A circunstância do projeto
“Olho muito tempo o corpo de um poema
Até perder de vista o que não seja corpo
E sentir separado dentre os dentes
Um filete de sangue
Nas gengivas”.
Ana Cristina Cesar, A teus pés (1982)
Nos últimos meses de 1982, a revista Veja trazia, na seção Cidades, as então recentes inaugurações de dois espaços destinados ao lazer e à cultura, ambos na cidade de São Paulo: o Sesc Pompéia e o Centro Cultural Vergueiro, posteriormente rebatizado como Centro Cultural São Paulo – CCSP. Naquele ano, o Brasil participava de uma numerosa comunidade de ditaduras militares latino-americanas. Seriam os últimos anos do regime militar iniciado em 1964. O governo do General Figueiredo vivia um momento de questionamento pelas dificuldades econômicas e a crescente mobilização da sociedade por pautas democráticas, liberdade política e justiça, e que teria um ponto alto na mobilização massiva pelas Diretas Já. Entrada em operação de Itaipu – a maior do mundo – Guerra das Malvinas; Mais Zico Sócrates Falcão Telê Santana Derrota para Itália; Mais Paralamas do Sucesso Blitz Barão Vermelho; Mais Premeditando o Breque Lira Paulistana Cida Moreyra; Mais Arrigo Barnabé Itamar Assumpção Pixote; Mais Blade Runner Feliz Ano Velho Marcelo Rubens Paiva.
Já desde a segunda metade da década de setenta, a arquitetura de linhagem tardo-moderna florescia em várias partes do mundo. Segundo Charles Jencks, os principais representantes dessa arquitetura foram: Museu Gunma, de Arata Isozaki (1974), New Harmony Atheneum, de Richard Meyer (1980), em Indiana, Edificio Willis Faber & Dumas (1975) em Ipswich e Sainsbury Center (1978) em Norwich, de Norman Foster e o Centro Pompidou de Renzo Piano e Richard Rogers (1977) (1). Nessa lista, três, dos cinco edifícios citados são destinados a uso artístico-cultural.
Segundo Otília Arantes (2), o Centro Pompidou de Paris definiu um novo modelo de política cultural baseada na construção de monumentos de grande visibilidade, projetados por arquitetos renomados, que abrigam lugares dedicados à criação de cultura e à reanimação da vida pública. Em pouco tempo, o Beaubourg tornou-se um emblema das políticas de animação cultural promovidas nos países centrais do capitalismo. Seu sucesso impulsionou a construção de dezenas de similares no Brasil, alimentando debates sobre suas propostas arquitetônicas, sempre tidas como fundamentais para o sucesso desse tipo de empreendimento.
O meio arquitetônico brasileiro, acadêmico, profissional e das entidades de classe vivia, no início dos anos oitenta, sob a luz crepuscular de duas doutrinas profundamente diversas em sua natureza, mas ambas poderosas, extensas e profundamente impregnadas na rotina dos arquitetos. Elas coincidiam também nos questionamentos crescentes que vinham encontrando e no ângulo declinante de sua trajetória: a ditadura militar e o movimento moderno.
O arquiteto e professor inglês Royston Landau (1927-2001) alerta que os principais obstáculos à adequada caracterização de um determinado domínio arquitetônico são dois: o primeiro é a simplificação que, de certo modo, é inevitável quando se busca recriar determinado contexto histórico-arquitetônico, mas que o pesquisador deve cuidar para que essa recriação não fique excessivamente reduzida e distorcida. O segundo obstáculo seria conseguir retratar o domínio em toda a sua complexidade e amplidão (3).
Essas preocupações, manifestadas tendo como base o Reino Unido, Estados Unidos ou Europa – ou seja, países social e culturalmente estáveis, tornam-se ainda mais desafiadoras e abstratas quando nosso objeto é a produção arquitetônica brasileira, em um momento histórico particularmente complexo, de grande instabilidade político-institucional, onde os limites entre a cultura popular e a erudita muitas vezes se confundem. Talvez resulte inusitado e quem sabe, tenha algo de realismo mágico, falar em generais e ditaduras militares em um estudo sobre arquitetura contemporânea, mas a periferia do mundo tem suas especificidades e é intenção deste artigo respeitá-las.
