Ambiente urbano e patrimônio cultural
O rápido processo de urbanização pelo qual as cidades passaram desde a Revolução Industrial é responsável por significativas alterações no cenário urbano, modificando, inclusive, o modo de vivenciá-lo. Problemas sociais, descaso com os recursos naturais, consumo exacerbado de energia, poluição e crescimento econômico fundamentado na competitividade e no enriquecimento a qualquer custo são algumas das problemáticas a serem enfrentadas pelos atuais gestores das áreas urbanas. Nesse contexto, cada vez mais marcado por danos à vitalidade urbana, os conceitos de sustentabilidade têm ganhado importância na pauta das demandas mundiais. Busca-se um planeta socialmente justo, economicamente equilibrado e atento às questões ambientais (1).
Entende-se o ambiente urbano como uma evolução contínua no tempo. É de fundamental importância o incentivo a um desenvolvimento sustentável atento não só aos aspectos relativos ao meio ambiente e à economia, como também à dimensão cultural própria das comunidades que habitam ou transitam nesse ambiente. As dimensões complexas do patrimônio cultural urbano possuem um vínculo com o campo psicológico, uma vez que as permanências urbanas são capazes de estabelecer pontes com o passado, reconhecendo valores, modos de vida e identidades de cada grupo social, e podem contribuir como referências para a construção do futuro. O patrimônio cultural, seja por seus bens materiais ou imateriais, ajuda a construir a memória de uma cidade, produzindo locais distintos, impregnados de valores para cada contexto local (2). Segundo Flávio Carsalade, é importante entender que um bem cultural é a parte, e patrimônio cultural, o conjunto dos bens:
“Bem (cultural patrimonial) é a unidade de preservação do patrimônio cultural. O bem, como indivíduo, é a substância concreta da coisa dotada de significado patrimonial e que integra o rol do patrimônio coletivo, herança selecionada por um povo para referenciá-lo e constituir o conjunto que atravessa a temporalidade de suas gerações” (3).
Enquanto legado a ser herdado pelas próximas gerações, os bens culturais devem também ser passíveis de inserção junto às diretrizes das certificações ambientais que visam a sustentabilidade, aferindo a qualidade de bairros e comunidades do ponto de vista das suas memórias. Particularmente, neste texto, a ênfase será desenvolvida em relação ao patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico, que faz parte das cidades e testemunha suas trajetórias.
Diante das considerações expostas suscintamente, coloca-se a seguinte pergunta: qual a importância conferida às questões relativas à preservação do patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico nas ferramentas de certificação ambiental? Considera-se a hipótese de que o patrimônio cultural das cidades é abordado de maneira superficial quando comparado aos aspectos ambientais, sociais e econômicos, sem apresentar um conjunto de diretrizes específicas que preservem a sua continuidade na cidade do futuro. Ressalta-se que essa pesquisa teve como objetivo averiguar de que modo são abordadas as questões relacionadas ao patrimônio cultural pelos selos ambientais Leadership in Energy and Environmnetal Design for Neighborhood Development – Leed-ND e Alta Qualidade Ambiental – Haute Qualité Environnementale – Aqua-HQE Bairros e Loteamentos, a fim de compreender o nível de detalhamento e a importância conferida ao patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico, relacionado às identidades e às memórias das comunidades locais, no processo de avaliação da qualidade ambiental do espaço urbano.
Essa preocupação é atual e relevante, pois considera aspectos socioculturais, ambientais e econômicos de maneira relacionada entre si. Ressalta, também, a viabilidade da adaptação do patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico a usos contemporâneos, possibilitando não apenas a manutenção de elementos considerados símbolos das memórias e das identidades locais, como também estimulando a necessidade da reabilitação do patrimônio arquitetônico para novos usos, incrementando a diversidade urbana e reduzindo o impacto ambiental causado pelas demolições ou pelos gastos de energia e recursos naturais em novas edificações. Além disso, sua valorização pode vir a fomentar novas atividades econômicas relacionadas ao turismo, modificando a economia e a sociedade pela geração de emprego e renda (4).
