O presente artigo propõe evidenciar e reconhecer o trabalho de Judith Martins, uma das funcionárias mais antigas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Contratada inicialmente como datilógrafa, ela ocupou os cargos de arquivologista e chefe da Seção de História e do Arquivo da instituição e foi tornando-se pesquisadora. Judith conviveu com inúmeras personalidades conhecidas das narrativas históricas, mas pouco se publicou sobre ela e seus trabalhos. O objetivo deste artigo é somar-se as iniciativas que trazem à superfície outras vozes, além das já consagradas pela historiografia.
Através da disciplina da História, apoia-se nos estudos desenvolvidos pela História Oral, para retomar a entrevista enquanto fonte de pesquisa e reconhecimento de memórias individuais sobre o passado. Para isso, utiliza-se da publicação Memórias do Patrimônio realizada pelo Iphan, que transcreve e torna pública as entrevistas realizadas pelo projeto Memória Oral Sphan/Pró-Memória. A entrevista realizada com Judith Martins foi a primeira do projeto, datada em 1982 no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. A entrevista possibilitou a construção de uma narrativa interpretativa do Instituto do Patrimônio, entre os anos de 1936 e 1973.
O artigo está estruturado em três partes: a primeira trata as transformações da disciplina da História e a introdução da História Oral no Brasil. A segunda, evidencia aspectos do projeto Memória Oral e expõe uma breve biografia de Judith Martins. A terceira e última, apresenta uma narrativa interpretativa dos anos iniciais do Iphan. O objetivo, enquanto pesquisadora no assunto da historiografia, não é fechar o tema em discussão, mas colocar em reflexão diferentes interpretações sobre o passado.
História Oral, um campo de estudo em História
Desde o início do século 20, a disciplina da história está em processo contínuo de revisão. O arcabouço que compreende as pesquisas neste campo de estudo envolve uma camada densa de autores e escolas que tentam, a seu modo, interpretar e escrever sobre os acontecimentos passados. A partir da década de 1960 com os estudos que envolvem o Linguistic Turn, a tomada de consciência do papel ativo do historiador na construção do relato histórico permitiu o desenvolvimento de pesquisas voltadas à outras temáticas, antes omitidas da historiografia ou ainda por serem reveladas. Hoje, é raro encontrar narrativas históricas sendo interpretadas como verdades transmitidas. A condição contemporânea, pós-moderna ou pós-modernista (1), dentre outras conceituações do momento presente, permitiu que o processo de representação do passado pudesse ser avaliado de maneira crítica, passível de revisões e outras interpretações.
Assim, é possível colocar em discussão que o relato histórico está constantemente relacionado a figura humana, que conduz ativamente o processo de construção, seleção e organização dos fatos no tempo, seja ele parte integrante da evidência ou como interlocutor, a partir de uma interpretação secundária, “é precisamente essa situação de como constituímos o conhecimento sobre o passado que afeta diretamente a natureza do significado que lhe impomos” (2). Já Paul Veyne apresenta que “essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos” (3). Da busca por um método científico que profissionalizasse a disciplina às discussões sobre a pertinência e significância da pesquisa no campo da história, esse arcabouço de discussões propôs e continua propondo variadas camadas de reflexões sobre o tema.
Este artigo propõe-se a tratar de um campo de estudo da disciplina da História, a História Oral, evidenciado a partir dos anos 1950. Alguns dos debates que envolvem as origens da adoção desse método, enquanto registro e posteriormente, como fonte de pesquisa histórica, apresentam justificativas relacionadas à ausência de documentação escrita sobre temáticas sociais não tratadas pela “história” e ao conflito entre oralidade e escritura (4). Por isso, a adoção das entrevistas como método de dar visibilidade as vozes omitidas da historiografia. O papel do historiador foi levado em consideração para realização das entrevistas, pois acreditava-se que poderiam ser feitas a partir de certo rigor profissional, segundo métodos científicos, o que promoveria um trabalho imparcial. Segundo Ronald J Grele “os historiadores orais queriam saber, com alguma precisão, o que realmente aconteceu no passado” (5). Apesar de conseguir evidenciar diversos grupos sociais, temáticas e opiniões submersas ou propositalmente omitidas da história, enquanto método a História Oral foi contestada, pois tanto as perguntas das entrevistas como a figura do entrevistador e a posterior publicação, seriam tão subjetivos e seletivos quanto as narrativas escritas.