Correndo junto ao córrego Itororó
“Nem toda hora
é obra
nem toda obra
é prima
algumas são mães
outras irmãs
algumas
clima”.
Paulo Leminski, Caprichos & relaxos (1983)
Gestado no final da ditadura militar por duas administrações da prefeitura de São Paulo, o projeto de Eurico Prado Lopes e Luiz Telles foi inicialmente pensado como uma expansão da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a Biblioteca Central de São Paulo Vergueiro, tendo sido posteriormente transformado em centro cultural.
Durante aquele período os prefeitos das capitais não eram escolhidos em votação direta, mas indicados pelo governador do estado, que por sua vez era apontado por um colégio eleitoral controlado pelo regime. A prefeitura inicialmente teve à frente Olavo Setubal (1975-1979), indicado pelo governador Paulo Egydio Martins, posteriormente sucedido por Reynaldo de Barros (1979-1982), indicado pelo governador Paulo Maluf. Olavo Setubal iniciou o projeto como uma expansão da Biblioteca Central e Reynaldo de Barros o reformou e o inaugurou, já como um centro cultural.
Com o fim do bipartidarismo em 1979, as forças políticas que até então aglutinavam-se em dois polos, o de oposição ao regime militar (Movimento Democrático Brasileiro – MDB depois Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB) e o da situação (Aliança Renovadora Nacional – Arena depois Partido Democrático Social – PDS), passaram progressivamente a conviver com os partidos recém criados, como o Partido dos Trabalhadores – PT, Partido Democrático Trabalhista – PDT, Partido Trabalhista Brasileiro – PTB e outros. Durante a gestão de Reynaldo de Barros, quando se configurou de forma definitiva o CCSP, a câmara de vereadores era composta na sua maioria por vereadores do PMDB, de oposição.
Pensado inicialmente como marco de uma nova política cultural para uma cidade que então transformava-se vertiginosamente – crescia cerca de trezentas mil pessoas ao ano – o projeto recebeu a alcunha de “Beaubourg brasileiro” e foi recebido com intenso debate na imprensa.
A seu favor estavam aqueles responsáveis pela sua construção, o secretário municipal de cultura Mário Chamie, o prefeito Reinaldo de Barros, o governador Paulo Maluf (Arena – situação) e o jornal O Estado de São Paulo.
As críticas centraram-se nos custos elevados, na inauguração feita às pressas, sem que a obra estivesse concluída e nos problemas construtivos observados durante os primeiros anos de funcionamento. Os principais críticos foram o antigo secretário municipal de cultura Sábato Magaldi, cujo projeto original para construção de uma biblioteca havia sido alterado, Pedro del Picchia (MDB – oposição), políticos de oposição em geral e o jornal Folha de São Paulo. A candidatura do prefeito Reynaldo de Barros ao governo do estado acirrou as críticas quanto ao centro cultural como obra populista e eleitoreira.
Essa circunstância social e politicamente agitada impregnou-se na história do CCSP e influenciou o modo como ele foi recebido pelos setores ligados à cultura e pela crítica especializada. Segundo o arquiteto Ricardo Ohtake, primeiro diretor do Centro Cultural São Paulo, a contaminação do clima político polarizado nas discussões sobre o centro foi marcante: “Naquela época aconteceu paradoxo impressionante. O pessoal mais progressista começou a ser contra o centro cultural e o pessoal mais conservador ficou a favor do centro cultural” (4).
A partir do momento em que se decidiu pela inclusão de áreas de estar, salas para espetáculos e teatros, o projeto, originalmente destinado a abrigar uma grande biblioteca, viu o vulto do Beaubourg, cuja referência já estava presente na época do projeto da biblioteca, tornar-se ainda mais nítido. Segundo reportagem do Diário Popular:
“O Centro Pompidou, em Paris, o maior edifício cultural da cidade, tem em sua vasta área, uma biblioteca, com as mesmas funções deste projeto para São Paulo. Eurico Prado Lopes diz que ‘em termos de vulto do empreendimento, as duas edificações serão bastante semelhantes. A concepção aqui é outra, mas os moldes se parecem’” (5).
Tendo sido originário em momento já distante do auge da chamada Escola Brutalista, o CCSP revê e reconfigura alguns elementos centrais dessa vertente arquitetônica.
