Oscar Niemeyer projetou edificações que mobilizaram arquitetura e engenharia estrutural, campo no qual os engenheiros Joaquim Cardozo, José Carlos Sussekind e Bruno Contarini contribuíram sobremaneira para materialização de seus projetos. A Igreja de São Francisco de Assis, a Catedral de Brasília, a Universidade de Constantine e o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, dentre outras, são edificações que traduzem a relação dialógica que permeia o trabalho conjunto do arquiteto com os engenheiros estruturais, nas quais percebe-se a estrutura incorporada à forma arquitetônica. Configuração que mobilizou nossa pesquisa e acabou por resultar na formulação do conceito forma-estrutura (1) que, apropriado como estratégia projetual, pode operar como matriz de expressão tectônica. Perspectiva que informa a análise do projeto e da construção da Catedral de Brasília, sobretudo a cúpula da nave, foco desta discussão.
Eduard Sekler afirma que a expressão tectônica das edificações, além de se manifestar por vários meios, pode ser deliberadamente pouco clara:
“Deixando o observador maravilhado diante de vastas expansões de matéria pairando aparentemente sem esforço sobre um vazio [...]. Pode haver uma negação tectônica criada com o auxílio de formas atectônicas que tendem a perturbar o observador” (2).
Na Catedral de Brasília é possível observar três objetos sobre uma espécie de plataforma (3): a cúpula do batistério, a torre sineira e a cúpula da nave. A materialização dessa cúpula se dá por meio de uma matriz radial de repetição de um único elemento estrutural, que Niemeyer descreve como uma “coluna curva”. Estratégia registrada no ensaio Depoimento, publicado em 1958, no qual indicava novas diretrizes para sua arquitetura, colocando em destaque que a expressão de seus edifícios não se daria mais por elementos secundários, mas pela “própria estrutura devidamente integrada na concepção plástica original” (4). Anos depois, Niemeyer comentaria: “foi em Brasília que minha arquitetura se fez mais livre e rigorosa” (5).
É neste paradoxo, que conjuga liberdade com rigor, que localizamos uma das chaves para a análise do projeto da Catedral no que diz respeito à expressão tectônica, uma vez que ali distensão e pureza da forma livre se distanciam de certo racionalismo construtivista.
Sophia Telles identifica na arquitetura moderna brasileira duas estratégias projetuais diferentes: o “desenho de formas” e o “desenho de estruturas”. Afirma que a noção de espaço presente no “desenho de formas de Niemeyer” e no “desenho de estruturas em São Paulo” é caracterizada pela maneira como os projetos “expressam sua relação com a superfície e o volume” (6). De certo modo, estabelece termos para a legibilidade das edificações, pois contrapõe o racionalismo e a legibilidade estrutural intrínsecos ao desenho de estruturas à forma livre das superfícies no desenho de formas, configurando abordagens distintas para o mesmo problema: a criação do espaço. Porém, a categorização de projetos baseada no desenho de estruturas, em oposição ao desenho de formas, parece atribuir ao segundo certa depreciação no que concerne à pouca legibilidade das estruturas portantes e às implicações construtivas para sua realização. Linha de pensamento que denota tendência a retirar de projetos cuja geratriz encontra-se no desenho de formas certa possibilidade de expressão tectônica.
A expressão tectônica na Catedral pode ser objeto de certa controvérsia pela dificuldade na identificação da relação direta entre carga e suporte. Todavia, a afirmação de Sekler sobre a expressão tectônica deliberadamente negada, que deixa o observador maravilhado, pode iluminar esta análise. Pode-se considerar que a expressão tectônica tem gradações, que vão da ênfase à falta deliberada de clareza, além de se manifestar também por outros meios, desvinculando-se da transmissão de forças em direção aos apoios de modo direto e convencional.
A caracterização da qualidade atectônica foi formulada por Sekler em ensaio sobre a casa Stoclet, projetada por Joseph Hoffman e construída em 1911. Descreve como atectônica a maneira pela qual a interação expressiva de carga e suporte na arquitetura é visualmente negligenciada ou obscurecida (7). Sekler, portanto, diferencia construções tectônicas e atectônicas, que se expressam por afirmação ou negação do processo construtivo.