Sustentabilidade do patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico
Ao longo do tempo, a sustentabilidade tem se consolidado como alternativa ao modelo de desenvolvimento que vem agravando os problemas sociais e ambientais, provocando impactos e desequilíbrios (5). A partir de meados do século 20, diversas publicações, debates e conferências, em nível internacional, preocuparam-se em discutir a preservação do meio-ambiente, o crescimento econômico e populacional e as desigualdades sociais. Nesse contexto, o conceito de sustentabilidade foi vinculado ao equilíbrio entre as questões de cunho ambiental, econômico e social, constituindo um tripé essencial à sobrevivência das cidades. Todavia, posto que a construção do pensamento sustentável está em constante evolução, recentemente alguns autores agregaram novas dimensões. Ignacy Sachs entende a sustentabilidade como o conjunto das dimensões social, econômica, ambiental, ecológica, territorial, cultural e de política nacional e internacional (6).
A inserção da cultura, enquanto componente do desenvolvimento sustentável, alertou para a possibilidade de perdas irreversíveis do patrimônio cultural e, em contraponto, para a sua relevância. A Organização das Nações Unidas para Desenvolvimento, Ciência e Cultura – Unesco, em consonância com a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2003), passou a defender a importância do patrimônio cultural em cada comunidade, reafirmando que ele é constituído pelos bens culturais materiais e imateriais, testemunhos distintos do reconhecimento de valores, crenças e vivências passadas de cada sociedade.
A diversidade cultural, expressão das identidades dos diferentes povos ao redor do mundo, é dinâmica e capaz de se reconstruir com o passar do tempo. Admite outras influências, transformando-se e adquirindo novos significados. Sua existência é indissociável da trajetória humana. Trata-se de um direito humano universal que deve ser preservado para as futuras gerações enquanto testemunho de momentos da trajetória histórica (7).
Registros que justificam o momento presente, as áreas de interesse cultural são capazes de reportar imagens únicas dos lugares urbanos, revelando suas particularidades e estabelecendo uma intensa relação com a população, sendo associadas à qualidade de vida. Esse vínculo estabelecido entre comunidade e patrimônio edificado é facilitado devido às permanências urbanas, que se destacam na paisagem, facilitando a orientação, atributo que Kevin Lynch denominou de legibilidade. Do mesmo modo, a identidade de cada edificação, somada à fácil leitura e orientação, fortalece a imaginabilidade, isto é, a capacidade de um lugar produzir imagens fortes, que compõem a memória coletiva (8). A relação com o patrimônio arquitetônico também pode ser explicada pelo apego ao passado enquanto meio de validação do momento presente (9).
Futuro e passado são tempos pensados como inacessíveis, todavia o ontem carrega consigo uma memória dos fatos, ao passo que o amanhã é ainda sinônimo de incertezas. É essa desconfiança que estimula o apreço pelo nostálgico. Uma vez que o passado pode ser reconhecido e visitado, consegue explicar determinados acontecimentos, além de reconfortar as pessoas diante das variadas mudanças pelas quais a cidade contemporânea atravessa (10). O passado na cidade e, especificamente, na arquitetura, pode ser acessado por meio de sons, de imagens, de cheiros. Contudo, a nostalgia se opõe à vitalidade e à incessante construção das cidades. Não se preservam as referências urbanas para voltar ao passado ou para atestar suas qualidades inigualáveis frente ao presente, mas sim para atualizá-lo. O saudosismo alimenta um desejo de imutabilidade, razão pela qual se deve combatê-lo. As referências urbanas que devem ser ressaltadas são aquelas que buscam participar da construção do futuro e não as que se apegam ao passado como alegoria (11).
Entender o significado e a importância da cultura para cada sociedade e trabalhar essa dimensão nas políticas de planejamento urbano sustentável requer sensibilidade e diálogo aberto com a sociedade, visto que cada geração determina o legado a ser deixado para o futuro, escolhendo o que quer proteger, valorizar e eliminar (12). Segundo Lynch, “ O mundo experimenta uma reciclagem contínua” (13). A cidade se desenvolve, necessitando adaptar-se aos novos paradigmas. Assim, prever a continuidade do patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico na história das próximas gerações não implica congelar a cidade no tempo, mas sim dinamizá-la, reatualizá-la. Mais importante do que restrições impostas por leis de tombamentos, para David Lowenthal, é a reutilização das permanências a partir de novos usos, o que garante sua preservação na estrutura das cidades (14). Aldo Rossi defende que, independentemente ou não da conservação das funções originais, a forma dos fatos urbanos é o que constrói a sua imagem frente à coletividade. Nas palavras do autor, “Pensar um fato urbano qualquer como algo definido no tempo constitui uma das mais graves abordagens que se pode fazer” (15).