Também conhecida como Escola Paulista de arquitetura moderna, o chamado brutalismo paulista surgiu na segunda metade da década de 1950 e se consolidou durante a década de 1960. No início pouco distinguível na cena arquitetônica nacional, progressivamente um grupo de arquitetos paulistas se afastou da influência da corrente hegemônica, majoritariamente baseada no Rio de Janeiro, que projetou o edifício do Ministério da Educação e posteriormente Brasília, tendo a sua frente Oscar Niemeyer e Lucio Costa.
Vilanova Artigas, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é figura central do brutalismo paulista, autor das principais obras e defensor de conceitos relacionados a essa corrente. Em diversos projetos realizados ao longo da década de 1960, sobretudo casas, escolas e clubes, ele decantou as características e especificidades do brutalismo paulista. Sua intensa participação nos debates e sua atuação como professor estenderam uma grande influência a diversas gerações de arquitetos e acadêmicos durante três décadas, sobretudo nos estados de São Paulo e Paraná. Afastado da universidade em decorrência do AI-5 em 1968, foi reintegrado no final de 1979, com a anistia.
Segundo Ruth Verde Zein, o modo de abordar algumas questões de projeto e de construção caracterizaram o brutalismo paulista. Os traços mais importantes seriam a solução em “bloco único; a arquitetura ‘que pousa’, à procura do chão; exploração do concreto, da laje nervurada, do desenho do pilar”. Além disso, o concreto aparente foi usado extensamente e o aproveitamento expressivo de seu aspecto exterior passou a vincular-se à ideia de uma modernidade brasileira (6).
Nos espaços criados por esse grupo também se destacam o emprego de interiores abertos com ambientes fluentes e integrados; a ênfase nos espaços comunitários e a tendência à compactação dos espaços privados.
As influências mais relevantes geralmente atribuídas ao Brutalismo Paulista são: Frank Lloyd Wright, Le Corbusier, Ludwig Mies van der Rohe e o novo brutalismo inglês, sobretudo (Alison e Peter) os Smithson (Escola Hunstanton).
Localizado em terreno remanescente das obras para implantação do metrô, linha Norte-Sul, o terreno possui aproximadamente 400m x 70m. Desenvolve-se no sentido Norte-Sul, espremido entre os trilhos do metrô e uma importante via de circulação que se estende sobre um fundo de vale. Estreito e alongado, o terreno se parece com um navio, visto em planta. Define dois lados, com um grande desnível entre eles. Abre-se progressivamente, criando uma ilha ou um talude intermediário e depois volta a se estreitar.
O edifício é organizado a partir de um eixo distributivo principal que corre paralelo ao vale. No sentido transversal são intercaladas circulações secundárias. A implantação procurou reduzir o impacto da construção, harmonizando o edifício com a paisagem natural e o entorno. O volume encaixa-se no declive e define o acesso principal pelo lado alto, onde aflora apenas um pavimento, que efetivamente, encontra-se sobre outros três níveis.
Apesar do inquietante avanço progressivo da cobertura em balanço sobre a calçada, a área de acesso por ela abrigada é ampla e generosa. O potencial de contraste entre a volumetria do edifício e o entorno talvez só tenha se realizado muito depois da sua inauguração, com a progressiva verticalização das construções vizinhas, sobretudo na rua Vergueiro, cujos edifícios hoje chegam a 23 andares.
A horizontalidade do partido foi uma diretriz reiterada em diversos momentos das decisões projetuais, resultando em ser esta a principal característica definidora da forma externa. A predominância horizontal não chega a ser absoluta apenas pela sua interrupção para criação do jardim interno ocupado pelas árvores existentes no terreno, que foram preservadas pelo projeto.
A vista principal do edifício, desde a cota mais baixa da avenida Vinte e Três de Maio explicita a intenção de fatiar horizontalmente a construção, acomodando-a no talude. Contrastando com o fundo verticalizado da rua Vergueiro, o CCSP destaca-se não como objeto unitário, mas desmantelado em taludes gramados, lajes, vigas em balanço, enfim, numa série de linhas e planos horizontais, paralelos ao movimento dos carros e das águas, hoje embrulhadas em concreto e asfalto, do Córrego Itororó.