Na cúpula da nave da Catedral a expressão tectônica vem da construção de elementos portantes com qualidade estrutural intrínseca que geram a forma, mas fogem a certo padrão racionalista. Por um lado, pode-se não identificar a expressão tectônica de um conceito estrutural inteligível a se dar pela legibilidade do caminho das forças. Por outro, manifesta-se no sujeito alguma perturbação pela sua condição de flutuação sobre um espelho d´água. Característica que confere ao edifício qualidade atectônica, que proporciona uma experiência empática pela inquietação que provoca. Atectonicidade e empatia são qualidades perceptíveis neste projeto.
Niemeyer explorou ao máximo as possibilidades plásticas e estruturais do concreto armado. Elaborou projetos cuja expressão tectônica seria também a expressão do desenvolvimento tecnológico desse material.
“Assim que comecei os estudos para a Catedral de Brasília, soube que meu projeto deveria, pela sua leveza, ilustrar a técnica contemporânea. [...] Com o concreto armado, que oferece infinitas possibilidades, sabia que podia ambicionar algo mais” (8).
Ao “ambicionar algo mais”, foi ao encontro de certa tradição da tectônica que, segundo Kenneth Frampton, caracteriza-se por uma permanente busca de reinterpretação e inovação. Fenômeno de inegável evolução no qual ao longo do tempo persistem a representação e a apresentação do edifício como produto de um processo de construção. Para Frampton, a materialização é fruto de um processo construtivo essencial “à presença fenomenológica de um trabalho arquitetônico e sua literal incorporação na forma” (9).
A presença da Catedral, especialmente da cúpula da nave, provoca inquietação por sua condição de edifício construído, e não como desenho. Elementos estruturais não possuem significado a priori, para além de sua função. Quando a extrapolam e se incorporam à forma em uma única essência, de matriz racionalista ou não, o conjunto se expressa tectonicamente, mesmo que seja por uma negação deliberada da legibilidade construtiva. Configura-se, assim, o que nos parece possível caracterizar como forma-estrutura atectônica.
Explicitada pelo caminho das forças ou pouco clara por sua negação, a expressão tectônica é também manifestação empática, na medida em que o sujeito interage com as edificações. O termo empatia foi criado por Robert Vischer em 1870 em meio ao debate germânico sobre estética que se dava no final do século 19. Em tese de doutorado, cujo tema era o problema da projeção emocional, Vischer propõe que o corpo, inconscientemente, projeta sua própria forma na forma do objeto, definindo para esse conceito o termo Einfühlung, traduzido como empatia (10).
A transposição do conceito de empatia como manifestação empática na Arquitetura foi formulada por Heinrich Wölfflin em tese de 1886, Prolegomena zu einer Psychologie der Architektur, na qual postula ser a tectônica uma manifestação particular de empatia no campo da arquitetura (11). Michael Selzer, um dos tradutores da tese de Wölfflin, ressalta a obsolescência dos conceitos sobre psicologia ali utilizados, porém ratifica sua atualidade no que tange à abordagem da consciência de nossos próprios corpos como agentes de sensibilização pela expressividade das edificações (12). Para Wölfflin, que conhecia e utilizava os trabalhos de Carl Bötticher e Gottfried Semper, as impressões causadas pela arquitetura, longe de serem apenas visuais, consistiriam essencialmente de sensações corporais sem intermediação (13). Assim, nossa consciência corporal nos coloca em diálogo com as edificações a partir de aspectos da forma como regularidade, simetria, proporção, harmonia, ou seus contrários, que não são especificamente expressivos per se. A projeção de nossa consciência corporal nas edificações configuraria, segundo Wölfflin, a experiência empática.