Dois estudos relevantes no assunto foram publicados pelo inglês Paul Thompson e pelo francês, Philippe Joutard (6), pesquisadores em momentos e nacionalidades diferentes, que refletem sobre as consequências da realização desse tipo de método de representação do passado. Paul Thompson (7), possui um capítulo intitulado “entrevista”, no qual discorre sobre as habilidades necessárias ao entrevistador e realiza uma análise que envolve os problemas do método da entrevista. Dentre os tópicos apresentados por ele estão: a capacidade de formulação de perguntas que não induzam ao julgamento prévio da resposta, o estudo do entrevistador quanto aos termos específicos das disciplinas, a diferença entre a entrevista gravada e aquela na qual o entrevistador toma notas, entre outras questões. Já Philippe Joutard (8), apresenta comentários mais críticos sobre o método da História Oral, avaliado por ele enquanto método induzido e construído, um desses comentários refere-se à subjetividade presente nesse tipo de atividade, evidenciada no seguinte trecho:
“Mas mesmo os entrevistadores que sabem inspirar confiança e escutar – que é o caso mais frequente – sua simples presença e a imagem que passam aos seus interlocutores influi nas respostas deles” (9).
Thompson e Joutard (10) desenvolveram estudos significativos no campo da História Oral e carregam nas suas abordagens referencias próprias. Segundo Heloisa da Silva e Emerson Rolkouski:
“Tanto Thompson como Joutard, ainda que em diferentes contextos e com diferentes ênfases, discutem questões que convergem para os diversos rumos que a história pode tomar e, portanto, para os diferentes papéis que ela pode exercer na sociedade, dependendo da evidência escolhida. [...] Nesse sentido, a utilização da história oral pode ser tanto instrumento de facções conservadoras quanto de mudanças políticas e sociais, ou mesmo um meio de transformação do teor e finalidade da História” (11).
No Brasil, a História Oral é trabalhada ativamente a partir da década de 1970, com a implantação do Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. A socióloga, Celina Vargas do Amaral Peixoto foi uma das fundadoras do projeto e teve as entrevistas de Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha como os primeiros arquivos do acervo (12). Segundo Thompson “o CPDOC promoveu encontros nacionais e estimulou a fundação da Associação Brasileira de História Oral – Abho, em 1994, no Rio de Janeiro” (13). As entrevistas começaram a ser feitas em 1975, elas eram duplicadas para a composição do acervo de segurança, depois transcritas e disponibilizadas para a consulta. Várias transformações ocorreram no acervo, algumas pelas necessárias atualizações tecnológicas. Em 2003, o CPDOC começou a desenvolver atividades relacionadas ao ensino, criou o Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais e em 2005, criou a Escola Superior de Ciências Sociais.