A intenção de borrar os limites e fundir o edifício no entorno, que é estranha aos procedimentos usuais do brutalismo paulista, é uma constante no CCSP e se materializa em diversos aspectos: nos contornos envolventes dos braços laterais do nível de acesso da Estação Vergueiro, que criam uma graduação na transição entre o espaço exterior e o interior; no emprego de estruturas em balanço que criam áreas cobertas, porém, abertas, de transição entre exterior e interior; nas pérgulas que arrematam a cobertura superior; na solução laminar dos pilares metálicos e mesmo na solução do forro e do sistema de iluminação. Em todos esses elementos, ao invés de criar contornos, formas ou limites claramente definidos entre o edifício, seus elementos constitutivos e os espaços criados, se busca a criação de áreas intermediárias, ambíguas: confinadas, porém, descobertas; cobertas, porém, abertas; diferenciadas, porém, com limites imprecisos.
Este procedimento, portanto, distancia-se da solução que predominava no brutalismo paulista, que sempre enfatizava o topo da construção, arrematando a composição em uma solução volumetria única, claramente delimitada, levemente assentada sobre o terreno.
A referência à presença do rio ou à ideia de movimento horizontal é reiterada em diversos aspectos arquitetônicos: no esquema distributivo longitudinal, nos amplos balanços laterais, na ênfase à horizontalidade das lajes, na ausência de volumes acima do plano da cobertura.
A associação desses elementos cria uma comunicação direta entre o relevo e o edifício. Louis Kahn abordou esse tema em Forma y Diseño. “Forma do movimento e renovação da cidade. Uma cidade quer ser edifício. Os novos espaços que querem ser surgirão de projetos baseados em uma ordem do movimento” (7).
A integração do edifício com o entorno é buscada também no âmbito funcional e baseia-se na facilidade de acesso a partir da estação do metrô. O eixo de distribuição principal do CCSP inicia-se no acesso da rua Vergueiro, bifurca em duas circulações paralelas que desenvolvem-se ao longo do eixo longitudinal do edifício, propiciando amplas visuais, integrando as diversas áreas e atividades.
Se a horizontalidade é a característica predominante na definição exterior do edifício, no espaço interno ela se faz presente nas circulações, porém ali passa a ser contrabalançada pela verticalidade dos pilares metálicos e das árvores no pátio interno.
A intenção de contrapor exterior/ córrego/ movimento/ horizontalidade a interior/ árvore/ estaticidade/ verticalidade é marcante. Essa contraposição e a ênfase projetual no espaço interior são características clássicas das praire houses de Frank Lloyd Wright, influência do jovem João Batista Vilanova Artigas. A lareira, ponto central do espaço interno nas residências wrighteanas, foi substituída pelas árvores preservadas do CCSP.
O parentesco com o brutalismo paulista fica evidente na introversão do edifício e na centralidade que a estrutura tem para a definição dos espaços e para a proposta arquitetônica. Entendemos que no CCSP, entretanto, se observa uma derivação inovadora a partir das práticas e ênfases brutalistas. Enquanto ali se busca “fazer cantar os pontos de apoio”, aqui a melodia é diferente. A solução usual do brutalismo paulista faz uso da grande cobertura, geralmente uma laje nervurada, para criar um espaço homogêneo que depois tem suas diversas áreas diferenciadas conforme as necessidades, por meio de desníveis, iluminação ou partições. No CCSP, a cobertura baseia-se em vigas curvas, fruto de uma pioneira pesquisa tecnológica de associação entre peças metálicas e vigas de concreto armado. Os raios de curvatura das vigas variam em função dos vãos, criando uma ondulação constante, ritmos diferenciados e ênfases específicas conforme as indicações do programa e características de cada espaço.
Quando se toma como referência a rodoviária de Jaú, em São Paulo (1973-1976), obra de um Artigas já muito distante daquele que criou a rodoviária de Londrina, no Paraná (1951), e que apresenta características depuradas do brutalismo paulista, constata-se que em ambos projetos, Jaú e CCSP, os pilares abrem-se em leque. Mas, enquanto em Jaú, o pilar encontra uma laje nervurada plana, no CCSP, as curvas do pilar são transmitidas e propagam-se por todas a vigas. Uma ondulação é criada em todo o plano da cobertura. À ideia de leveza da cobertura plana, delicadamente apoiada, contrapõe-se a expressão de continuidade, orgânica e gaudiana, que flui entre os pilares e a cobertura, se contrai e se expande conforme os espaços do edifício.