As possibilidades de expressão tectônica vinculadas à experiência empática podem estar também na origem da palavra techne. A partir de um ensaio de Heidegger, intitulado A Origem da Obra de Arte, publicado em 1950, Frampton amplia sua análise da expressão tectônica. Ressalta que esta ativaria a noção etimológica de techne com o significado de produzir, associando na mesma palavra a existência simultânea de arte e ofício, uma vez que os termos designariam uma única coisa. Tal associação indicaria o que está latente no trabalho e por isso a expressão tectônica levaria o significado de techne a evidenciar uma condição ontológica de uma “coisa através da revelação de seu valor epistêmico” (14). Deduz-se, portanto, que na expressão tectônica estaria intrínseco ao objeto construído um “saber fazer”. Heidegger, porém, chama atenção para uma certa superficialidade na associação de obra de arte e obra de manufatura em uma única palavra: a techne é um produzir do ente, na medida em que traz o presente como tal, da ocultação para a desocultação do seu aspecto. Techne não significaria apenas a atividade de um fazer (15), e sim o “estabelecimento da verdade que se institui na forma” pela “ desocultação do ente” (16). É, portanto, pelo “saber fazer”, ou seja, pelo projeto e os conceitos ali incorporados que a expressão tectônica se revelará no edifício construído. A tectônica, como domínio dos saberes da Arquitetura, é também abordada por Sekler quando afirma:
“Dos três conceitos, tectônica é o mais autonomamente arquitetônico e que, apesar do arquiteto não necessariamente controlar as condições da estrutura e da construção tão completamente quanto gostaria, ele é o mestre inquestionável da expressão tectônica” (17).
Para ilustrar esse argumento, cita Frank Lloyd Wright quando explicou a forma da First Unitarian Church. Ao aludir às mãos unidas em oração, Wright estava denotando “reverência e aspiração” e, por isso, não falava de estrutura, mas sim de tectônica (18). Sekler vincula a expressão tectônica não somente aos aspectos técnicos do processo construtivo, mas também à configuração simbólica das edificações e à experiência empática.
Quando Niemeyer pensou uma catedral que podia “tal qual uma escultura monumental, traduzir uma ideia religiosa, uma prece” (19), e a projetou “circular, com colunas curvas se elevando em um gesto de súplica e de comunicação” (20), chamava atenção para a associação desses elementos a um gesto simbólico e, por isso, também falava de tectônica. A materialização dessa intenção no edifício proporciona uma experiência empática tanto no campo da fenomenologia como por sua configuração simbólica e isso se traduz em expressão tectônica, que já se anunciava condensada em seu croqui.
Essa é, portanto, outra chave que se propõe para a leitura do projeto e construção da Catedral de Brasília. Análise conduzida a partir de três categorias: imposição da forma, legibilidade estrutural e materialidade estrutural, que procuram explicitar a configuração de atectonicidade que se manifesta empaticamente.
Imposição da forma
Ao descrever o projeto da Catedral na revista Habitat, em 1958, Niemeyer se refere à pureza da forma e à relação da estrutura com a racionalidade e construtibilidade:
“Uma solução compacta, que se apresentasse externamente de qualquer ângulo com a mesma pureza. Vem daí a forma circular adotada, que além de garantir essa característica, oferece à estrutura uma disposição geométrica, racional e construtiva” (21).
Parece justificar ali o rigor que associa à forma livre da Catedral. No entanto, não era mais certa racionalidade construtiva fundamentada pela ortogonalidade.
O projeto originalmente seria composto de 21 elementos dispostos radialmente sobre uma base circular de 70m de diâmetro com o intercolúnio vedado por placas de vidro sendo a nave rebaixada em 3m em relação ao terreno natural para que a entrada se desse por uma rampa a ser percorrida em ambiente de sombra. A chegada à nave seria anunciada pelos efeitos da luz penetrando as placas de vidro, em contraste com o ambiente sombrio da rampa, já prenunciando a experiência empática pretendida.
No edifício construído observa-se um único elemento estrutural de seção transversal triangular variável conforme a altura de 31m e é repetido dezesseis vezes gerando a forma da Catedral. A repetição em geratriz radial desse elemento, sem significado a priori, materializou um edifício como produto de ação precisa e poética.
As colunas curvas procuram o equilíbrio escorando-se umas nas outras. Um único elemento é gerador de forma e complexidade, que tem na imposição da forma a sua origem. Sua curvatura levou Cardozo a associá-lo a um arcobotante invertido (22), o que instiga a compreensão de sua função estrutural pois colunas são peças projetadas para resistir a esforços preponderantes de compressão, com a flexão atuando secundariamente. Cardozo, no entanto, enfrentou a imposição da forma como inerente ao processo de elaboração do projeto estrutural, pois entendia que:
“O que existe de verdadeiro, é o ser a forma projetada pelo arquiteto uma forma estabelecida a priori, apenas condicionada a uma questão de estabilidade, mas nunca resultante a posteriori desta última” (23).