No Iphan, o trabalho principal que utilizou a História Oral, enquanto método de registro foi o Projeto “Memória Oral Sphan/Pró-Memória”, no qual foram realizadas 27 entrevistas de 1982 a 1987 (14). Dentre os entrevistados e entrevistadas está Judith Martins, funcionária do Sphan/Dphan/Iphan (15) desde 1936 e personagem central deste artigo. O objetivo é reconhecer sua interpretação sobre a formação da Instituição e dar visibilidade ao seu trabalho. Segundo Thompson:
“Registrar e divulgar as experiências de ex-funcionários do Iphan e de outras pessoas ligadas à preservação do patrimônio cultural brasileiro revela-se bastante significativo, pois permite não só complementar, com um novo tipo de fonte e documento, aqueles já existentes nos arquivos do Iphan, como também contribuir para a interação e o diálogo entre gerações dentro da Instituição” (16):
Projeto Memória Oral e Judith Martins
Projeto Memória Oral Sphan/ Pró-Memória
O Projeto Memória Oral Sphan/Pró-Memória teve origem na década de 1980, com o objetivo de compor um registro oral sobre a formação do campo do patrimônio no Brasil. Para isso, estimulou uma série de entrevistas realizadas com alguns funcionários do Iphan, ou antigo Sphan, além de outras pessoas que tiveram ações significativas no desenvolvimento deste campo. A maioria dos entrevistados do projeto eram funcionários homens (17), mas além de Judith Martins, primeira a ser entrevistada em 1982, tem-se registro de outras duas mulheres: a museóloga, Lygia Martins Costa e a escritora, Lúcia Machado de Almeida.
O objetivo das entrevistas era o de registrar as memórias dos sujeitos ligados à instituição, no início e ao longo da composição do Iphan. As perguntas variavam em relação aos primeiros anos do órgão, em como começaram a trabalhar no local, as relações pessoais, as atividades desenvolvidas, entre outras questões.
Em 2007, através do Projeto Memória Oral da Preservação do Patrimônio Cultural, o Iphan recuperou algumas das entrevistas e as transcreveu numa série de publicações intituladas: Memórias do Patrimônio. Os três volumes disponibilizados para download no site da Instituição contam as memórias de Judith Martins, de Erich Joachim Hess, fotógrafo contratado pelo Sphan e Augusto da Silva Telles, arquiteto do Iphan.
As entrevistas transcritas e publicadas para consulta, não só contribuíram para o registro de várias memórias individuais, de personalidades nem sempre tratadas nas narrativas históricas sobre o passado do Iphan, mas também, são base para a formação de diversas outras narrativas, que interpretam o passado segundo pontos de vista distintos. A formação do Iphan tem, na grande maioria, publicações que tratam personalidades já reconhecidas e consagradas na historiografia como: Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Lúcio Costa. Enquanto isso, personalidades como Judith Martins ainda permanecem à margem das narrativas, tratada tangencialmente, em especial pelo primeiro cargo que ocupou. Este artigo reconhece o trabalho de Judith e dá visibilidade à sua memória, para além das tratativas secundárias as quais vem sendo associada.
Breve biografia, Judith Martins (18)
Judith Martins foi uma das primeiras funcionárias do Iphan. Trabalhou desde o início da implementação do órgão como Sphan, quando funcionava ainda provisoriamente. Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1903. Era neta de alemão, que imigrou para o Brasil na segunda metade do século 19, para trabalhar na Companhia União e Indústria, empresa responsável pela construção da primeira Usina Hidrelétrica da América Latina, sediada em Juiz de Fora. Judith estudou em escola pública e trabalhou como costureira, quando morava em Juiz de Fora, era a mais velha dos quatro filhos de Marcos Schmitz e Ildegarda Breviglieri. Aos dezesseis anos, concluiu o curso de guarda-livros técnicos do Instituto Comercial Mineiro. Casou-se aos dezenove anos com Eugênio dos Santos Martins com quem teve três filhos. Quando se mudaram para o Rio de Janeiro, em 1936, morou no bairro de Laranjeiras. Após separar-se, em 1941, mudou-se para o bairro de Botafogo, onde permaneceu até seu falecimento, em 2000 (19).
Começou a trabalhar no Sphan em 1936, quando ocupou o cargo de datilógrafa e secretária de Rodrigo Melo Franco de Andrade, primeiro diretor do órgão. Em 1962, substituiu Carlos Drummond de Andrade e foi nomeada chefe da Seção de História e do Arquivo. Também substituiu Renato Soeiro, posterior diretor da instituição, respondendo pelo expediente da repartição pelo período de dez dias. Permaneceu trabalhando como chefe da Seção até 1973, quando se aposentou (20).