Inserir o passado na contemporaneidade é permitir conectá-lo ao tecido urbano do presente e às suas novas necessidades. Esse pensamento deve ser entendido e aplicado não apenas às edificações com caráter excepcional e de reconhecimento acadêmico, mas também aos testemunhos cotidianos do tecido urbano, correspondentes à cultura de determinadas regiões ou lugares (16). Jane Jacobs entende que a reunião de edificações de diferentes períodos em um mesmo espaço urbano é um dos principais elementos para atrair vitalidade e diversidade na escala dos bairros. Atuar no seu fortalecimento é uma maneira de não apenas apreciar o passado, como também auxiliar na melhoria da qualidade da ambiência urbana, valorizando as particularidades e as identidades de cada lugar (17).
Urbanismo sustentável e certificações ambientais para o ambiente urbano
O conceito do urbanismo sustentável desponta como uma alternativa para a crise urbana a partir de um planejamento relacionado à escala das cidades. Ao observar o meio urbano, é comum identificar conflitos que ameaçam a sua vitalidade e a qualidade de vida de seus habitantes. Tornar os bairros mais saudáveis e coletivos, caminháveis, que integrem pessoas, vegetação, transporte público e o patrimônio cultural são algumas das premissas essenciais de um novo modelo de planejamento de vizinhanças (18).
Jane Jacobs, Douglas Farr e Jan Gehl são alguns autores que afirmam a necessidade das cidades se tornarem mais humanas e vinculadas aos anseios das pessoas. Para Farr, as comunidades sustentáveis são aquelas que valorizam o pedestre, procuram reduzir a segregação social e relacionam tipologias arquitetônicas diversas em um mesmo entorno para atrair diversidade. Para ele, propiciar vivências urbanas em contato com a natureza, seja pela arborização ou por meio de parques e praças, também faz parte da tentativa de aumentar a sensação de bem-estar e de sintonizar os seres humanos com os demais seres vivos dentro da cidade (19). Seguindo esta linha da percepção, Jan Gehl defende intervenções urbanas a partir das necessidades humanas, de modo a propiciar sensações positivas relacionadas principalmente à segurança, bem como pela valorização de transportes alternativos como a bicicleta (20). Jacobs ressalta os bairros densos e compactos, que possibilitam diferentes trajetos e uma variedade de atividade e empreendimentos, decorrentes de edificações antigas integradas a outras mais recentes (21).
Naturalmente, a aplicação dos princípios de um urbanismo sustentável despertou o interesse de pesquisadores que objetivavam medir a qualidade ambiental de espaços urbanos. Várias certificações ambientais despontaram em diversos países, a fim de tentar mensurar, inicialmente, a sustentabilidade das edificações isoladas, nas fases de projeto e construção, a partir de categorias que envolvem a eficiência energética, a eficiência hídrica, a localização do empreendimento, a emissão de poluentes na atmosfera, os materiais empregados na construção, a disposição de resíduos, a inovação tecnológica, entre outros. Em seguida, os avanços no entendimento da sustentabilidade possibilitaram que algumas certificações ambientais ampliassem sua área de abrangência visando a avaliação de áreas urbanas (22). Building Research Establishment Environmental Assessment Method – Breeam, Leadership in Energy and Environmnetal Design – Leed, Comprehensive Assessment System for Built Environment Efficiency – Casbee, EarthCraft, Green Star, Aqua-HQE e SBTool são algumas das certificações reconhecidas internacionalmente por avaliarem a sustentabilidade de áreas urbanas e de edificações. Embora cada um dos selos ambientais mencionados possua um método próprio de avaliação para as edificações e para o espaço urbano, caracterizam-se por definirem diretrizes agrupadas por categorias temáticas. Cada certificação disponibiliza seu manual de certificação, o qual passa por revisões com complementações e atualizações em um curto período de tempo (23).
No Brasil, a utilização de certificações ambientais tem crescido cada vez mais. O primeiro selo ambiental aplicado na construção civil brasileira foi o Leed, em 2008. Diante desse nicho de mercado, em 2009, foi lançado o selo brasileiro Aqua-HQE. Essas duas certificações ambientais são as que possuem o maior reconhecimento no país, sendo Leed a líder do segmento, visto que desde 2014 o Brasil está entre os três países do mundo que mais certificam com esse selo (24). Perante o amplo panorama nacional, optou-se por selecionar para esse estudo o selo americano Leadership in Energy and Environmnetal Design for Neighborhood Development – Leed-ND e o selo nacional Aqua-HQE Bairros e Loteamentos.