No ensaio em que relata a construção, resume a complexidade analítica que enfrentou:
“A estrutura da Catedral é constituída de seis [dezesseis] elementos de forma estranhíssima, são verdadeiros arcobotantes, não mais escorando uma abóbada, mas escorando-se entre si: têm, ao rés do chão, um anel de tração, e, na função que fazem, ao alto, um anel de compressão, que fica escondido dentro dos próprios elementos construtivos da estrutura. Estes arcobotantes sustentam ao alto uma laje de cobertura de forma circular com 16 metros de diâmetro, assim como sustentarão lateralmente grande esquadria de vidros; a forma da catedral está teoricamente envolvida por uma série de superfícies tangentes: tronco de cone, zona de pseudoesfera, duas zonas de toxo (internas) e, na parte mais alta, uma zona de hiperboloide de uma folha, e de revolução” (24).
Consta que não restaram registros do projeto estrutural (25), porém este fato não impede a realização de análises a posteriori, principalmente no que tange à criação de um modelo de análise estrutural que venha a representar a estrutura construída. Nas palavras de Cardozo, o modelo está exposto: no chão, um anel de tração e, no topo, um anel de compressão servindo de escora aos arcobotantes invertidos que, na extremidade superior, sustentam uma laje de cobertura e lateralmente sustentam as esquadrias. A simplicidade do modelo idealizado comprova sua engenhosidade. Todavia, não é possível extrair do texto como este modelo seria analisado estruturalmente.
Cardozo pode ter imaginado um modelo estrutural que se aproximasse das teorias clássicas da hiperestática na época em que elaborou o projeto. Uma consulta ao engenheiro e professor da Faculdade de Engenharia Civil da Universidade Federal da Bahia, Antônio Carlos Laranjeiras, sobre um possível modelo utilizado por Cardozo para o enfrentamento do problema, resultou na seguinte resposta:
“O modelo escolhido pode ter sido o de um simples pórtico plano, que se repetiria oito vezes, constituído por duas hastes curvas, opostas, e o anel superior como uma haste horizontal, interligando as hastes opostas. As duas hastes inclinadas seriam articuladas na extremidade inferior. A extremidade inferior teria vínculos, impedindo seu deslocamento horizontal e vertical” (26).
Tal modelo pode ser representado a partir do próprio croqui de Niemeyer.
A escolha de um modelo simplificado seria a chave do problema e estaria de acordo com as proposições de Pier Luigi Nervi, engenheiro contemporâneo de Cardozo, que, segundo Ada Louise Huxtable, considerava que:
“O estágio formativo do design, durante o qual as características principais são definidas e suas qualidades e defeitos são determinados de uma vez por todas (assim como as características de um organismo são claramente definidas no embrião), não pode fazer uso da teoria estrutural e deve se basear na simplificação esquemática” (27).
Quanto à abordagem na criação de um modelo estrutural, Cardozo e Nervi possivelmente estariam de acordo, apesar de haver uma distinção fundamental no trabalho de ambos. Para Nervi, a melhor forma estética viria de uma síntese com a melhor forma estática, enquanto Cardozo aceitava as implicações provenientes da imposição da forma, como teve oportunidade de expressar no ensaio de 1958, Forma Estática-Forma Estética.
Recentemente, modelagens computacionais de pórticos espaciais têm sido propostas para investigar a estrutura da Catedral. Essas comparam os resultados obtidos pelos métodos de cálculo atuais com os resultados provenientes do modelo simplificado de Cardozo. Após a aplicação do carregamento e o processamento do cálculo de esforços, os resultados comprovam a provável idealização de Cardozo. O anel superior mostra-se, de fato, submetido a tensões de compressão e o anel inferior submetido a tensões de tração (28).
Augusto Vasconcelos nos fornece dados adicionais à análise do projeto. A grelha que compõe o anel inferior de tração é fechada por lajes nas faces superior e inferior das vigas radiais e o conjunto se apoia em pilares-parede, que conformam os limites do subsolo (29).