Ao longo de sua carreira, tornou-se pesquisadora e estudou inúmeros artistas mineiros, dentre eles, Antônio Francisco Lisboa. Segundo Thompson (21) algumas de suas publicações foram: o artigo “Apontamentos para a bibliografia referente a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho”, publicado na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1939, e republicado, em 1950, na Revista do Centro de Estudos Folclóricos da Faculdade de Urbanismo da Universidade de São Paulo. Sua principal contribuição enquanto pesquisadora no Iphan foi o “Dicionário de artistas e artífices dos séculos 18 e 19 em Minas Gerais”, dois volumes publicados em 1974 no n. 27 das Publicações do Iphan, essa publicação deriva dos estudos de Judith e apresenta uma composição de verbetes que identifica a atuação de artistas mineiros da época. Essa bibliografia foi referência para inúmeros estudos posteriores, como outros dicionários de artistas e artífices publicados posteriormente, o da Bahia escrito por Marieta Alves (22) e o de Recife escrito por Vera Lúcia C Acioly (23).
Judith Martins realizou diversas viagens representando o Sphan, dentre elas estão à de auxílio para montagem de um escritório técnico em Adamantina, cidade do interior de São Paulo e os encontros em defesa do Patrimônio. Em 1971, quase para se aposentar, foi convidada pelo Ministro da Educação e Cultura, Jarbas Passarinho, para ser a Secretária Geral do II Encontro de Governadores. Na carta, o Ministro, agradece a dedicação de Judith aos anos de serviço público.
Carlos Drummond de Andrade escreveu um pequeno texto sobre Judith no Jornal do Brasil, em 1971. Uma crônica dividida em três momentos, como uma memória em diálogo, na qual delimita trechos do ingresso de Judith no Sphan, seu dia a dia de trabalho junto à Rodrigo Melo de Franco Andrade e por fim, sua aposentadoria. Em virtude desta crônica, Judith, recebeu uma medalha por Mérito Educativo no Itamaraty no mesmo ano. Abaixo, transcrito da publicação, um trecho da crônica:
“O Iphan tem exatamente a idade do tempo de serviço de D. Judith. Ele é um pouco – só um pouco? muito – seu filho. Ela o embalou ao nascer, mudou-lhe a fralda, ensinou-o a andar, cuidou de sua adolescência, veio com ele até a madureza. Há um sentimento de maternidade, na dedicação que esta mulher deu ao serviço” (24).
Iphan: uma interpretação da História Oral de Judith Martins
A entrevista realizada com Judith Martins teve como local o Palácio Capanema, no Rio de Janeiro em 28 de setembro de 1982, durou 85 minutos e 26 segundos (25). Foi a primeira entrevista realizada pelo projeto Memória Oral Sphan/Pró-Memória, por Teresinha Marinho e Lélia Coelho Frota (26). Judith estava quase complementando oitenta anos de idade.
O objetivo do artigo é apresentar uma narrativa interpretativa sobre o período histórico que compreendeu as atividades de Judith Martins no Iphan (1936 a 1973). Para isso, utiliza como fonte primária a entrevista concedida por ela ao Projeto Memória Oral, transcrita e disponibilizada para consulta no site do Iphan. O intuito é reconhecer sua memória enquanto documento de análise e revisão histórica, trazendo para a superfície uma outra leitura sobre a composição do Instituto e seus personagens, tendo Judith Martins como papel principal.