O sistema Leed é uma ferramenta de avaliação ambiental desenvolvida pela United States Green Building Council – USGBC com padrão de certificação internacional, sendo reconhecido em todo o mundo. Funciona por meio de um sistema de pontuação, organizado por pré-requisitos de atendimento obrigatório, junto a uma listagem de diretrizes com seus devidos créditos optativos, cujo somatório pode atingir selos de nível básico, prata, ouro ou platina. O Leed atua em diferentes etapas: projeto, construção, operação e manutenção (25). Foi desenvolvido para certificar edificações novas ou existentes, sendo também aplicado ao espaço urbano por meio do selo Leed-ND. Essa dimensão da ferramenta trata de questões relacionadas ao urbanismo sustentável em bairros ou vizinhanças, abrangendo o sistema de vias, as edificações, as áreas verdes, os espaços públicos, a mobilidade urbana e a mescla de usos e tipologias (26).
Por outro lado, a certificação Aqua-HQE é um sistema de avaliação ambiental internacional adaptado à realidade brasileira, tomando como referência a certificação francesa Démarche HQE – Haute Qualité Environnementale. Sua estrutura de avaliação leva em consideração as características do clima, da cultura, as normas técnicas e a legislação brasileira. O processo de avaliação da qualidade ambiental é desenvolvido para edificações, bem como bairros e loteamentos, atuando em todo o processo de gestão do empreendimento, do pré-projeto da construção ou renovação até a operação e uso. Essa certificação avalia empreendimentos por meio de categorias que devem ser enquadradas nos níveis base, boas práticas ou melhores práticas (27). O selo Aqua-HQE Bairros e Loteamentos é um processo de certificação que tem como referência as normas ISO 9.001 e ISO 14.001 e busca aferir o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, sejam eles grandes ou pequenos, públicos ou privados, urbanos ou rurais, de renovação ou expansão, considerando, principalmente, as dimensões social, econômica e ambiental (28).
Estudo das diretrizes por dimensão da sustentabilidade
Como referências conceituais foram adotados a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (29), de 2002, da Unesco, e os preceitos do autor Ignacy Sachs (30). Foram pesquisadas referências teóricas sobre o tema da preservação do patrimônio cultural em Kevin Lynch (31), David Lowenthal (32) e Aldo Rossi (33), a fim de compreender a importância do patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico para a sociedade, enquanto elemento importante na formação das identidades e das memórias locais. Entendeu-se o conceito de urbanismo sustentável a partir dos autores Douglas Farr (34) e Jan Gehl (35), os quais propõem cidades mais enriquecedoras e diversificadas, pautadas pela escala humana, pela densidade e compacidade.
Foram definidas categorias da sustentabilidade para a posterior classificação das diretrizes que compõem os selos ambientais de avaliação da qualidade urbana Leed-ND e Aqua-HQE Bairros e Loteamentos. Optou-se por aproveitar a proposta dos “Indicadores de Desenvolvimento Sustentável” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (36), o qual prioriza as dimensões ambiental, social, econômica e institucional. A estas, acrescentou-se também a dimensão cultural, que não faz parte dos indicadores, mas é referida no documento “Sistema de Informações e Indicadores Culturais” do IBGE (37), e a dimensão urbana, embasada por parâmetros levantados pelos autores mencionados no aporte teórico desse estudo. Com base nesses documentos, os grupos de diretrizes foram assim propostos:
1. Dimensão ambiental – tópicos voltados à proteção da atmosfera, terra, água, biodiversidade e saneamento;
2. Dimensão social – elementos relacionados à população, como trabalho, renda, saúde, educação, habitação e segurança;
3. Dimensão econômica – questões referentes ao produto interno bruto, taxa de investimento, endividamento, balança comercial, intensidade energética, consumo de energia, fontes renováveis na oferta de energia, consumo mineral, vida útil de reservas de petróleo e gás, reciclagem e rejeitos radioativos;
4. Dimensão institucional – acordos globais e municipais, conselhos e comitês relacionados ao meio ambiente; legislação ambiental, organizações da sociedade civil, gastos com pesquisa e desenvolvimento, fundos municipais, atendimento à Agenda 21 local e acesso à internet e telefonia;
5. Dimensão cultural – relaciona-se à oferta de bens e serviços ligados à cultura, como salário dos profissionais, investimentos públicos, gastos da família brasileira relacionados à cultura e perfil social e econômico dos envolvidos em atividades culturais.