A análise computacional aponta, porém, a principal contradição proveniente da imposição da forma. Os arcobotantes das construções medievais, com os quais Cardozo faz uma analogia, tinham como função estrutural equilibrar forças de tração provenientes das cúpulas e telhados, que atuavam nas paredes portantes das edificações. Para tanto, eram construídos com a forma arqueada, comprovadamente eficiente para suportar as forças de compressão que neles se desenvolviam como reações. Alterando esse conceito, Niemeyer inverte a curvatura dos arcos na Catedral e, a partir dessa ação, submete os elementos a esforços preponderantes de flexão, caracterizando-os assim como vigas e não colunas.
O que se deduz, portanto, é que a imposição da forma influenciou o comportamento da estrutura. Entretanto, na Catedral, independentemente do comportamento ou função, tudo é estrutura, como queria Niemeyer e como possibilitou Cardozo. Ali a imposição da forma, longe de ser limite, mostrou-se uma fronteira que ultrapassada permitiu sua materialização. Materialização que possibilitaria certa experiência empática pretendida por Niemeyer.
Legibilidade estrutural
A forma da cúpula da nave da Catedral obrigou Cardozo a formular um sistema estrutural que, apesar de fundamentado nos preceitos da simplicidade estática, escamoteia sua imediata compreensão. A legibilidade estrutural baseada no caminho das forças desaparece, impondo dificuldades de leitura que instigam a imaginação. Neste sentido, Sekler comenta:
“O trabalho de Torroja e Nervi é muito adequado para nos lembrar da simples verdade de que a expressão tectônica poderosa não precisa estar vinculada a um sistema que remeta à interação entre horizontalidade e verticalidade relacionada ao pórtico” (30).
Ao associar a estrutura a um conjunto de pórticos planos, cujo modelo se distanciava dos pórticos clássicos, Cardozo abandona aquela interação, porém o fato de o caminho das forças não ser observável em uma apreensão imediata não retira do objeto construído sua expressão tectônica, pois uma forma atectônica pode se expressar tectonicamente, como postulado por Sekler.
Na Catedral, a legibilidade estrutural pode se dar de modos diferentes, dependendo se é apreendida pelo lado externo ou interno do edifício. No externo, a base constituída pelo anel de tração que recebe os esforços das “colunas curvas” fica fora do campo de visibilidade, dando a impressão de flutuação e imprimindo ao edifício a leveza pretendida por Niemeyer. O apoio superior configurado no anel de compressão, também invisível como tal, está situado no ponto de tangência entre as “colunas”, levando o sujeito a acreditar que estas apenas se tocam para em seguida voltarem a se separar, providenciando, acima desse ponto, o necessário apoio para a laje da cobertura.
Já o interior da nave se constitui de um espaço livre de elementos estruturais, sendo perceptíveis apenas elementos opacos e translúcidos da cobertura. A legibilidade do espaço, delimitado pela delgada cobertura, não coincide necessariamente com a legibilidade estrutural, pois ali vidro e “faixas” curvas parecem flutuar, além de cobrirem o espaço de modo praticamente coplanar, induzindo uma leitura em que colunas curvas e vidros formam um único conjunto. A sensação de leveza induz à obliteração da estrutura portante.
Quanto à legibilidade estrutural, portanto, a cúpula da nave é ambígua. Externamente os elementos que se elevam em curva podem ser lidos estruturalmente, mesmo que pareçam flutuar, pois é nítida sua condição de nervura e de suporte para a laje da cobertura. Internamente, entretanto, a estrutura é pouco perceptível como funcional.
Guilherme Wisnik ressalta que “determinante, porém invisível, o esforço técnico em Niemeyer cede espaço à aparição de formas leves, estáveis, surpreendentemente sustentáveis, e por isso tidas frequentemente como surrealistas” (31). Esse esforço técnico deveria ser entendido em toda a abrangência do termo, em que estariam incluídos o projeto estrutural que confere a condição de equilíbrio surpreendente, além do processo construtivo em si. De fato, o esforço técnico em projetos ancorados no princípio da forma-estrutura começa no projeto da estrutura portante, resultado da imposição da forma, que dará origem à criação de um modelo estrutural fundamentado pelas propriedades físicas e mecânicas dos materiais que o constituem, determinando um processo construtivo específico. Há, portanto, uma interdependência nas etapas do processo, e todo esse conjunto se traduz em esforço técnico, que se materializa na construção e, portanto, não pode ser invisível.