Início no Sphan, início do Iphan
Judith Martins começou o trabalho no Sphan através de um amigo em comum à Rodrigo Melo Franco de Andrade e por ele, ficou sabendo que haveria um novo órgão público a ser criado por lei no Rio de Janeiro. Rodrigo era advogado e trabalhava junto ao tio, João Melo Franco, em um escritório na Rua da Assembleia, no centro do Rio de Janeiro. Ele havia sido indicado, ao Ministro Gustavo Capanema, para ocupar o cargo de direção do novo órgão por Manuel Bandeira, de quem era testamenteiro. Nesse ponto, o registro de Judith difere-se de algumas outras interpretações históricas, nas quais colocam que a indicação de Rodrigo foi realizada por Mário de Andrade (27). Judith tinha 33 anos quando foi ao escritório de Rodrigo e disse que desejava um emprego. No momento, foi informada por ele que precisavam de alguém para digitar o “catatau” elaborado por Mário de Andrade, que representava o Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional (28). Apesar de dizer que não tocava em uma máquina de escrever há anos, Judith, preferiu permanecer no escritório, sugerindo que treinasse a digitação do “catatau” por ali mesmo. E assim permaneceu no escritório, alguns dias depois, Rodrigo solicitou à Carlos Drummond de Andrade que redigisse o contrato dela como datilógrafa.
No início, não havia recursos para a criação do órgão, por isso, funcionou por alguns meses no escritório de Rodrigo e seu tio. Quando o Ministro Gustavo Capanema conseguiu uma certa quantia, Judith e Rodrigo, saíram pelo centro do Rio de Janeiro para procurar uma sede e comprar os equipamentos necessários para dar início as contratações e funcionamento do serviço. Os equipamentos foram adquiridos na Casa Pratt, localizada na rua do Ouvidor n. 125 (29). E para sede, alugaram um conjunto de três salas no Edifício Nilomex, na rua Nilo Peçanha n. 61. Das três salas, uma ocupava Rodrigo, na outra Judith, Hélcia Dias, que também auxiliava na datilografia e o secretário, Oswaldo Teixeira. Na terceira sala ficava o arquivo, no qual trabalhava Carlos Drummond de Andrade, chefe da Seção, que permaneceu nessa posição até se aposentar, em 1962. Judith foi nomeada para ocupar a posição de Drummond, na qual permaneceu até 1973. Em 1945, a sede foi transferida para o prédio do Ministério da Educação e Saúde.
O Sphan funcionou em bases provisórias de abril de 1936 até a publicação do Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937. Nesse período, Rodrigo convocou diversos conhecidos para discutirem o projeto de Mário de Andrade, pois a ideia era reduzi-lo para conformação do decreto, dentre os colegas estavam Prudente de Morais Neto, professor da antiga Universidade do Distrito Federal e Edmundo Lins, Juiz e Ministro do Supremo Tribunal Federal. Segundo Judith (30), o ambiente de trabalho vivia cheio de visitas, Rodrigo atendia a todos que batessem à porta. Ele era o primeiro a chegar e o último a ir embora, trabalhava fora do expediente e viajava pouco. Um trecho da sua entrevista apresenta o clima do local:
“Era tanta gente que vinha conversar com o Dr. Rodrigo, que não me lembro. [...] Vinham, às vezes, por interesses de patrimônio e, às vezes, por interesses outros, não sei [...]. E todo interessado que chegava aqui e quisesse falar com o Dr. Rodrigo, ele mandava abrir a porta. A porta era aberta. Ele dizia: “Isto é serviço público, minha cara”. Ele atendia quem quer que fosse. Isto perturbava o andamento dos trabalhos. Ele trabalhava fora da hora de expediente, geralmente. De manhã, já preparava alguma coisa, porque chegava aqui muito cedo, ou depois que o pessoal ia embora”.
Atividades ligadas ao serviço do patrimônio (1937-1973)
As atividades iniciais, após a publicação do Decreto-Lei n. 25 de 1937, compreenderam a nomeação dos chefes de distrito. Pessoas de confiança designadas para assumir regionalmente questões ligadas ao patrimônio. O primeiro distrito composto foi o do eixo Norte e Nordeste, designado para Dr. Ayrton de Almeida Carvalho. O segundo foi o distrito da Bahia e de Sergipe, que seria comandado pelo historiador e professor Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho. O terceiro foi Minas Gerais e Goiás, designado para Sylvio de Vasconcellos. Em São Paulo, o titular era Mário de Andrade e o arquiteto, Luís Saia, que assumiu integralmente o distrito quando Mário de Andrade mudou-se para o Rio de Janeiro.