O arco da cobertura do piso superior, que conecta as duas faixas laterais e arremata o edifício, expressa essa dinâmica do espaço interno que emerge e aflora na superfície externa.
A busca de integração espacial entre as diferentes áreas e a rejeição à compartimentação caracterizam o interior do edifício. O partido adotado afastou-se da justaposição de bibliotecas estanques e da proliferação de salas fechadas, optando por ambientes integrados, acessível visual e fisicamente.
A atenção dada à acessibilidade no CCSP foi avançada para a época pois, apesar de ser uma demanda antiga da sociedade, a legislação brasileira somente avançou de maneira significativa após a Constituição de 1988, que previu a observação de normas para a construção de logradouros e de edifícios de uso público que garantissem o acesso às pessoas portadoras de deficiências.
Determinadas características do edifício indicam que a abordagem à questão do movimento é ampla e vai além de proporcionar infraestruturas adequadas a pessoas com necessidades especiais. Essas características reiteram, na sua configuração formal, a atenção dada pelos arquitetos aos fluxos e à circulação dos usuários em geral.
Central para a visão estética modernista ao articular espaço e tempo, a ideia de movimento, em contraposição à visão tradicional, estática, está presente em diversos movimentos artísticos de vanguarda no início do século 20, como o cubismo, na invenção do cinema (moving pictures), assim como na importância dada à circulação na cidade moderna. Nas formulações para uma nova arquitetura, a promenade architecturale, a disseminação do uso de rampas, assim como a exploração formal das escadas exemplificam a importância dada aos deslocamentos. Segundo Ignasi de Solà-Morales:
“Dentre os ideais da arquitetura moderna um dos mais celebrados pelos seus exegetas tem sido o da incorporação do movimento a um tipo de objeto que ao longo da história tinha sido, por definição, estático, imóvel. Se dizia que a arquitetura da era científica da relatividade einsteiniana incorporava o movimento e portanto o tempo como uma quarta dimensão” (8).
Intrinsecamente mais permissiva ao movimento e à velocidade, menos obstrutiva ao pedestre e ao cadeirante do que a escada, a rampa foi adotada pelo modernismo, sobretudo na sua vertente corbusiana, e se popularizou, tornando-se um símbolo da vida moderna.
Ao analisarmos os elementos caracterizadores do seu espaço interno, observamos que no CCSP as circulações são elementos centrais, que definem os usos e estruturam sua expressão formal. Em comparação com as rampas da FAU USP, às do CCSP têm maior protagonismo e conferem maior dinamismo ao espaço interior.
A despeito de todas as frases bombásticas registradas pela imprensa da época, o mais próximo que o paralelo entre o Beaubourg e o CCSP pode chegar é na rejeição a uma organização vertical e na ênfase comum dos projetos na circulação dos usuários pelos edifícios.
A circulação mecânica através de tubos transparentes, em diagonal ascendente na elevação da praça, dá acesso ao Beaubourg. Esse portal de entrada para um mundo tecnológico, pop e futurista, tem como referências mais diretas a iconografia do grupo britânico Archigram, mas também ressoam distantes as escadas de Alvar Aalto e o filme Metrópolis de Fritz Lang. Essa fachada é a principal imagem do centro cultural francês, assim como as rampas são a grande característica definidora do espaço interno do CCSP.
No mais, são escassas as semelhanças entre as arquiteturas do Beaubourg e do CCSP. Não seria descabido supor que o epíteto “Beaubourg paulista” ou “Beaubourg brasileiro” tenha sido criado e ventilado para “valorizar” o empreendimento durante a sua construção, visto que articula uma equivalência simbólica entre os elementos: CCSP será como o Beaubourg; São Paulo será como Paris.
O movimento não encontra barreiras nos espaços do CCSP. É um fluxo contínuo entre espaços diferenciados pela iluminação natural, pela transparência e opacidade dos elementos construtivos que sutilmente delimitam o alcance da visão e proporcionam uma sequência por zonas diversas e organicamente integradas.