Por sua vez, Telles argumenta que Niemeyer não deposita na matéria “nenhuma carga expressiva assim como retira dela qualquer tensão estrutural” (32). O fato de a legibilidade estrutural, que se dá no objeto construído e, portanto, na matéria, não estar claramente amparada na apreensão visual do caminho das forças, não implica que as tensões estruturais sejam retiradas e o esforço necessário à sua consecução seja sublimado. Estão todos materializados na construção. Adicionalmente, o esforço técnico se reflete também na experiência empática vivida pelo sujeito sob a cúpula da nave da Catedral que parece flutuar.
Materialidade estrutural
Niemeyer compreendeu como poucos o potencial do concreto armado como material estrutural, sobretudo no que diz respeito à monoliticidade intrínseca a este material. Foi em Brasília que levou tal propriedade ao limite. Em um ensaio sobre a forma, referindo-se às possibilidades do material, Niemeyer escreveu que “não podia compreender como, na época do concreto armado que tudo oferecia, a arquitetura contemporânea permanecesse com um vocabulário frio e repetido, incapaz de exprimir aquele sistema em toda a sua grandeza e plenitude” (33).
As colunas curvas se mostram em um movimento ascendente a partir do piso da esplanada agregando-se monoliticamente no ponto de tangência onde se configura o anel de compressão em que se apoiam. A partir desse anel os elementos se desagregam em direção ao topo. Um mesmo edifício, portanto, apresenta possibilidades contraditórias com relação à materialidade do concreto que, dependendo de sua apropriação formal, pode ser a representação do peso e da densidade ou, contraditoriamente, da leveza. Ali ambas as qualidades podem ser observadas simultânea e contraditoriamente, leveza na base e peso no topo, o que empaticamente instiga ainda mais sua condição de flutuação.
Com relação à expressão tectônica, vinculada a materialidade estrutural, esta pode ter sido fundamentalmente alterada. É possível constatar em foto de 1970, ano de sua inauguração, que a Catedral foi construída em concreto aparente. Tal materialidade foi conseguida por uma carpintaria de fôrmas extremamente artesanal e um sistema de escoramento executado em estrutura metálica tubular apoiado em estacas que, retiradas as escoras, ficaram perdidas no terreno (34).
A Catedral assim permaneceu por dezessete anos, quando, em 1987, foram feitas intervenções para substituição dos vidros incolores por coloridos e a estrutura foi pintada de branco. É interessante a diferença entre a materialidade estrutural em concreto aparente e sua atual configuração. O concreto aparente comunica a existência de uma estrutura portante, mesmo que sua legibilidade não seja de imediata compreensão, uma vez que não fica claro o caminho das forças. A utilização do material, conhecido por suas propriedades estruturais, e, por isso, associado a uma legibilidade estrutural a ele intrínseca, já seria uma decisão tectônica específica vinculada à expressão da técnica. No entanto, a pintura branca retira das colunas curvas sua potência estrutural e, consequentemente, sua legibilidade imediata enquanto elementos de uma estrutura portante, sobretudo internamente.
A Catedral em concreto aparente não é a mesma Catedral pintada de branco. A pintura retira a potência estrutural do edifício, subtraindo a comunicação de um processo construtivo, conferindo-lhe o que Telles caracteriza como “a dissolução da matéria pelo esquecimento da técnica no olhar contemplativo” (35). A materialidade estrutural, nesse caso, comunica ideias distintas que alteram não somente o projeto como um todo, mas também sua relação com as pessoas e com a cidade, sua expressão tectônica e, portanto, sua manifestação empática.
A Catedral em concreto aparente informa a potência da implementação do conceito forma-estrutura como matriz de expressão tectônica, proveniente da interação entre Arquitetura e Engenharia Estrutural, onde a materialidade comunica a presença da técnica. A Catedral branca está mais próxima da esfera simbólica, na qual a característica escultórica pretendida por Niemeyer pode estar mais evidente. Porém, em ambas as configurações, a estrutura se manifesta como matriz de expressão tectônica, seja pela construção ou pela experiência empática. Além disso, em qualquer das duas versões, é mantida visível a lógica moldável e indivisível do concreto armado (36), propriedade de sua materialidade monolítica, apropriada em inúmeros projetos por Niemeyer.