6. Dimensão urbana – parâmetros relacionados à configuração urbana, como a análise da mobilidade urbana, da arborização e da iluminação pública, valorização de áreas verdes e dos espaços públicos, estudo de permeabilidade dos pavimentos térreos, incentivo à mescla de usos, à densidade e à acessibilidade.
Após a definição das categorias da sustentabilidade, foi possível notar que, para o IBGE (38) a dimensão cultural está relacionada apenas com tópicos vinculados à economia da cultura, sem mencionar diretrizes relacionadas ao patrimônio cultural. Para a viabilidade dessa pesquisa, considerou-se de fundamental importância incluir na dimensão cultural os aspectos referentes à sustentabilidade dos bens patrimoniais, sejam eles materiais ou imateriais.
A seguir, realizou-se um estudo individualizado para a certificação Leed-ND e outro para a certificação Aqua-HQE Bairros e Loteamentos. As diretrizes dos escopos de avaliação de cada selo ambiental foram classificadas conforme as dimensões da sustentabilidade propostas anteriormente. A partir desses levantamentos, foram analisados os dados quantitativos e qualitativos de cada certificação, atentando para a incidência de diretrizes por dimensão da sustentabilidade e, especificamente, para as diretrizes relacionadas ao patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico. Em seguida, foram selecionados dois projetos internacionais de requalificação urbana de áreas históricas, certificados com o selo Leed-ND, para identificar as estratégias de intervenção e a forma como as questões patrimoniais foram atendidas no processo de avaliação da qualidade urbana.
A pesquisa a respeito da certificação Leed-ND revelou a existência de quarenta e nove diretrizes diferentes de avaliação da sustentabilidade urbana. Para efeitos desse estudo, optou-se por não contabilizar itens repetidos entre pré-requisitos e créditos, bem como a categoria de créditos regionais, visto que os mesmos repetem diretrizes já especificadas, atuando apenas em nível de pontuação. O Quadro 1 sintetiza as diretrizes encontradas por segmento, relacionando-as às categorias da sustentabilidade propostas na metodologia dessa pesquisa.
Pode-se verificar que 34% das diretrizes da certificação Leed-ND são relacionadas à configuração urbana e outros 34% delas referem-se a questões ambientais, sendo apenas 4% relacionadas a temas culturais, neste caso, especificamente, à requalificação ou restauração de edificações existentes e à preservação do patrimônio histórico. É relevante esclarecer que, no Brasil, o conceito de patrimônio histórico vigorou nas políticas públicas até os anos 1970, a partir do que foi substituído por patrimônio cultural, um conceito mais amplo. Mas no senso comum, é utilizado até hoje.
Nas diretrizes da certificação Aqua-HQE Bairros e Loteamentos foi identificado um escopo maior de avaliação, composto por setenta e duas diretrizes de sustentabilidade urbana. O Quadro 2 mostra a relação entre as diretrizes do selo, por segmento, distribuídas conforme as dimensões da sustentabilidade. Por meio dele é possível observar que 33% das diretrizes da certificação estão atreladas aos aspectos ambientais e 29% dizem respeito à dimensão urbana. Do mesmo modo que Leed-ND, apenas 4% das diretrizes de Aqua-HQE Bairros e Loteamentos destinam-se às questões que diretamente envolvem o patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico.
A partir das informações dispostas, propôs-se a comparar a quantidade de diretrizes encontradas para cada dimensão da sustentabilidade em ambas as certificações. Os dados obtidos permitem afirmar que existe um desequilíbrio de diretrizes por dimensão da sustentabilidade, uma vez que as questões ambientais e urbanas predominam amplamente sobre as demais. No que diz respeito às diretrizes culturais, pode-se afirmar que apresentaram pouca relevância, abarcando 4% do total de diretrizes em ambos os selos. A quantificação de diretrizes por categorias da sustentabilidade evidenciou a baixa incidência das questões relacionadas à cultura e, especificamente, ao patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico nas certificações.
Certificação de áreas históricas com Leed-ND
Foshan Lingnan Tiandi é um projeto de requalificação urbana de um dos principais centros históricos da China com certificação Leed-ND, categoria ouro, desde 2011. Localizado na cidade de Foshan, na Província de Cantão, é composto por 22 monumentos, 128 edifícios históricos, oito ruas históricas e uma série de elementos e características arquitetônicas e urbanísticas típicas da cultura Lingnan, herdados do século 19, como casas acinzentadas feitas em pedra e tijolo de Chancheng, ruas e becos estreitos e sinuosos e varandas cantonenses. É nessa região onde se fortalece a prática das artes marciais e a produção de objetos em cerâmica (39).