A distância entre as duas faixas longitudinais de circulação que percorrem todo o edifício atinge seu maior valor na área destinada às árvores preservadas e áreas de estar adjacentes. Ali o espaço se amplia. Rampas cruzam em diagonal, marcando a chegada ao espaço central do projeto.
Um grande fechamento envidraçado integra e simultaneamente contrapõe essas duas áreas, num jogo de oposições que cria a pulsação elementar do centro cultural. Fica claramente configurado um grande espaço, semelhante a uma praça, ponto de convergência de circulações, em simetria à área descoberta, destinada à vegetação e às árvores preservadas. A composição opõe natureza e cultura, procedimento recorrente na história da arquitetura, mas ao analisar a situação geral, pode-se constatar que há uma busca de convivência harmônica. A multiplicidade dos elementos envolvidos e sua tensa complexidade evidenciam a dificuldade contemporânea em estabelecer novas bases para essa relação.
Localizados no espaço principal, dois dos três pilares metálicos principais adquirem grande força simbólica na composição. Situados ao longo do eixo longitudinal central do edifício, eles reiteram a relação entre o conjunto de pilares/vigas do espaço interior e as árvores do jardim interno. Manifestam a busca projetual de uma aproximação mais respeitosa e harmônica à natureza e ao meio-ambiente urbano.
A opção pela fluidez e pela flexibilidade de percursos, geralmente reiteradas no tratamento das circulações, impregna essas circulações com as mesmas características de um caminho natural, espontâneo. Dela resulta o modo espontâneo como os fluxos de pessoas acessam os espaços e perambulam pelas diferentes áreas.
As bibliotecas, auditórios, cinema, teatro e outros espaços para apresentações adquirem valor de núcleos ou destinos principais. A partir deles, foram criadas conexões, circulações e espaços fluidos, quase intuitivos, que permitem aos frequentadores se orientarem com facilidade. São, portanto, percursos moldados ao relevo, conhecedores dos meandros altimétricos do terreno, quase naturais. O deslocamento através dos espaços do CCSP remete ao caminhar por uma trilha na natureza, visto que ela foi totalmente reinterpretada pela arquitetura, que se descortina por entre manchas ensolaradas no piso, se faz percorrer por circulações-trilha, sob a copa metálica de pilares-árvore, e descer por um edifício-encosta de morro.
As visões sobre o Centro Cultural São Paulo
Trinta e sete anos distante de sua inauguração, ao se estudar o CCSP, fica evidente a pouca importância com que ele foi tratado, sobretudo nos primeiros anos de funcionamento.
Nesse sentido, adquirem especial importância as palavras de Giulio Carlo Argan, citando Lionello Venturi:
“O historiador da arte não pode prescindir da tradição crítica, deve considerar toda a cadeia de juízos que foram pronunciados a respeito das obras de que trata. A história da crítica não é uma operação auxiliar ou de acompanhamento, como ainda pensava Schlosser ao escrever sua monumental história da ‘literatura artística’. Para Venturi, ela é um procedimento metódico indispensável, talvez o mais construtivo, da história da arte” (9).
E, sobretudo, o que ele diz em seguida, como conclusão:
“O que a história da crítica demonstra, todavia, não é de forma alguma o caráter absoluto e perene do valor, mas o seu contínuo repropor-se, em termos sempre diversos no hic et nunc (aqui e agora) de consciências diversamente condicionadas pelas mutações e pelos desenvolvimentos da cultura – hoje falaríamos da impossibilidade de obsolescência do valor artístico. Qualquer que seja a sua antiguidade, a obra de arte sempre ocorre como algo que acontece no presente” (10).
A pesquisa e levantamento do material produzido pela crítica arquitetônica não se mostrou uma tarefa difícil visto que, à exceção de reportagens em jornais sobre o período das obras e da inauguração, pouca tinta se gastou com a sua arquitetura.
Em artigo publicado por Carlos Eduardo Comas em 1990, o CCSP nem foi incluído numa lista de trinta e um projetos brasileiros que mais se destacaram na década de 1980. As revistas especializadas, sobretudo Projeto e AU – Arquitetura e Urbanismo, dedicaram alguns artigos aos espaços recém-inaugurados e aos arquitetos, sobretudo uma análise do projeto feita por Ruth Verde Zein e uma entrevista com os arquitetos, feita por Cecília Pires.