Carlos Brandão extrai do ensaio de Heidegger A Origem da Obra de Arte o que diferencia o objeto artístico do objeto instrumental. Segundo Brandão, a matéria tende a desaparecer no objeto instrumental por exemplo, “a pedra desaparece no calçamento, o concreto desaparece na laje, o aço desaparece na tesoura” (37). Já na obra de arte a matéria se revela, e é assim que Niemeyer lida com o concreto, quando extrai do material toda a potência de sua plasticidade unida à sua capacidade resistente como material estrutural.
Considerações finais
O princípio forma-estrutura que caracteriza a cúpula da nave da Catedral de Brasília pode ser considerado uma síntese potente do trabalho conjunto de Niemeyer e Cardozo. Síntese que nesta obra é materializada atectonicamente, porém cuja potência expressiva mobiliza corpos e mentes empaticamente a partir dos âmbitos material e simbólico.
Espera-se, por meio desta discussão, contribuir para a ampliação do campo relacionado ao conceito de tectônica e experiência empática na arquitetura, além de colocar em pauta o tema do atravessamento transdisciplinar entre arquitetura e engenharia estrutural.
notas
NE – Este artigo foi originalmente apresentado no 13º Seminário Docomomo. AGUIAR, Monica; FAVERO, Marcos. Catedral de Brasília. Forma-estrutura atectônica e experiência. Anais 13º Seminario Docomomo, Salvador, FAU UFBA, 7 a 10 out. 2019.
1
Conceito elaborado no âmbito da pesquisa Arquitetura Carioca Anos 60/70: Razão Tectônica e Construção, desenvolvida pelos autores desde 2016 no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da PUC Rio.
2
SEKLER, Eduard. F. Structure, Construction, Tectonics. In KEPES, Gyorgy (Org.). Structure in Art and in Science. Nova York, George Braziller, 1965, p. 94.
3
MAHFUZ, Edson. O clássico, o poético e o erótico: método, contexto e programa na obra de Oscar Niemeyer. In GUERRA, Abilio (Org.). Textos Fundamentais sobre História da Arquitetura Moderna Brasileira. Parte 1. São Paulo, Romano Guerra, 2010, p. 283-287.
4
NIEMEYER, Oscar. Depoimento. Revista Módulo, n. 9, Rio de Janeiro, fev. 1958, p. 4.
5
NIEMEYER, Oscar. A Forma na Arquitetura. Rio de Janeiro, Avenir, 1978, p. 42.
6
TELLES, Sophia. Arquitetura moderna no brasil: o desenho da superfície. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 1988, p. 72.
7
SEKLER, Eduard F. The Stoclet House by Joseph Hoffmann. In WITTKOWER, Rudolf; FRASER, Douglas; HIBBARD, Howard; LEWINE, Milton J. Essays in the History of Architecture Presented to Rudolf Wittkower. Londres, Phaidon, 1967, p. 230-231.
8
NIEMEYER, Oscar. Oscar Niemeyer. Cadernos do Arquiteto: Brasília/Alvorada, Brasília/Catedral. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi/ Fundação Memorial da América Latina/ Fundação Oscar Niemeyer, Garilli, 1998, p. 2.
9
FRAMPTON, Kenneth. Studies in Tectonic Culture: The Poetics of Construction in Nineteenth and Twentieth Century Architecture. Chicago, John Cava, 1995, p. 375.
10
MALLGRAVE, Harry Francis. Empathy, Form, and Space: Problems in German Aesthetics, 1873-1893. Santa Monica, Getty Center for the History of Art and the Humanities,1994, p. 24.
11
SEKLER, Eduard. F. Structure, Construction, Tectonics. In KEPES, Gyorgy (Org.). Structure in Art and in Science. Nova York, George Braziller, 1965, p. 91.
12
SELZER, Michael. Introduction. In WÖLFFLIN, Heinrich. Prolegomena to a Psychology of Architecture. 1st ed., Colorado Springs/KeepAhead Books, 2017, p. 3.