O projeto, criado pela Shui On Land Limited – SOL, busca qualificar a área por meio do incentivo ao desenvolvimento econômico, integrado à preservação e a valorização da identidade local, e pela utilização de tecnologias sustentáveis voltadas, principalmente, para a eficiência energética e hídrica do bairro. Na escala urbana, foram definidas estratégias que contemplam o pedestrianismo, a redução do uso do automóvel, a compacidade e a diversificação de usos. Buscou-se aproximar residências, escritórios, restaurantes, comércio, varejo, turismo, hotéis, lazer e instalações culturais em um raio de abrangência de 800 metros. Para isso, foi proposto a reutilização dos edifícios existentes, incluindo aqueles com valor histórico-cultural. O projeto de requalificação da Cidade Velha também definiu diretrizes relacionadas à densidade, aumentando a escala das edificações conforme o afastamento do núcleo central da cidade (40). Dentre os principais edifícios restaurados destacam-se um templo taoísta, a vinícola Li Chung Shing Tong, a Casa de Casamento e a Mansão de Kan (41). As tecnologias implantadas no bairro incluem os painéis solares para a iluminação pública e o aquecimento de água da rede hoteleira, a criação de jardins verticais, a utilização de pelo menos 50% das coberturas das edificações com telhados verdes e o uso de um sistema de coleta de água da chuva para irrigação da vegetação e para a limpeza das ruas (42).
Segundo o levantamento de desempenho disponibilizado pela USGBC, o projeto de requalificação do bairro Foshan Lingnan Tiandi obteve 72 dos 110 pontos disponíveis pela certificação Leed-ND, abrangendo 29 das 49 diretrizes disponibilizadas (43). Dessas 29 diretrizes atendidas, 22 delas estão relacionadas às dimensões urbana e ambiental e o restante distribuído entre as áreas institucional, social, econômica e cultural. Diante disso, pode-se afirmar que embora a área seja caracterizada pelos seus valores histórico-culturais, tais aspectos foram praticamente irrelevantes no processo de certificação, correspondendo ao cumprimento de uma única diretriz em todo o sistema de avaliação.
A Área de Melhores Práticas Urbanas – UBPA, que integrou a Exposição Mundial de Xangai, em 2010, na China, é um outro exemplo de requalificação urbana, marcada pela presença do patrimônio cultural, onde é possível observar o pequeno papel da dimensão cultural no processo de certificação. Criada para um evento internacional que divulgou a importância de se melhorar a qualidade de vida nas cidades, a partir do tema “Cidade melhor, vida melhor”, o projeto da UBPA, desenvolvido na Seção E do evento, acabou se tornando um dos maiores legados deixados pela Exposição para a população chinesa, alcançando certificação Leed-ND, nível platina, em 2013. A UBPA abrange uma área histórica de Xangai, nas margens do Rio Huangpu, vinculada ao patrimônio industrial relativo à fabricação e reparos de navios. Em outros tempos, essa região sofreu um esvaziamento produtivo, resultando em uma área abandonada que necessitava ser reintegrada ao tecido urbano por meio da definição de novos usos (44).
O projeto de intervenção buscou a formação de uma nova centralidade. Integrou escritórios, comércio, serviços, museus, galerias e espaços voltados à economia criativa, localizados de maneira próxima aos pontos de transporte público coletivo e de outros meios de transporte de baixo impacto ambiental. O patrimônio industrial passou a ser resignificado, voltando-se para os usos comerciais. Foram preservados 22 edifícios históricos e a Usina de Nan Shi, o que corresponde a 56% de área construída reaproveitada a partir de edificações existentes e com valor histórico-cultural. Essas edificações foram classificadas em três categorias de intervenção: a) edifícios que poderiam sofrer pequenas obras de reparo; b) edifícios que poderiam ser completamente alterados no seu interior; c) edifícios que poderiam ter alterações nas fachadas com base em projetos aprovados. Algumas outras diretrizes sustentáveis que asseguraram a obtenção do selo Leed-ND platina envolveram a busca pela eficiência energética e hídrica de todas as edificações do setor, incluindo os prédios antigos, por meio de fontes de energia renovável e pelo uso de água reciclada e de água da chuva; o uso de água da chuva para irrigação dos espaços abertos do bairro; a criação de bosques urbanos; o estímulo à reciclagem e ao reuso dos resíduos de construção; o desenvolvimento do inventário de gases do efeito estufa na escala da vizinhança; a obtenção de certificação para todas as edificações; e a inclusão da opinião da sociedade local nas decisões de planejamento urbano (45).