A primeira obra executada pelo Serviço de Patrimônio Histórico foi na Igreja de São Miguel em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, construída pelo arquiteto italiano Gian Battista Primoli, entre 1735 e 1745. O projeto de estabilização das ruínas foi conduzido por Lucio Costa, Lucas Mayerhofer e Leônidas Cheferrino. Os “Remanescentes do Povo e Ruínas da Igreja de São Miguel e a Edificação do Museu das Missões” foram tombados pelo Sphan, em 1938 (31). Lucio Costa era chefe da Seção de Obras e Conservação, com ele havia uma equipe de arquitetos, como: José de Souza Reis, Renato Soeiro, Edgard Jachinto e Paulo Thedim Barreto.
Já os trabalhos desenvolvidos pelo Setor de Recuperação do Sphan, que cuidava da restauração de obras foram sendo desenvolvidos aos poucos através da prática. A primeira obra de restauração ocorreu com o trabalho de Anita Orientar (32), na restauração dos painéis da Igreja de São Lourenço dos Índios, em Niterói. A seção oficial que compreendeu o Setor de Restauro do Sphan iniciou-se com Edson Motta. Nascido em Juiz de Fora, estudou na Escola Nacional e Belas Artes, Motta era membro do Núcleo Bernardelli e foi convidado para iniciar os trabalhos de restauro. O diretor, Rodrigo Melo Franco de Andrade, conseguiu uma bolsa pela Fundação Rockfeller para Motta estudar conservação e restauro de obras de arte no Fogg Art Museum, pertencente a Universidade de Harvard. Seu auxiliar, Jair Afonso Inácio, também de Minas Gerais não possuía formação e fez seus estudos no Rio de Janeiro, estagiando no Iphan e cursando Restauração na Escola Nacional de Belas Artes, ministrado por Edson Motta. Rodrigo Melo Franco de Andrade também conseguiu uma bolsa de estudos no exterior para Jair Inácio, em 1961, através da Fundação Rockfeller. Por ser negro, a bolsa oferecida pela Fundação contemplava o Instituto de Restauro da Bélgica, em Bruxelas, ele teve como orientador o então diretor da instituição, Paul Coremans (33). Em 1970, já de volta ao Brasil, Jair Inácio criou o Curso Técnico em Conservação e Restauração de Bens Culturais da Fundação de Arte de Ouro Preto, uma das primeiras iniciativas de formação de conservadores no Brasil (34).
Judith Martins, pesquisadora
Judith Martins, ao longo da trajetória no Sphan/Dphan/Iphan, matriculou-se nas aulas de línguas da Aliança Francesa e da Cultura Inglesa, também frequentava a aula de História da Arte Brasileira na antiga Universidade do Distrito Federal, ministrada por José Mariano Filho. Além das aulas semanais contratadas por Rodrigo para os funcionários do Sphan, como a de História Geral da Arte, ministrada por Hanna Levy e a de Português, ministrada por Celso Cunha. Nesta época, década de 1940, houve o primeiro concurso púbico para os funcionários, eram quarenta vagas na área de arquivologia. Judith e mais alguns colegas foram os primeiros efetivos funcionários públicos da instituição.
Sua experiência como pesquisadora começou logo no início, entre as décadas de 1940 e 1960, Judith foi acumulando por meio de verbetes, com o auxílio de pesquisadores de Minas Gerais, cópias de documentos, registros de artistas, obras, contratos, pagamentos. Esses verbetes eram anotados em fichas por ordem alfabética, o que condicionou a criação de um Dicionário, publicado em 1974, em dois volumes, “Dicionário de artistas e artífices de Minas Gerais dos séculos 18 e 19”. Esse mesmo procedimento foi realizado para Bahia e parcialmente para Pernambuco e Rio de Janeiro, mas não chegou a publicá-los. Judith Martins apresentou no IV Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros em 1959, na Bahia, o único estudo realizado sobre o pai de Aleijadinho, Manoel Francisco Lisboa.