13
WÖLFFLIN, Heinrich. Prolegomena to a Psychology of Architecture. 1st ed., Colorado Springs/KeepAhead Books, 2017, p. 12.
14
FRAMPTON, Kenneth. Studies in Tectonic Culture. The Poetics of Construction in Nineteenth and Twentieth Century Architecture. Chicago, John Cava, 1995, p. 23.
15
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa, Edições 70, 1977, p. 47.
16
Idem, ibidem, p. 57.
17
SEKLER, Eduard F. Structure, Construction, Tectonics. In KEPES, Gyorgy (Org.). Structure in Art and in Science. Nova York, George Braziller, 1965, p. 94.
18
Idem, ibidem, p. 94.
19
NIEMEYER, Oscar. Oscar Niemeyer. Cadernos do Arquiteto: Brasília/Alvorada, Brasília/Catedral (op. cit.).
20
Idem, ibidem.
21
NIEMEYER, Oscar. Catedral de Brasília. Revista Habitat, n. 51, nov./dez. 1958, p. 2.
22
CARDOZO, Joaquim. A construção de Brasília. In MACEDO, Danilo Matoso; SOBREIRA, Fabiano José Arcadio (Org.). Forma estática-forma estética: ensaios de Joaquim Cardozo sobre arquitetura e engenharia. Brasília, Edições Câmara, 2009, p. 179.
23
Idem, ibidem. Grifo dos autores.
24
Idem, ibidem, p. 136.
25
VASCONCELOS, Augusto. C. O concreto no Brasil: recordes-realizações-história. São Paulo, Pini, 1992, p. 86.
26
LARANJEIRAS, Antônio Carlos dos Reis. Modelo Abstrato de Análise Estrutural. Correspondência eletrônica com Monica Aguiar, 18 set. 2017.
27
HUXTABLE, Ada Louise. Pier Luigi Nervi. New York, George Braziller, 1960, p. 17.
28
PESSOA, Diogo Fagundes; CLÍMACO, João Carlos. Catedral de Brasília: Histórico de Projeto /Execução e Análise da Estrutura. Revista Internacional de Desastres Naturales, Accidentes e Infraestructura Civil, v. 2, n. 2, jul. 2002, p. 23.
29
VASCONCELOS, Augusto. C. Op. cit., p. 86.
30
SEKLER, Eduard. F. Structure, Construction, Tectonics. Op. cit., p. 91.
31
WISNIK, Guilherme. Modernidade Congênita. In ANDREOLI, Elisabetta; FORTY, Adrian (Orgs.). Arquitetura Moderna Brasileira. London, Phaidon, 200, p. 33.
32
TELLES, Sophia. Arquitetura moderna no Brasil: o desenho da superfície (op. cit.), p. 79.
33
NIEMEYER, Oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro, Avenir, 1978, p. 20.
34
Para maiores detalhes, conferir depoimento do arquiteto Carlos Magalhães. In PESSOA, Diogo Fagundes; CLÍMACO, João Carlos. Catedral de Brasília: Histórico de Projeto /Execução e Análise da Estrutura. Op. cit., p. 25.
35
TELLES, Sophia. Oscar Niemeyer, técnica e forma. In GUERRA, Abilio (Org.). Textos Fundamentais sobre História da Arquitetura Moderna Brasileira. Parte 1 (op. cit.), p. 261.
36
WISNIK, Guilherme. Modernidade Congênita (op. cit.), p. 30.
37
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Linguagem e arquitetura: o problema do conceito. Revista Interpretar, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, nov. 2000, p. 3 <https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents>.
sobre os autores
Marcos Favero é arquiteto e urbanista (FAU UFRJ, 1987) com mestrado (2000) e doutorado (2009) em Arquitetura pela mesma instituição. Professor da PUC Rio, atuando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura desde 2013, e no Curso de Arquitetura e Urbanismo desde 2002.
Monica Aguiar é engenheira civil (UFF, 1981) com especialização em Tecnologias no Ensino Superior (Ccead PUC-Rio, 2014), e mestrado em Arquitetura (PPGArq PUC Rio, 2017). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (PUC-Rio). Professora de estruturas no curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio desde 2012, e sócia de Vieira Aguiar Projetos Estruturais desde 1983.