Conforme o levantamento de desempenho da USGBC, a UBPA alcançou 85 dos 110 pontos disponíveis do selo Leed-ND (46). Das 49 diretrizes identificadas, foi possível pontuar em 36 delas. Apesar de ter alcançado o mais elevado nível da certificação, cumprindo mais de 70% das diretrizes previstas, os aspectos culturais, indispensáveis de serem avaliados na área, ficaram limitados à observância do atendimento de apenas duas diretrizes.
Considerações finais
O estudo desenvolvido a partir das certificações ambientais Leed-ND e Aqua-HQE Bairros e Loteamentos comprovou haver uma predominância de diretrizes sustentáveis voltados às dimensões ambiental e urbana. Observou-se a existência de um consenso entre ambos os selos, visto que ambos tem buscado incentivar a preservação da biodiversidade, dos recursos naturais, do manejo de resíduos e do atendimento ao saneamento básico, ao mesmo tempo em que estimulam o desenvolvimento compacto, a densificação, os investimentos na acessibilidade e mobilidade urbana, a mescla de usos e atividades e o aumento das áreas verdes nas cidades. Tal preponderância de diretrizes nas certificações pesquisadas pode estar vinculada tanto à origem do conceito da sustentabilidade, incialmente compreendido pela necessidade de proteger os ecossistemas e os recursos não-renováveis do planeta, com ênfase no meio ambiente natural, como também pela propagação do pensamento de autores consagrados, que prezam pela construção de cidades voltadas aos interesses e necessidades das pessoas.
No que tange à dimensão cultural, sua recente inserção na compreensão do desenvolvimento sustentável pode justificar o modo superficial com que vem sendo abordada pelas certificações. Além de apresentar menor quantidade de diretrizes em ambos os selos, a dimensão cultural é, muitas vezes, associada à economia da cultura. No que envolve o patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico, é possível afirmar que faltam diretrizes específicas para a sua proteção, seja ele material ou imaterial, dado que as certificações se limitam a avaliar aspectos relativos à preservação da paisagem ou à preservação de edificações de valor histórico de maneira isolada. Para Leed-ND sugere-se ainda uma outra diretriz, relacionada à adaptação das edificações antigas para novos usos, enquanto que para o Aqua-HQE Bairros e Loteamentos é registrado o reconhecimento de marcos ou de novos patrimônios arquitetônicos ou urbanísticos na área a ser certificada.
Por meio dessa pesquisa, foi possível verificar que os incentivos à preservação do patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico ainda são pouco valorizados, não havendo consenso quanto à incorporação de diretrizes culturais nas certificações. Isso alerta para a necessidade de avanços no que diz respeito à construção de um conjunto de diretrizes sustentáveis para o patrimônio cultural, de modo a reconhecer sua importância como fator de identidade local e de incentivo à preservação da qualidade urbana para as atuais e futuras gerações.
notas
NE – Esse artigo é uma versão ampliada e revisada da versão originalmente apresentada no IX Encontro Nacional, VII Encontro Latino-Americano, II Encontro Europeu e Latino-Americano sobre Edificações e Comunidades Sustentáveis. ZENATO, Caroline; MEIRA, Ana Lúcia Goelzer. Urbanismo Sustentável e Patrimônio Cultural. Anais do IX Encontro Nacional, VII Encontro Latino-Americano, II Encontro Europeu e Latino-Americano sobre Edificações e Comunidades Sustentáveis. São Leopoldo, Casa Leiria, 2017. p. 1969-1978.
1
ROGERS, Richard; GUMUCHDJIAN, Philip. Cidades para um pequeno planeta. Barcelona, Gustavo Gili, 2001.
2
LOWENTHAL, David. El passado es um país extraño. Madrid, AKAL Universitária, 1998.
3
CARSALADE, Flávio. Bem. In REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Org.). Dicionário Iphan de Patrimônio Cultural. Rio de janeiro, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2015 <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Bem%20pdf(3).pdf >.
4
LOWENTHAL, David. Op. cit.
5
ROGERS, Richard; GUMUCHDJIAN, Philip. Op. cit.
6
SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro, Garamond, 2002.
7
UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2003 <https://ich.unesco.org/doc/src/00009-PT-Portugal-PDF.pdf>.
8
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. 3ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 2011.
9
LOWENTHAL, David. Op. cit.
10
Idem, ibidem.