É razoável supor que os problemas havidos durante a construção, a inauguração apressada, feita com a obra inacabada e as dificuldades de funcionamento nos primeiros anos criaram uma certa negatividade em relação ao centro na imprensa em geral e também na crítica especializada.
Nesse sentido, também contribuiu o momento político polarizado da inauguração, em que se vinculou o centro a um projeto político populista implementado pela elite paulistana em busca de apoio popular nas eleições.
Além disso, a pouca repercussão e o silêncio da crítica especializada decorreram também por peculiaridades de sua arquitetura. Os arquitetos do CCSP distanciaram-se dos postulados, tecnologias e práticas tradicionais do brutalismo paulista. Por outro lado, sua proposta parece não ter sido relacionada com aquelas de outros arquitetos atuantes naquele mesmo período, que também eram críticas em relação às linhas tradicionais da arquitetura brasileira e que, portanto, também trilhavam caminhos alternativos.
Nesse sentido, são muito interessantes os agrupamentos propostos por Maria Alice Junqueira Bastos no seu livro-tese: Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira. Ela indica que seriam basicamente duas as vertentes que, durante a década de 1980, se afastaram da tradição moderna brasileira: “Realidade e inspiração no popular” e “Liberdade formal/ Figurativismo”. Além dessas, haveria também a vertente mais identificada com a continuidade da tradição moderna brasileira: Caminhos da arquitetura moderna – abstração (11).
Ao analisar as visões de arquitetura emergentes na década de 1980, Ignasi de Solá Morales destaca cinco edifícios realizados nos Estados Unidos, Europa e Japão que exemplificariam uma nova atitude. O autor indica como estratégias recorrentes nessas visões emergentes, a desmaterialização e a fragmentação ou camuflagem. Ele também sintetiza os tópicos utilizados para explicar essas escolhas: integração, continuidade, conexão entre exterior e interior, e adaptação. Mais adiante, ele afirma que “transparência, dilatação, ausência de limites, interconexão espacial são sempre sintomas de que a arquitetura atua mais como forma negativa do que como proposição de conteúdos figurativos precisos” (12).
Kenneth Frampton identifica uma nova tendência ao analisar a produção dos anos 1980 e propõe o tópico “Topografia” para aglutinar esses projetos. Eles basicamente expressam a busca de estabelecer uma relação nova e mais harmônica do edifício com a topografia, ali entendida como mais um fator de especificidade da realidade física, parte integrante do meio ambiente, assim como o clima e a vegetação (13).
Ao sintetizar a sua visão dos paradigmas de fim de século (a fragmentação, o informal e a compacidade), Rafael Moneo trata de “uma arquitetura como paisagem, que potencializa a mobilidade sem interferir na vida”; e da busca de dissolver a arquitetura em uma construção “sem forma” (14).
Muitas dessas buscas e características estão presentes no CCSP, assim como nas obras de outros arquitetos brasileiros e daqueles citados pelos dois autores antes mencionados: Tadao Ando, Herzog & de Meuron, Frank Gehry, Juan Navarro Baldeweg, Álvaro Siza, Rem Koolhas e Rafael Moneo.
Em diversos aspectos, o CCSP se afastou das soluções usuais do brutalismo paulista como, por exemplo, quando evitou o uso extensivo do concreto, evitou elementos figurativos identificáveis com outras correntes alternativas, mas permaneceu distante do que na época era identificado com o pós-modernismo. O isolamento do CCSP captura o desamparo que buscar novos caminhos, de forma independente – quase intuitiva – significa.
No cenário brasileiro daquela época, o surgimento do CCSP demarcou um campo novo de possibilidades expressivas para tecnologias construtivas emergentes, sobretudo a estrutura metálica, e de novas pautas para a arquitetura. Segundo Francisco Spadoni:
“Numa outra linha expressiva, que entendemos autônoma do debate internacional e, de alguma forma, conectada à sequência brasileira, estaria o projeto para o Centro Cultural São Paulo, dos arquitetos Eurico Prado Lopes e Luis Benedito Telles, que representaria também uma ideia complexa de espacialidade moderna: flexibilidade e continuidade urbana, questões que estiveram presentes na transição do debate internacional desde os anos 60 e fundariam o ideário da próxima década” (15).