Judith Martins ocupou o cargo de chefe da Seção de História e do Arquivo do Dphan/Iphan de 1962 até 1973, quando se aposentou. Mesmo depois continuou a frequentar o Arquivo Central até 1984, realizando pesquisas para a publicação de outros dicionários. Faleceu em 27 de outubro de 2000, aos 97 anos, no Rio de Janeiro (35).
Considerações finais
Através da História Oral, um dos campos de estudo da disciplina da história e dos projetos realizados e publicados pelo Iphan, Memória Oral Sphan/Pró-Memória e a Série Memórias do Patrimônio, foi possível a realização deste artigo. A utilização da entrevista enquanto fonte de pesquisa, permite elucidar questões outras, diferentes daquelas reiteradamente reproduzidas, segundo fragmentos e fontes unívocas do passado.
Judith Martins foi uma das inúmeras grandes mulheres pouco tratadas pela historiografia e este artigo pretendeu colocar em evidência seu trabalho de vida, como funcionária e membro do Iphan. Sua dedicação de anos ao órgão, contribuiu para a conformação de uma instituição referência no patrimônio e, para a difusão de conhecimento para além do tempo tratado. O reconhecimento do seu trabalho está longe de ser significado quanto deveria. Mas, aos poucos, com a soma de trabalhos que a colocam em evidência nas narrativas, pretende-se contribuir para a composição de outras memórias históricas, nas quais ela e mais sujeitos/sujeitas tenham voz, para além das já consagradas personalidades.
notas
1
LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 12ª edição. Rio de Janeiro, José Olympio, 2009; MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Petrópolis, Vozes, 2009; BARROS, José D’Assunção. Teoria da História. A Escola dos Annales e a Nova História. Vol. V. Petrópolis, Vozes, 2012.
2
MUNSLOW, Alun. Op. cit., p. 9.
3
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 4ª edição. Brasília, Editora UnB, 1998, p. 18.
4
GRELE, Ronald J. Reflections on the practice of oral history. Retrieving what we can from na earlier critique. Suomen Antropologi: Journal of the Finnish Antropological Society, Hensinki, v. 32, n. 4, p. 11-23, winter 2007; SILVA, Heloísa da; ROLKOUSKI, Emerson. As vozes do passado – História Oral: Paul Thompson X Philippe Joutard. II Seminário de Pesquisa e Estudos Qualitativo, a pesquisa qualitativa em debate, São Paulo, SE&PQ, 2004, p. 82.
5
GRELE, Ronald J. Reflections on the practice of oral history. Retrieving what we can from na earlier critique. Suomen Antropologi: Journal of the Finnish Antropological Society, Hensinki, v. 32, n. 4, p. 11-23, winter 2007.
6
JOUTARD, Philippe. Esas voces que nos llegan del pasado. Buenos Aires, FCE, 1999; THOMPSON, Paul. A voz do passado – História Oral. 2ª edição. São Paulo, Paz e Terra, 1998.
7
Idem, ibidem.
8
Idem, ibidem.
9
Idem, ibidem.
10
Idem, ibidem.
11
SILVA, Heloisa da; ROLKOUSKI, Emerson. Op. cit., p. 82.
12
ARAUJO, Maria Celina D’. Como a História Oral chegou ao Brasil: Entrevista com Aspásia Camargo. Revista História Oral, v. 2, 1999, p. 167-79.
13
THOMPSON, Analucia (Org.). Serie Memórias do Patrimônio: entrevista com Judith Martins. Rio de Janeiro, Iphan/DAF/Copedoc, 2009, p. 17.
14
Idem, ibidem, p. 18.