11
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Lisboa, Edições 70, 1999.
12
LOWENTHAL, David. Op. cit.
13
LYNCH, Kevin. ¿De qué tempo es este lugar? Para una nueva definición del ambiente. Barcelona, Gustavo Gili, 1972, p.103.
14
LOWENTHAL, David. Op. cit.
15
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. 2ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 57.
16
LOWENTHAL, David. Op. cit.
17
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. 3ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 2011.
18
FARR, Douglas. Urbanismo sustentável: desenho urbano com a natureza. Porto Alegre, Bookman, 2013.
19
Idem, ibidem.
20
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. 3ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2015.
21
JACOBS, Jane. Op. cit.
22
MATOS, Bruna Farhat de Castro. Construção sustentável: panorama nacional da certificação ambiental. Dissertação de mestrado. Juiz de Fora, Proac UFJF, 2014.
23
CASTANHEIRA, Guilherme Silveira. Estratégias de intervenção para a regeneração urbana sustentável. Dissertação de mestrado. Braga, Universidade do Minho, 2013.
24
MATOS, Bruna Farhat de Castro. Op. cit.
25
About LEED. U.S. Green Building Council, Washington, 2016 <http://www.usgbc.org/about>.
26
GBC BRASIL. LEED for neighborhood development. 2014 <http://gbcbrasil.org.br/leed- neighborhood.php>.
27
FUNDAÇÃO VANZOLINI. Certificação AQUA – HQE. 2015. Disponível em: <http://vanzolini.org.br/aqua/certificacao-aqua-hqe/>.
28
Id. Referencial técnico de certificação: bairros e loteamentos – Parte I. Fundação Vanzolini, 2011 <http://vanzolini.org.br/aqua/referencias-e-guias/>.
29
UNESCO. Op. cit.
30
SACHS, Ignacy. Op. cit.
31
Idem, ibidem.
32
LOWENTHAL, David. Op. cit.
33
ROSSI, Aldo. Op. cit.
34
FARR, Douglas. Op. cit.
35
GEHL, Jan. Op. cit.
36
IBGE. Indicadores de desenvolvimento sustentável: Brasil. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015.
37
IBGE. Sistema de informações e indicadores culturais: 2007-2010. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2013.
38
Idem, ibidem.
39
Foshan Lingnan Tiandi – An extraordinary ancient village experience. DNA India, Mumbai, 2012 <https://www.dnaindia.com/press-releases/press-release-foshan-lingnan-tiandi-an-extraordinary-ancient-village-experience-1768486>.
40
Foshan Lingnan Tiandi Development: Overview: Project Info. 2011. U.S. Green Building Council, Washington, 2011 <https://www.usgbc.org/projects/foshan-lingnan-tiandi-development>.
41
Foshan Lingnan Tiandi – An extraordinary ancient village experience (op. cit.).
42
U.S. Green Building Council (op. cit.)
43
Foshan Lingnan Tiandi Development: LEED Scorecard. 2011. U.S. Green Building Council, Washington, 2011 <https://www.usgbc.org/projects/foshan-lingnan-tiandi-development?view=scorecard>.
44
GUERZOVICH, Yanina. Shanghai Expo 2010: Designing Better Cities. Cluster, Torino, 9 jun. 2010 <http://www.cluster.eu/2010/06/09/shanghai-expo-2010-designing-better-cities/>.
45
Post Shanghai Expo – Urban Best Practices Area (UBPA): Low Carbon Ecological Plan and Implementation Guidelines. International Society of City and Planners Regional, Hague, 2013 <https://isocarp.org/appk/uploads/2014/05/AfE_2013_1-_Arup.pdf>.
46
Shanghai EXPO UBPA Development: LEED Scorecard. International Society of City and Planners Regional, Hague, 2013 <https://www.usgbc.org/projects/shanghai-expo-ubpa-development?view=scorecard>.
sobre as autoras
Caroline Zenato é arquiteta e urbanista (UCS, 2015) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (Unisinos, 2018). Desenvolve pesquisas relacionadas às temáticas que envolvem sustentabilidade, mercado das certificações ambientais, planejamento urbano, arquitetura e patrimônio cultural.
Ana Lúcia Goelzer Meira é arquiteta e urbanista (1980), mestre (2001) e doutora (2008) em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS). Docente e pesquisadora no curso de Arquitetura e Urbanismo e no Mestrado Profissional em Arquitetura e Urbanismo da Unisinos. Autora de O passado no futuro da cidade (Editora UFRGS, 2004).