A disposição dos arquitetos em rever atitudes, tecnologias construtivas e práticas de projeto consagradas ampliou a pauta de questionamentos à tradição moderna e abriu novos caminhos a uma geração formada durante o regime militar.
O sentido sócio-político do espaço introvertido do brutalismo paulista foi reconfigurado por preocupações ecológico/ambientais urbanas e pela intenção de abrigar uma maior diversidade de usos e formas de apropriação dos espaços.
Os equipamentos disponibilizados se caracterizam pela ampla acessibilidade do público aos espaços, pela oferta abrangente de espetáculos artístico-culturais, além de exposições e do acervo das bibliotecas.
São recursos voltados a uma população metropolitana majoritariamente jovem e, sobretudo, diversificada em função do alcance da infraestrutura de transporte público. Durante o período de redemocratização do país, esse segmento ampliou o espectro político urbano, impulsionou pautas inovadoras nos costumes, nas artes e na política e, nos seus hábitos, aproxima arte e cultura de lazer e entretenimento.
A releitura do CCSP permite constatar a maneira como distintas visões de arquitetura foram colocadas em prática no início da década de 1980. Dessa produção desponta a intenção de rejeitar ou simplesmente avançar em relação às visões arquitetônicas anteriormente dominantes.
O distanciamento atual permite explorar novos alinhamentos entre as visões arquitetônicas daquela época e demandas sociais recentes que seguem aguardando respostas. A vitalidade – quase despercebida – com que os frequentadores estabelecem novas conexões entre si e com os espaços do CCSP pode ser entendida como um argumento a favor da pertinência da intenção original do projeto e também de sua atualidade.
Reler aquele período permitirá a identificação dos contornos das posturas arquitetônicas, algumas predominantemente circunscritas ao contexto da época, mas outras ainda vigentes e que talvez até sejam favorecidas pelo distanciamento temporal. Essa revisão permitirá estabelecer novos paralelos com propostas atuais e poderá servir como referência para as direções a seguir.
notas
NA – O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes. Código de Financiamento 001.
1
JENCKS, Charles. Movimientos modernos en arquitectura. Madri, Hermann Blume Ediciones, 1983, p. 384.
2
ARANTES, Otilia Beatriz Fiori. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo, Edusp, 1995, p. 240.
3
LANDAU, Royston. Notes on the concept of an architectural position. AA Files, n. 1, Autumn, 1981, p.111-114.
4
MANZONI, Manzoni, Francis Marcio Alves. Passagens da Biblioteca Central ao Centro Cultural São Paulo (1975-1985). Tese de doutorado. São Paulo, PUC SP, 2015, p. 103.
5
Num edifício coberto de verde, a nova biblioteca. Diário Popular, São Paulo, 4 jan. 1979. Câmara Municipal de São Paulo, Centro de Documentação e Informática, Subdivisão de Documentação, Hemeroteca, Pasta n. B-7. Apud MANZONI, Manzoni, Francis Marcio Alves (op. cit.), p. 101.
6
BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasilia: Rumos da Arquitetura Brasileira. São Paulo,
Perspectiva, 2007, p. 11.
7
KAHN, Louis. Forma y diseño. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 1984, p. 56. Tradução do autor.
8
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Topografía de la arquitectura contemporánea. In Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporánea. Barcelona, Gustavo Gili, 1995, p. 23. Tradução do autor.
9
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 24.
10
Idem, ibidem, p. 24.
11
BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasilia: rumos da arquitetura brasileira. São Paulo, Perspectiva, 2007.
12
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Op. cit., p. 23. Tradução do autor.
13
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 2015.
14
MONEO, Rafael. Paradigmas fin de siglo. Arquitectura Viva, n. 66, 1999, p. 21. Tradução do autor.
15
SPADONI, Francisco. Dependência e resistência: transição na arquitetura brasileira nos anos de 1970 e 1980. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 102.00, Vitruvius, nov. 2008 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.102/91>.
sobre o autor
Weber Schimiti é arquiteto e urbanista (UFPR, 1987), especialista em Conforto Ambiental (FAU UFRJ, 1995) e mestrando (Proarq FAU UFRJ). Venceu o Primer Premio XI Clefa – Conferencia Latinoamericana de Escuelas y Facultades de Arquitectura (Argentina, 1985).