-Benz, Duesenberg (montadora alemã associada à Cord), Bentley, Jaguar, Crosley, Lincoln Continental, Packard, Cadillac e Porsche, entre outros, quase todos na cor vermelha ou vermelha-cherokee, tom que ele mesmo especificou para as montadoras, baseado na cerâmica indígena cherokee. Há depoimentos não confirmados na historiografia de que também possuiu uma Ferrari e de que o Porsche Cabriolet 356 de 1953 foi projetado com a colaboração de Wright (13).
Os modelos de brinquedo da mostra eram do Auburn Cord ACD 810-812 (1930), design de Gordon Buehrig, também preferido por Carmen Miranda; e um SU831 Speedster.
É curioso observar que Wright não teceu comentários sobre o Art Déco ou o estilo streamline, mas pode-se ver muito da plasticidade streamline nas formas curvas, industriais, aerodinâmicas e texturas horizontais no seu projeto para a sede da SC Johnson em Racine, Wisconsin (1936-39).
Na sala seguinte, um mostruário de artefatos associados a tarefas ou hábitos de escritório, que inclui uma grande impressora de cheques Remington Rand Streamliner de 1935, design de H.E. Bridgewater e J.A. Zellers, que domina um ambiente com uma série artefatos de escala relativamente mais modesta dos que a dos brinquedos, utensílios e eletrodomésticos vistos antes: cachimbos, isqueiros de mesa, estenótipo (máquina de estenografia), máquinas registradoras e de somar, apontador de mesa, mata-borrão, grampeadores, calendário de mesa, termômetro e medidor de umidade de mesa, porta-durex de mesa, microfones, relógios de mesa para escritório, intercomunicadores, projetores de cinema e de slides além de eletrodomésticos do pós-guerra como televisores e vitrolas.
Curiosamente faltam cinzeiros. Quem ainda viveu nos anos 1960 pode se lembrar da onipresença destes artefatos nas mesas de salas de visita, salas de espera, escritórios, salas de reuniões, bares e até restaurantes – muitos deles ainda no estilo streamline, com linhas horizontais curvas, cromadas e metálicas. Desapareceram de vista do cotidiano a partir dos anos 1990, por óbvias razões. Talvez nem tenham sido preservados, ou lembrados para a mostra, pois podem ser considerados como presenças sinistras de uma época menos saudável.
O grande destaque final foi um rádio de grande porte Spartan Bluebird 557 de 1936, com um belo tom de azul, em madeira, espelho e metal num perfeito estado de conservação, considerado um dos melhores designs de Walter Dorwin Teague para a Sparks Worthington.
Por fim, vários modelos de compressores de ar, irrigadores, engraxadeiras, serras tico-tico, lixadeira etc. sem indicação precisa de fabricante, designer e data de fabricação – muitos deles remetendo aos desenhos de Alex Raymond nos HQs Flash Gordon. Destaque para o ferro de passar com baquelita e borracha. Todos entre as décadas de 1930 e 1950.
O tema do design aerodinâmico não se encerra com estas mostras, evidentemente. O papel dos grandes engenheiros aeronáuticos, bem como dos inventivos designers pioneiros, com seus aviões construídos em empresas particulares e instituições de ensino não pode ser esquecido, seguidores como são da tradição iniciada por Bartolomeu de Gusmão e Santos-Dumont. Quanto à segunda exposição, fica a pergunta sobre como o streamline se manifestou na arquitetura e no design brasileiro da primeira metade do século 20.
A primeira exposição destacou o papel crucial de Guido Pessotti para o desenvolvimento bem sucedido da Embraer, mas ainda faltam outros personagens importantes, como Ozires Silva, Neiva, Kovács, além dos pioneiros do IPT / Companhia Paulista, Guedes Muniz, Sousa Reis, Ypiranga, Scoda, Quasar, Wega, Stickel, Aeropepe, Universidade Federal de minas Gerais – UFMG, ACS e, especialmente o caso da Novaer, de Luiz Paulo Junqueira (1951-2009), tendo como colaborador o incansável Kovács. E o trabalho dos designers brasileiros envolvidos com o streamline também mereceria uma exposição de porte.
notas
NA – Agradecimentos a Giancarlo Latorraca e Amanda Mitre. Ver a primeira parte do artigo: FUJIOKA, Paulo Yassuhide. Duas exposições de design aeronáutico. Parte 1. Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 235.02, Vitruvius, dez. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/20.235/7589>.
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Mostra | Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro. Museu da Casa Brasileira <https://mcb.org.br/pt/programacao/exposicoes/mostra-design-aerodinamico-metafora-do-futuro/>.
2
Museu da Casa Brasileira. Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro. Catálogo da exposição. São Paulo, 2018 <https://issuu.com/museudacasabrasileira/docs/cat_logo_design_aerodin_mico>.
3
WEBER, Eva. Art Déco in America. Nova York, Exeter Books/Bison Books, 1987.
4
Mostra | Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro (op. cit.).
5
BORGES, Adelia. In Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro (op. cit.)
6
FONSECA, Patrícia. In Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro (op. cit.)
7
Ver ANGELUCCI, Enzo. Os Aviões – Dos primórdios da Aviação até os dias atuais. São Paulo, Melhoramentos, 1975 e TAYLOR, John W.R; MUNSON, K. History of Aviation. Londres, New English Library/Times Mirror Group, 1978.
8
“Alfonso Ianelli –Biography – ArchTech Gallery” <http://www.architechgallery.com/artist/iannelli_biography.htm?iannelli>.
9
Ver website do National Road Museum. <https://nationalmotormuseum.org.uk/collections/vehicles/>.
10
Ver ANGELUCCI, Enzo. Os Aviões – Dos primórdios da Aviação até os dias atuais. São Paulo-SP: Companhia Melhoramentos, 1975 e TAYLOR, John W.R. e MUNSON, K. History of Aviation. Londres: New English Library / Times Mirror Group, 1978.
11
Ver TAYLOR, John W.R. e MUNSON, K. History of Aviation. Londres: New English Library / Times Mirror Group, 1978.
12
WRIGHT, Frank Lloyd. An Autobiography. Nova York, Duell, Sloan and Pearce, 1943, p. 411.
13
STEFFENSEN, Ingrid. The Auto as Architect's Inspiration. The New York Times, Nova York, August 6th, 2009 <https://www.nytimes.com/slideshow/2009/08/09/automobiles/0809-wright_2.html>.
sobre o autor
Paulo Yassuhide Fujioka é arquiteto e urbanista (FAU USP) e professor doutor (IAU USP) desde 2005. É autor da dissertação de mestrado O Edifício Itália e a arquitetura dos edifícios de escritórios em S. Paulo (FAU USP, 1996). Também é autor da tese de doutorado Princípios da arquitetura organicista de Frank Lloyd Wright e suas Influências na arquitetura moderna paulistana (FAU USP, 2003). De 1997 a 2000 foi Assistente de Curadoria da 3ª e da 4ª Bienal Internacional de Arquitetura em São Paulo, eventos organizados pela Fundação Bienal e pelo Instituto de Arquitetos do Brasil. Como arquiteto foi colaborador dos arquitetos Hector Vigliecca (1986-1989), Affonso Risi, Jr. e Leo Tomchinsky (1989-1991).