15
Idem, ibidem, p. 13. A Instituição criada pela Lei nº. 378, de 13 de janeiro de 1937, já havia recebido diversas denominações: Sphan, de 1937 a 1946; Dphan de 1946 a 1970 e posteriormente, Iphan.
16
Idem, ibidem, p. 9.
17
Idem, ibidem, p. 18. Como: Lucio Costa, Alcides Rocha Miranda, José de Souza Reis, Godofredo Filho, Antonio Joaquim de Almeida.
18
A biografia contemplada neste artigo possui como referência integral a publicação de Analucia Thompson, doutora em Museologia, técnica do Iphan e coordenadora do Projeto Memória Oral da Preservação do Patrimônio Cultural. A publicação está disponível para download no site do Iphan. THOMPSON, Analucia (Org.) Op. cit., p. 17.
19
Idem, ibidem, p. 22.
20
Idem, ibidem, p. 22.
21
Idem, Ibidem.
22
ALVES, Marieta. Dicionário de artistas e artífices na Bahia. Salvador, Universidade Federal da Bahia, Centro Editorial e Didático, Núcleo de Publicações, 1976.
23
ACIOLY, Vera Lúcia C. A identidade da beleza: dicionário de artistas e artífices do século 16 ao 19 em Pernambuco. Recife, Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2008.
24
Jornal do Brasil, 1971, s.p. Ver Hemeroteca Digital Brasileira.
25
THOMPSON, Analucia (Org.). Op. cit., p. 28.
26
A entrevista foi transcrita e publicada na série “Memoria Oral” organizada por THOMPSON, Analucia (Org.). Op. cit., p. 29-54.
27
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Mário de Andrade e Lúcio Costa no número inaugural da Revista do SPHAN. Revista CPC, v. 13, n. 25 especial, p. 48-79, jan./set. 2018.
28
O Anteprojeto de Mário de Andrade é constituído de dezesseis páginas, dividido em três capítulos. O primeiro capítulo atribuía os objetivos do Span; o segundo, determinava conceitualmente o que era considerado como Patrimônio e o último, delimitava os cargos dentro do organismo. Ver ANDRADE, Carlos Drummond. Dona Judite. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 mai. 1971, n. 20, s.p. Disponível em: Hemeroteca Digital Brasileira <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.
29
A Casa Pratt também tinha sede em São Paulo, na rua São Bento n. 22 e posteriormente, mudou-se para o Largo da Sé. Era representante exclusiva de algumas máquinas de escrever, como a Remington. Ver Revista Careta, Rio de Janeiro, n. 257, ano VI, 3 mai. 1913. Disponível em: Hemeroteca Digital Brasileira <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.
30
MARTINS, Judith. Sphan Memória Oral. [entrevista concedida a] Teresinha Marinho e Lélia Coelho Frota. In THOMPSON, Analucia (Org.). Op. cit.
31
Processo de Tombamento n. T 141/1938 (lista dos Bens Tombados do Iphan).
32
Anita nasceu na Bahia e emigrou para Europa com seus pais logo cedo. Retornaram da Alemanha para o Rio de Janeiro em 1939, por conta da guerra. Estudou Arte em Berlim e defendeu seu doutoramento em Filosofia na Universidade de HalleWittenberg/Alemanha. Ver THOMPSON, Analucia (Org.). Op. cit.; e site Anita Orientar <www.anita-orientar.com>.
33
THOMPSON, Analucia (Org.). Op. cit., p. 108.
34
Idem, Ibidem.
35
Idem, Ibidem, p. 23.
sobre a autora
Taís de Carvalho Ossani é mestre pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com bolsa Capes (2018) e atualmente doutoranda na mesma instituição. Recebeu Menção Honrosa com a Dissertação de Mestrado Rogelio Salmona, a espessura heterogênea de uma superfície uniforme no Prêmio Anparq 2018. É professora da Universidade Anhanguera de São Paulo, unidade Osasco.